IMIGRAÇÃO EM ‘AS BELAS COISAS QUE É DO CÉU CONTÊ-LAS’

IMIGRAÇÃO EM ‘AS BELAS COISAS QUE É DO CÉU CONTÊ-LAS’

O objetivo principal de um refugiado é sobreviver, e, quando consegue, essa meta é logo substituída pelas ambições gerais da vida.

Dinaw Mengestu, p. 128.

“As Belas Coisas que é do Céu Contê-las” é um livro do autor etíope Dinaw Mengestu. A história, inspirada em sua experiência como imigrante nos Estados Unidos, gira em torno de Sepha Stephanos, um etíope que deixou a casa para trás e viajou para viver o “sonho americano”. Nos EUA, ele conhece dois homens que acabam por se tornar amigos bem próximos. Um deles é Kenneth (Ken, o queniano), o qual “acredita no poder de um terno bem cortado para atrair a atenção e o respeito daqueles que, se não fosse por isso, sequer dariam pela sua presença”. O outro é Joseph (Joe do Congo), que escapou de conflitos em seu país, a República Democrática do Congo, antigo Zaire, e sempre busca deixar uma insistente impressão por onde passa.

A vivência como imigrante

Durante a obra, Mengestu descreve como cada um dos três amigos convive com suas dores e preconceitos sendo imigrantes africanos numa nação que os ignora. Eles são retratados como representações das consequências de decisões tomadas por quem sai de seu país natal em busca de uma nova chance de vida. E não só isso, é como se também representassem os variados sentimentos de quem teve que deixar tudo para trás, seja a saudade, o amor ou a raiva.

Não havia praticamente nada na vida de Joseph que não tivesse se tornado uma metáfora da África. Desde grandes versos de poemas ao ângulo que a luz fazia numa tarde de primavera, em tudo ele via lampejos do continente, e onde quer que fosse. Kenneth tinha ódio disso.

— Se tem tanta saudade assim — gritou ele certa feita —, por que não volta para lá? Aí, não vai precisar ficar o tempo todo dizendo “Isso aqui parece a África, aquilo ali parece a África”. Mas você não volta. Prefere ficar aqui, no conforto, sentindo saudade, a voltar para lá e odiar tudo diariamente.

Dinaw Mengestu, p. 130.

Assim, o livro mostra as diferenças gritantes entre os três amigos e a forma que lidam com suas vidas. O protagonista Stephanos é dono de uma lojinha de conveniência e vive numa rotina pacata, sobrevivendo dia após dia. Kenneth, por sua vez, é um engenheiro que trabalha obtendo a estabilidade e ordem que sempre quis — e, no processo, agradece às oportunidades que lhes foram oferecidas nos Estados Unidos. Por fim, Joseph, que trabalha num restaurante chique do centro de Washington, sente saudades de seu continente e bebe muito nas horas livres.

— Nossas lembranças — diz Joseph — são como um rio que não chega até o mar. Com o tempo, vão secando lentamente ao sol. É por isso que bebemos, bebemos, bebemos, mas nunca conseguimos nos satisfazer.

Dinaw Mengestu, p. 19.

O jogo com os colegas

Uma das coisas que mantém os três juntos é a reunião semanal que fazem na loja do protagonista para brincar e conversar. O jogo deles se resume a alguém falar o nome de um dos imperadores, generais ou ditadores de algum país africano e os outros colegas descobrirem de qual país este dito cujo é e o que ele fez. Isso, de acordo com o Stephanos, mantém a memória viva e os leva para mais próximo de seu continente, como se o mapa da África nos fundos de sua loja pudesse, por alguns momentos, os envolver e os levar de volta às casas que deixaram para trás.

— Pobre Bokassa. Imperador Bokassa. […] Quase o Leão de Judá Bokassa.

— Ele era canibal, não era? — perguntou Kenneth, dirigindo-se a Joseph.

— Segundo os franceses, era. Mas quem pode acreditar nos franceses? Basta olhar para Serra Leoa, para o Senegal. Uns grandíssimos mentirosos, isso sim.

— Os franceses ou os africanos?

— E que diferença faz?

Dinaw Mengestu, p. 19.

As reflexões feitas pelo protagonista e seus amigos durante a narrativa deixa o texto profundo e tocante, emocionando até o mais duro dos corações. Diversas críticas à pobreza, ao neocolonialismo, racismo, apartheid, segregação, raízes, origens e à situação dos imigrantes — muitas vezes marginalizados — são feitas com excelência durante a obra. Assim, o leitor consegue simpatizar e se aproximar tanto de Sepha, quanto dos outros personagens, entendendo suas dores e saudades, além de desejar acalentar seus corações. Também existem momentos de profunda incompreensão e desconforto com a interação entre os três, mas nada faz com que esqueçamos do valor da história.

— Apareça qualquer dia desses, Stephanos, Feche a loja. Tire o dia de folga. E vai ser tratado como o rei da Etiópia.

Quando retruquei que o imperador havia sido morto e enterrado num banheiro, ele deu de ombros e disse:

— Essas coisas acontecem. Todos nós cometemos erros.

Dinaw Mengestu, p. 123.

O ponto da virada

Durante a estadia nesse país completamente oposto ao seu, Sepha conhece Judith, uma mulher branca que é diferente das outras mulheres brancas que havia conhecido, e sua filha Naomi, uma garotinha com a mente crítica e extremamente esperta. A aproximação dele com as duas moças transforma a maneira que Stephanos enxerga sua vida nos Estados Unidos e faz com que ele tome melhores atitudes em relação à sua loja e rotina.

Entretanto, a situação muda completamente quando, depois de se apegar às novas companheiras, Judith vai embora e leva Naomi, a garota com qual ele descobriu uma amizade pura e divertida. Para efeito criativo, o livro varia a narração entre o passado e o presente, explicitando as diferenças na forma que ele agia ao ser motivado pelas duas em relação ao tremendo contraste de suas ações sem elas. Inclusive, o leitor chega a sofrer com a falta das personagens, além de observar impotente a queda de Sepha. Isso, claro, até o momento em que o protagonista tem uma introspecção sobre tudo o que passou, nos enchendo de esperança.

Ter coragem, como dizia meu pai, é ser capaz de encarar a verdade, independentemente de qual seja ela.

Dinaw Mengestu, p. 89.

Conclusão

“As Belas Coisas que é do Céu Contê-las” tem uma linguagem simples, mas densa e sem muitos diálogos. Apesar disso, a continuidade da escrita é fluída e rápida, com as páginas passando para quem lê numa velocidade inacreditável. Ademais, é um livro extremamente introspectivo, que revela os pensamentos de Stephanos num nível surpreendente e força o leitor a conhecê-lo melhor. Justamente por essa característica intrínseca, conseguimos absorver a profundidade da história de Sepha, que, apesar de ser ficção, mostra um tom muito específico da realidade vivida pelo autor. Para que nenhum detalhe seja perdido ou ignorado, a leitura demanda certo tempo e reflexão.

E as belas coisas, que é do céu contê-las,

Por um círculo eu vi no céu profundo;

E ali saímos para rever as estrelas.

[…]

— Pensem — diz ele —, Dante está finalmente saindo do inferno e é isto que vê. “As belas coisas, que é do céu contê-las”. É perfeito, sem dúvida alguma. Simplesmente perfeito. Disse ao meu professor que ninguém pode entender esse verso melhor que um africano, pois é exatamente o que vivemos. Um inferno cotidiano, e, no meio, apenas uns breves vislumbres do céu.

Dinaw Mengestu, p. 130.

Talita Soares

Formada em RI pela UFG, leitora nas horas vagas.

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