O MUNDO DE AISHA, O NIQAB E A RESILIÊNCIA FEMININA

O MUNDO DE AISHA, O NIQAB E A RESILIÊNCIA FEMININA

“O Mundo de Aisha: A revolução silenciosa das mulheres no Iêmen” é o nome de uma linda e curta HQ sobre a coragem e resiliência feminina em um dos países mais pobres do planeta. Tendo como foco demonstrar a força das mulheres no meio de uma sociedade patriarcal, a história quebra estereótipos e mostra a inteligência e as estratégias de garotas para terem seus direitos resguardados no país.

Eu incomodava. Por quê? Simplesmente porque não ficava em casa, como todas as outras…

Tinha um restaurante, trabalhava com homens, tratava-os de igual para igual e: estava ganhando dinheiro.

‘Hamedda’ em O Mundo de Aisha.

Dividida em três partes, a HQ conta a história de diversas mulheres, cada uma enfrentando seus leões e resistindo de forma silenciosa, mas constante, no Iêmen. Marcando sua existência e lugar numa sociedade que tentou controlá-las.

A religião está lá e não vai sair

O Niqab é um véu que cobre o rosto da mulher, deixando apenas seus olhos descobertos. Não se sabe muito bem se, para uma mulher, cobrir o rosto é Fard, obrigatório, ou simplesmente Mustahabb, aconselhável… Sobre esse ponto, o texto sagrado não parece fornecer aos sábios indicações precisas…

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Na dúvida, sugere-se às mulheres que decidam por si mesmas, naturalmente levando em conta as circunstâncias e o fato de que os homens estão acostumados há séculos a vê-las cobertas. E esta é uma verdade inquestionável!

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É claro, portanto, que a mulher tende a adequar seu comportamento a essa situação. Para poder viver em paz… Inshallah.

‘Introdução’ em O Mundo de Aisha.

A religião dominante no Iêmen é o islamismo. Os preceitos religiosos, muitas vezes considerados “opressores” para os padrões ocidentais — o que, por si só, já é um pensamento errôneo —, na verdade servem como proteção para as mulheres iemenitas. Em primeiro plano, a obra destaca que a escolha de usar ou não o véu é da própria mulher, as quais devem ser levar em consideração o contexto em que vivem.

Em segundo plano, o véu foi criado como uma forma de proteção para elas, além de já fazer parte da cultura e dos costumes. Não há problema em seguir preceitos religiosos quando se há escolha, quando é algo mustahabb. O Mundo de Aisha, entretanto, não ignora as críticas ao uso do véu quando a opinião masculina conta mais do que a feminina. Como a HQ afirma, a escolha deve ser da mulher, mas, muitas vezes, a opinião dos homens acaba se tornando um fator na equação, e esse é o grande problema.

Ocidente e seu delírio de grandeza

Uma crítica constante feita pela HQ é a da visão ocidental sobre o Niqab. De acordo com O Mundo de Aisha, muitas vezes vemos as mulheres no véu como fantasmas, que não têm uma história por baixo de tanto tecido. Como não podemos ver seus rostos, elas não existem. Estão ali, mas ao mesmo tempo não estão; uma espécie de paradoxo. E tanta pele coberta só poderia significar opressão e dominação… Certo?

Entretanto, será que o nosso comportamento também não representa uma outra forma de controle? A necessidade de beleza a todo custo, os procedimentos estéticos intermináveis, a exposição, a cobrança de perfeição… Isso não parece ser uma escolha. Seríamos, então, escravos de um sistema que disfarça sua opressão atrás de ilusões sobre a liberdade? Vale a reflexão.

[Ghada – iemenita] “O Niqab… Vocês ocidentais, ficam muito impressionados com ele. Mas talvez não entendam que, para nós, as coisas não são exatamente como vocês veem.”

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[Sara – ocidental] “Vemos vocês como mulheres sacrificadas.”

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[Ghada – iemenita] “Veja bem, o Niqab também tem suas vantagens… Não precisa se preocupar se é bonita ou feia, economiza em roupas, cabeleireiro, dentista, dermatologista, maquiagem. E a lista continua… Brincadeiras à parte, para muitas de nós o que realmente importa é trabalhar fora, ser professora, médica, fazer política… […] Como sabe, fiz mestrado em conservação e restauração em Florença. Uma cidade magnífica, um ambiente de trabalho sério, profissional. Pessoas simpáticas. E, por todo lado, mulheres bonitas, sedutoras, como nos filmes. Mas todo aquele esforço para estarem sempre atraentes… em suma, não me transmitia uma ideia de liberdade.”

‘Aisha, Houssen, Ghada, Ouda e Fatin’ em O Mundo de Aisha.

O que realmente importa

Buscando não apenas demonstrar a força humana, mas também desconstruir os estereótipos que o Ocidente tem sobre países do Oriente Médio, O Mundo de Aisha passa uma mensagem inspiradora. Mulheres que lutam todos os dias por oportunidades não tem como primeira opção renegar algo que é cultural e que não afeta suas vidas de maneira intrínseca, porque é algo que faz parte de sua religião, de seus valores, e, por mais surpreendente que possa parecer para quem é de fora, torna suas vidas mais fáceis.

[…] Se usamos o Niqab, tudo isso [trabalhar fora, ser professora, médica, fazer política…] é mais aceito facilmente. Os homens se sentem mais tranquilos, menos desestabilizados, menos invadidos em seu território.

[…]

Seja como for, para nós a tradição tem um significado particular. Valores importantes aos quais não queremos renunciar… O amor pela família, o senso do pudor.

‘Aisha, Houssen, Ghada, Ouda e Fatin’ em O Mundo de Aisha.

Casamento, maternidade e trabalho

Além de desconstruir alguns mitos sobre o Niqab, a HQ faz críticas sobre casamentos infantis e maternidade como as únicas coisas que são “feitas para a mulher”. Sabiha é o maior exemplo dessa situação: é forçada a se casar com onze anos de idade, e tem sua primeira filha aos treze. A história mostra sua resistência contra o relacionamento abusivo em que está e a força e resiliência de cuidar de seus filhos frente a uma situação de sofrimento.

A parteira chamada pela sogra está receosa… Nasce uma menina, o que causa certa decepção. Mas haverá tempo para remediar isso, se a mãe sobreviver.

Ela sobreviverá, é forte.

Então terá que aprender a ser mãe. A aceitar ser mãe aos treze anos de idade. Logo aprenderá também a amar a filha como um premente, um consolo.

‘Sabiha’ em O Mundo de Aisha.

Outra história que merece destaque é a de Samedda, uma empresária de sucesso iemenita. Sua história é marcada pela exclusão por ter a coragem de trabalhar com homens e tratá-los como iguais. Entretanto, quando o líder do seu país, o presidente Saleh, a parabeniza pessoalmente por seu restaurante “honrar o Iêmen”, Samedda perde o estigma e é tratada como a mulher respeitável que sempre foi. Assim, cresce ainda mais no negócio e garante aos seus filhos a educação que não lhe foi oferecida durante a infância.

Como o retrógrado é enfrentado pelo novo

O avanço está chegando ao Iêmen. Existem casa de apoio à mulher, que abrigam aquelas que são abandonadas ou renegadas, projetos criados e/ou liderados por mulheres, empregos e estudos sobre e para a mulher e muito mais. Lentamente, as garotas, adolescentes e mulheres mudam a realidade de uma forma que as aceite, que as compreenda e acolha. Mesmo com todas as provações e dores, a mudança está acontecendo.

Pela lei tribal, o marido tem o direito de repudiar a esposa quando quiser. E ela se vê jogada na rua, às vezes com filhos pequenos, sem dinheiro, abandonada, totalmente marginalizada.

Numa situação como esta, o Iêmen deu um sinal de esperança ao instituir o Ministério dos Direitos Humanos. A ministra, Hourian Ahmed Mashour, é também a única mulher na equipe do governo.

‘Aisha, Houssen, Ghada, Ouda e Fatin’ em O Mundo de Aisha.

Conclusão

O Mundo de Aisha é uma História em Quadrinhos curta, mas poderosa. Com menos de 150 páginas, consegue marcar o leitor e fazê-lo refletir sobre suas concepções pré-definidas, seu local de fala e até quanto a narrativa criada pelo Ocidente é verdadeira. Além disso, mostra que os problemas que afligem a população feminina no país estão a caminho de mudança através de uma revolução silenciosa e constante, marcada pela resiliência dessas mulheres.

São tantas as que têm vontade de contar suas histórias, ainda que muitas só o farão de maneira anônima.

Estamos todos, mulheres e homens, nesse ciclo tribal que se alimenta de pobreza e ignorância, que mete medo.

Meu país é assim: arcaico, arruinado e magnífico.

‘Aisha, Houssen, Ghada, Ouda e Fatin’ em O Mundo de Aisha.

Talita Soares

Formada em RI pela UFG, leitora nas horas vagas.

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