GOSTARÍAMOS DE INFORMÁ-LO DE QUE AMANHÃ SEREMOS MORTOS COM NOSSAS FAMÍLIAS

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Era verdade que os sobreviventes faziam pedidos incômodos. A certa altura Nyirabeza havia dito: “Eu só quero justiça”.

Gostaríamos de Informá-lo de que Amanhã Seremos Mortos com Nossas Famílias, p. 299.

Gostaríamos de Informá-lo de que Amanhã Seremos Mortos com Nossas Famílias é um livro escrito pelo jornalista francês Philip Gourevitch. A obra retrata o genocídio de Ruanda, ocorrido no ano de 1994, que, ao todo, deixou quase um milhão de vítimas. O seu conteúdo abarca o contexto geral do genocídio, suas causas, as consequências e a realocação de refugiados que ocorreu nos anos seguintes, servindo como um conjunto de informações e críticas sobre o tema.

A escrita de Gourevitch é informativa e intensa, sempre expondo opiniões sobre o massacre e a herança colonial da situação. O jornalista passou três anos compondo o texto, reunindo relatos de vítimas e perpetradores dos crimes cometidos durante os meses de chacina.

O Dois Níveis já tem resenhas sobre o genocídio ruandês, acesse-as aqui:

Contexto

– História

Ruanda presenteou o mundo com o mais inequívoco caso de genocídio desde a guerra de Hitler contra os judeus, e o mundo enviou cobertores, feijões e esparadrapos a campos controlados pelos assassinos, aparentemente na esperança de que todo mundo se comportasse bem dali para a frente.

A promessa do Ocidente, após o Holocausto, de que o genocídio nunca mais seria tolerado provou-se vazia, e por mais nobres que sejam os sentimentos inspirados pela memória de Auschwitz, permanece o problema de que há uma grande distância entre denunciar o mal e fazer o bem.

Gostaríamos de Informá-lo de que Amanhã Seremos Mortos com Nossas Famílias, p. 167.

Ruanda é um pequeno país da África Oriental composto majoritariamente por três etnias: hutus, tutsis e tuás. Elas têm características físicas que fazem com que seja possível diferenciar umas das outras, além das antigas questões sociais que descendem da monarquia banyaruanda. Conforme o livro de Gourevicth, todas as etnias viviam em união até a chegada dos colonizadores belgas, já no século XX. Estes criaram rivalidades entre os povos, considerando os tutsis “superiores” aos hutus e aos tuás (os tuás são um grupo minoritário que vive em selvas e não tem tanta influencia no contexto do genocídio, apesar de também terem sido vítimas). Vale destacar que, mesmo compondo a maioria da população do país, os hutus foram subjugados.

– Colonização

Como tutsis eram mais altos, com traços considerados “finos” — em comparação aos hutus, que eram mais baixos e tinham a pele mais escura —, além do fato de que os primeiros tinham o costume de cuidar do gado enquanto os últimos eram responsáveis pelo trabalho braçal agrícola, os belgas favoreceram política e economicamente os tutsis. Isto é, os cargos políticos de liderança eram direcionados apenas a essa etnia. Além disso, em 1926, separaram oficialmente os membros de cada etnia com documentos de identificação, fazendo com que as relações enre amas se tornasse restrita.

Como me disse um representante suíço no Comitê Internacional da Cruz Vermelha “Quando a ajuda humanitária se torna uma cortina de fumaça para esconder os efeitos políticos que ela na verdade criou, e os Estados se escondem atrás dela, usando-a como instrumento de diplomacia, então podemos ser vistos como agentes do conflito”.

Gostaríamos de Informá-lo de que Amanhã Seremos Mortos com Nossas Famílias, p. 263.

Sob esse viés, uma rixa surgiu entre os povos. Na década de 1950, os movimentos de independência que acometeram o continente africano chegaram em Ruanda. Assim, os hutus, vendo tutsis como inimigos coloniais similares aos belgas, começaram a lutar por sua independência deles também. Em 1959, o hutus tomam o poder em suas mãos num episódio de revolução violento que deu início a maiores tensões entre as etnias.

– Pós-independência

Surge aí, mais perto da década de 1990, dois focos de poder militar étnico: a milícia hutu Interahamwe, apoiada pelo governo do país, e a Frente Patriótica Ruandesa, resistência tutsi. Existiram negociações para a paz no início da década, mas todas elas caíram por água abaixo em 1994, com a morte do presidente hutu Habyarimana num atentado ao seu helicóptero.

Dias depois, Ruanda estava mergulhada em chacinas contra os tutsis, o que deu início ao pior genocídio da história desde o Holocausto. 800 mil pessoas morreram num intervalo de cerca de 100 dias, e nem mesmo crianças, idosos ou mulheres escaparam. Todo o país entrou em caos, não havia abrigo a nenhum tutsi, nem em escolas, nem em igrejas. É esse contexto que Gourevitch analisa em seu livro.

Nosso querido líder, pastor Elizaphan Ntakirutimana,

Como vai? Esperamos que esteja firme em meio a todos esses problemas que estamos enfrentando. Desejamos informar-lhe que soubemos que amanhã seremos mortos junto com nossas famílias. Por isso, lhe pedimos que interceda em nosso favor e fale com o prefeito. Acreditamos que, com a ajuda de Deus, que lhe confiou a liderança deste rebanho que está para ser liquidado, sua intervenção será altamente reconhecida, assim como a salvação dos judeus por Ester.

Nós o reverenciamos.

Carta de tutsis para um pastor. Eles foram ignorados e, por conseguinte, mortos no dia seguinte.
Gostaríamos de Informá-lo de que Amanhã Seremos Mortos com Nossas Famílias, p. 42.

E a comunidade internacional?

O genocídio passou praticamente invisível para a comunidade internacional. Foram meses de massacre e a leniência de organizações internacionais para lidar com o acontecido apenas corroboraram para o número de vítimas. Foi só após a invasão da Frente Patriótica Ruandesa no país que o mundo percebeu o que realmente estava acontecendo em Ruanda. A FPR, força tutsi, tomou o controle dos hutus sob liderança de Paul Kagame, atual presidente do país, e ele está no poder desde 2000. Com a Frente, o genocídio que durava meses finalmente teve seu fim, entretanto, uma leva de refugiados hutus fugiu do país acreditando haver riscos para sua segurança.

Campos de refugiados no Zaire, em Uganda e no Congo levaram mais de dois anos para finalmente começarem a ser desmantelados, para que os indivíduos voltassem para casa. Nesse interim, a comunidade internacional finalmente estendeu as mãos para oferecer ajuda, só que aos assassinos.

Um repórter que foi deslocado diretamente da Bósnia para Goma [onde havia um campo de refugiados hutu no Congo] disse-me que sabia o que era o Poder Hutu e que olhava para o vulcão e rezava: “Deus, se aquela coisa entrar em erupção agora e soterrar os assassinos, acreditarei que o Senhor é justo e passarei a ir à igreja de novo todos os dias da minha vida”.

Gostaríamos de Informá-lo de que Amanhã Seremos Mortos com Nossas Famílias, p. 163.

Mortes políticas

Durante os meses de genocídio, as milícias hutu transformaram os assassinatos em mortes políticas. Isto é, afirmavam matar em nome de uma guerra ideológica contra a FPR. Dessa maneira, havia uma “desculpa” para que as mortes infindáveis ocorressem, sem contar com o incentivo governamental: propagandas, benefícios, ameaças e chantagens.

“Pessoalmente, não acredito no genocídio. Essa não era uma guerra convencional. Os inimigos estavam em toda parte. Os tutsis não foram mortos como tutsis, mas apenas como simpatizantes da FPR.”

Especulei se teria sido difícil distinguir os tutsis com o simpatizantes pela FPR dos demais. Mbonampeka disse que não […]. “Noventa e nove por cento dos tutsis eram pró-FPR”.

Até as avós senis e crianças? Até os fetos arrancados do ventre das tutsis, depois que o rádio recomendou aos ouvintes ter o cuidado especial de estripar as vítimas grávidas?

Gostaríamos de Informá-lo de que Amanhã Seremos Mortos com Nossas Famílias, p. 96.

E a população?

Os assassinos recebiam o armamento para assassinarem tutsis, além de incentivos. Ademais, havia coação para que todos os hutus, mesmo aqueles que não concordassem com o genocídio, se unissem às matanças. Um ponto importante a ser mencionado é que toda a sociedade, homens e mulheres, de alguma forma, participou do processo de genocídio, seja como assassinos, seja como saqueadoras.

Para Alexandre, Kibeho se reduzira a uma única mulher gorda de camisa amarela submersa pelas milhares e milhares de outras pessoas. “Depois da primeira morte, não há nenhuma outra”, escreveu Dylan Thomas, em seu poema da Segunda Guerra Mundial “Uma recusa a prantear a morte, pelo fogo, de uma criança em Londres”. Ou, como definiu Stalin, que comandou o assassinato de pelo menos 10 milhões de pessoas: “Uma única morte é uma tragédia, um milhão de mortes é uma estatística”. Quanto mais crescia a pilha de mortos, mais o foco voltava-se para os assassinos, e os mortos passavam a só ter importância como evidência.

Gostaríamos de Informá-lo de que Amanhã Seremos Mortos com Nossas Famílias, p. 195.

O momento posterior

Algo que marcou os meses após a retomada da PRF em Ruanda foi a volta de tutsis para o país e a saída de hutus. Como supracitado, muitos hutus fugiram de suas cidades e foram alocados em campos de refugiados nos Estados da região, como Burundi, Uganda e a República Democrática do Congo. Em contra partida, os tutsis que haviam fugido ou que já moravam fora do país antes do genocídio adentraram em Ruanda para (r)estabelecer suas vidas e relembrar dos mortos. Além disso, algumas crianças que ficaram órfãs foram acolhidas, mulheres que ficaram grávidas em decorrência dos estupros receberam alguns auxílios e os sobreviventes foram atendidos.

À medida que fui conhecendo sobreviventes, percebi que, quando se trata de preservação da alma, a necessidade de cuidar dos outro é frequentemente maior que a de cuidar de si próprio […]: dois anos depois do genocídio, mais de 100 mil crianças cuidavam umas das outras em lares que não contavam com nenhuma presença adulta.

Gostaríamos de Informá-lo de que Amanhã Seremos Mortos com Nossas Famílias, p. 222.

Conclusão

Gostaríamos de Informá-lo de que Amanhã Seremos Mortos com Nossas Famílias é um livro muito emocionante intenso e informativa, além de fazer críticas ao colonialismo e à comunidade internacional. Para quem quiser conhecer mais sobre o genocídio de Ruanda, este livro é fundamental.

Nas últimas páginas da obra, Gourevitch relata a história de duas escolas atacadas por um grupo de milicianos a favor do Poder Hutu. O grupo as invadiu e acordou as alunas que moravam ali, obrigando-as a se separarem entre hutus e tutsis. Nas duas vezes, todas elas se recusaram, afirmando que eram apenas ruandesas. Dezenas morreram.

Os ruandeses não têm necessidade de novos mártires — nem espaço para eles em sua imaginação lotada de cadáveres. Nenhum de nós tem. Mas não poderíamos criar um pouco de coragem inspirados no exemplo daquelas bravas garotas hutus que poderiam ter escolhido viver, mas em vez disso escolheram chamar a si próprias de ruandesas?

Gostaríamos de Informá-lo de que Amanhã Seremos Mortos com nossas Famílias, p. 348.

Talita Soares

Formada em RI pela UFG, leitora nas horas vagas.

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