UMA TEMPORADA DE FACÕES E OS GENOCIDAS RUANDESES

UMA TEMPORADA DE FACÕES E OS GENOCIDAS RUANDESES

“Uma temporada de facões” é um livro de relatos escrito pelo repórter Jean Hatzfeld sobre o genocídio em Ruanda. Os testemunhos, contudo, não são das vítimas, mas dos assassinos. O autor queria entender o que levou indivíduos comuns a cometerem as terríveis atrocidades do massacre. Tendo isso como motivação, Hatzfeld foi em busca de conhecer os rostos por trás das angustiantes histórias do genocídio de 1994. Numa série de relatos francos e até mesmo dolorosos, o jornalista mostra a outra face da tragédia.

Diante da realidade do genocídio, a primeira opção de um assassino é se calar, a segunda é mentir. Pode mudar sua decisão, mas não a discute. Sozinho, não se expõe a nenhum risco, assim como não se expunha a nenhum risco durante os massacres.

Jean Hatzfeld, autor.

O genocídio

Em 1994, um pequeno país da África Oriental, Ruanda, foi casa do maior genocídio da história contemporânea. A maioria étnica hutu dizimou a minoria tutsi. Foram cerca de 800 mil mortes num intervalo de 100 dias, e a leniência da comunidade internacional frente ao massacre causou revolta. Além disso, a população ficou marcada pela tragédia, as vítimas traumatizadas, e a sociedade do país nunca mais foi a mesma.

A organização dos assassinos

As milícias hutu foram as responsáveis pela perpetuação dos assassinatos. Todos os homens hutus eram obrigados a matar e suas famílias deveriam apoiar a dizimação. Grupos de hutus se uniam para buscar os tutsis fugitivos nos pantanais e nas cidades. Era uma “caça às presas”, só que com vida humanas em linha.

A regra número um era matar. A regra número dois, não havia. Era uma organização sem complicações.

Pancrace, um dos assassinos.

A vida em sociedade

Não havia mais escola, nem diversão, nem jogos de futebol e coisas do gênero. Quando havia uma sessão de decepamento em público, como na igreja ou no centro comercial, todas as crianças iam ver. Não éramos obrigados, nem por um lado nem por outro (…). Eram nossas únicas ocupações de grupo.

Jean, um dos assassinos.

As respostas dos presos para as perguntas de Hatzfeld chegam a ser dolorosas, mas a franqueza em suas falas permite que analisemos como as coisas sob o regime das milícias hutu funcionavam. O genocídio foi um movimento nacional contra os tutsis, que englobou todas as áreas da vida dos moradores ruandeses. Desde as crianças até os idosos, dos pobres aos ricos, das mulheres aos homens. Era uma realidade cruel de vida ou morte que foi incentivada por poderes militares e midiáticos.

As mulheres

Uma das temáticas retratadas na obra é a posição das mulheres no genocídio. Seja como tutsi quanto hutu. As hutus eram menos passíveis de castigos se desobedecessem aos comandos das milícias. Costumeiramente, elas ficavam em casa, preparando as refeições das crianças, cuidando do trabalho do campo ou, às vezes, tentando ajudar suas vizinhas sob perseguição. Estavam também encarregadas de saquear as casas e plantações das vítimas do genocídio.

Enquanto isso, as fugitivas padeciam com as piores violências imagináveis por parte de conhecidos seus. Os assassinatos, os estupros, as torturas… tudo isso era de preocupação delas. No campo de matanças, sofriam mais do que todos.

Numa guerra matamos quem briga conosco ou quem nos promete o mal. Em extermínios desse gênero, matamos a vizinha tutsi com quem ouvíamos rádio; ou a mulher bondosa que passava plantas medicinais das nossas feridas (…). Matamos a mulher na mesma medida em que se mata o homem.

Pancrace, um dos assassinos.

A religião dos assassinos

Outro tema presente no livro é a religião dos assassinos. De maioria cristã, estes se mostravam envergonhados dos atos cometidos durante o genocídio, mas nem mesmo a fé os impediu de matar seus conterrâneos tutsis. Eles comentam que as famílias hutus tinham duas posturas frente à religião: ou ignoravam a presença de Deus, acreditando que o massacre era de Satanás, ou o louvavam como se não tivessem sangue em suas mãos.

Sei que só Deus pode compreender o que fizemos. Só ele observou os detalhes, só ele sabe quem sujou as mãos e quem não sujou. E quando a estes últimos, para ele, é isso que conta.

Fulgence, um dos assassinos.

O perdão

Uma das últimas questões tratadas por Hatzfeld com os presos é o perdão. Como eles imaginavam sua libertação da cadeia e a volta para as comunidades e cidades em que viviam. A maioria acreditava ser possível receber a anistia por parte das vítimas. Entretanto, o perdão é um desafio sabendo que a maior parcela de seus doadores foram jogados em covas comuns. Além disso, os sobreviventes estão marcados demais, machucados demais, para que consigam dá-lo.

Não entrevejo nenhum perdão capaz de secar todo o sangue derramado. Só enxergo Deus para me perdoar, por isso é que lhe peço todos os dias. Oferecendo-lhe toda a minha sinceridade, sem nada esconder de meus crimes. Não sei se ele diz sim ou se diz não, mas sei que lhe peço muito intimamente.

Pio, um dos assassinos.

Conclusão

Os relatos são fortes e o leitor precisa parar de ler por alguns minutos para conseguir absorver os pensamentos expostos ali. Com pausas para comentários reflexivos do autor, Hatzfeld consegue mostrar um outro lado do genocídio para nós. Um lado que continua feio, ruim e incompreensível, mas presente e franco.

Definitivamente, o livro auxilia-nos a entender como o esquema de matanças aconteceu e qual foi a influência das milícias no massacre. Contudo, compreender como indivíduos comuns conseguiram chacinar seus conhecidos ainda parece algo distante.

Talita Soares

Formada em RI pela UFG, leitora nas horas vagas.

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