MALI: EM BUSCA DE UM CAMINHO PARA A PAZ

MALI: EM BUSCA DE UM CAMINHO PARA A PAZ

Foto em Destaque – Accueil de Tiébilé Dramé, então ministro de relações exteriores do Mali, com seu homólogo francês Jean-Yves Le Drian em Paris, em maio de 2019.

 INTRODUÇÃO

Dia 11 de abril de 2022 foi anunciado, por parte da União Europeia, o fim da Missão de Treinamento da União Europeia no Mali (EUTM). O país africano vinha recebendo este suporte militar europeu há quase 10 anos. Há alguns motivos para que o bloco continental tenha cessado a missão em território maliano, entre elas a presença do grupo militar russo Wagner no país, assim como o golpe de Estado que passou o país em 2020. Porém, este é um assunto que, para ser entendido melhor, precisa ser destrinchado e analisado minuciosamente. Convidamos o leitor Dois Níveis para entender mais da posição da União Europeia e o que anda acontecendo no Mali.

O Mali é um país localizado, majoritariamente, na região do deserto do Saara, na África Ocidental, sem saída para o mar. Tem uma população de pouco mais de 20 milhões de habitantes. Com uma expectativa de vida de 59 anos apenas (BANCO MUNDIAL, 2022) e um Índice de Desenvolvimento Humano de 0.434 em 2019, figurando na 184º de 189 países (PNUD, 2022a). Porém, o atual estado de subdesenvolvimento do país não reflete o histórico pujante e o destaque continental que esta nação já possuiu. Entre os séculos XIII e XVI havia naquela região o Império do Mali, o maior e mais rico império na África Ocidental. Tal império era inicialmente marcado pelas atividades comerciais e, posteriormente, se enriqueceu ainda mais pela extração do ouro (CIA, 2022). Entretanto, esta região tão vibrante e dinâmica no passado deu espaço para uma nação hoje marcada pela pobreza e subdesenvolvimento. O que está acontecendo com o Mali?

A HISTÓRIA RECENTE E OS CONFLITOS NO MALI

            Entre a década de 1890 e o ano de 1960, o então Sudão Francês, hoje território maliano, foi colônia da França. Logo após a independência, a República do Mali viu seu nascedouro manchado por uma longa ditadura que durou até 1991. Nesse ano, Amadou Toumani Touré realizou um golpe militar e assumiu o governo do país temporariamente, até 1992. Como presidente do Comitê de Transição para Salvação do Povo do Mali, conseguiu realizar eleições em todo o território nacional em 1992 – eleições estas, inclusive, reconhecidas internacionalmente como justas e democráticas. No mesmo ano o país inaugura sua nova constituição e é instituída uma democracia multipartidária (CIA, 2022).

Imagem 2 – Bandeira do Mali

Em 1997 as eleições nacionais ocorreram sem maiores problemas, seguindo o novo padrão democrático instituído cinco anos antes. Em 2003 Amadou Touré assume o cargo de presidente, desta vez através de eleições livres e democráticas ocorridas no ano de 2002. Touré foi reeleito no ano de 2007. Os problemas do país com o terrorismo islâmico provêm de janeiro de 2012, época na qual os primeiros atos insurgentes de grupos armados estouraram, em especial no norte do território. Segundo o Ministério de Relações Exteriores Esloveno:

O número de realocados internos já superou os 200.000. Além do mais, quase 150.000 refugiados do Mali procuraram refúgio em países vizinhos (Mauritânia, Níger, Burkina Faso e Argélia). De acordo com estimativas, por volta de 4.2 milhões de pessoas necessitam de ajuda humanitária. A crise humanitária se aprofunda devido a situação política e securitária instável, […][1]

(ESLOVÊNIA, 2022)

            Em janeiro de 2012, como dito anteriormente, ocorreu o início das atividades terroristas no norte do Mali e, em março do mesmo ano, um golpe de Estado liderado pelo capitão Amadou Sanogo tomou a liderança do país. Dentro de uma semana, tanto a União Africana como a Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) suspenderam o país destas instituições (BRITANNICA, 2022). Ainda no ano de 2012, o Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) debateu a situação político-militar e socioeconômica do Mali. Na resolução 2.085 do CSNU de dezembro de 2012, o Conselho reconhece que a atuação dos grupos terroristas e organizações criminosas são uma ameaça séria a toda a população nacional, assim como para a estabilidade da região do Sahel e para toda a comunidade internacional (CSNU, 2012).

            A resolução 2.085 do Conselho de Segurança condenou fortemente a interferência de forças de segurança do Mali nas Autoridades de Transição para a democracia. Ainda, criticaram os abusos e desrespeito aos Direitos Humanos cometidos por rebeldes e terroristas. Importante destacar que, três meses antes da resolução, as próprias autoridades malianas haviam requerido do Secretário-Geral da ONU autorização para envio, baseado no Capítulo 7 da Carta da ONU, de uma força militar no norte do Mali. A resolução determinou diversos pontos interessantes para o avanço democrático e securitário no país. Entre eles, vale destacar:

  • O CSNU requer das autoridades do Mali, sob os auspícios da CEDEAO, um caminho pré-determinado para a paz e em prol do diálogo político livre e democrático;
  • Demanda dos grupos rebeldes do Mali que cortem laços com organizações terroristas, principalmente o grupo Al-Qaida no Mahgreb Islâmico (AQIM) e grupos associados;
  • Urge para que membros da comunidade internacional apoie o governo maliano com assistência coordenada de treinamento, expertise e demais auxílios;
  • Cita o plano de envio de uma missão liderada pela União Europeia de ajuda militar para auxiliar a reestruturação das Forças de Segurança e Defesa Malianas;
  • Envio da AFISMA (Missão de Suporte Liderada pela África no Mali, na sigla em inglês), no período de um ano, seguindo os Direitos Humanos reconhecidos internacionalmente e em total respeito a soberania e integridade territorial do país.

Imagem 3 – Chegada de Boubou Cissé, então Primeiro-Ministro do Mali no Palácio do Eliseu para uma reunião com o presidente francês Emmanuel Macron

Fato relevante para a análise desta resolução do CSNU é que deu prioridade para que uma coalizão africana busque a solução para os problemas do país, em respeito ao princípio de “Soluções Africanas para Problemas Africanos”. No item 10 da resolução 2.085, é dito:

Requer que a União Africana, em intensa coordenação com a Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental, o Secretário-Geral [da ONU], e outras organizações internacionais e bilaterais envolvidos na crise maliana, reportem para o Conselho de Segurança a cada 60 dias o envio de atividades da AFISMA” (CSNU, 2012)[2].

            Já na resolução 2.100 do CSNU, de abril de 2013, é condenado os intensos ataques agora ao sul do país, que tiveram principalmente duas entidades internacionais para combatê-los: forças francesas e forças da AFISMA. Entre os crimes cometidos até então pelos terroristas, constam: prisões ilegais, execuções, estupros e abusos sexuais, recrutamento de crianças, ataques contra escolas e hospitais, entre outros (CSNU, 2013). Portanto, em julho de 2012 foi aberto no âmbito do Tribunal Penal Internacional (TPI), a pedido do governo transitório do Mali, um julgamento contra as atividades destas organizações criminosas e grupos terroristas.  Em janeiro de 2013 as investigações se iniciaram, principalmente nas regiões de Gao, Kidal e Timbuktu, ao norte do país, e no sul, incluso a capital Bamako e a região de Sévaré (TPI, 2022).

Imagem 4 – Primeiro Ministro da República do Mali, Dr. Choguel Kokalla Maïga

Ao longo do período pós-2013, as forças africanas e europeias atuaram em prol da contenção das atividades de grupos terroristas e organizações criminosas no território maliano. Entretanto, há poucos relatos de avanços e atualizações das atividades da AFISMA – Missão de Suporte Liderada pela África no Mali, assim como poucas atualizações da situação da EUTM – Missão de Treinamento da União Europeia no Mali. Nota-se o descaso de autoridades nacionais e continentais na Europa para com a situação do Mali, assim como o descaso de autoridades e lideranças africanas.

            Considerando que ambas as missões, tanto a africana quanto a europeia, tinham por princípios e metas não só questões securitárias, mas também o desenvolvimento socioeconômico da nação, seus respectivos fracassos, em maior ou menor grau, levaram ao golpe de Estado perpetrado em 18 de agosto de 2020. A Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental e a União Africana impuseram sanções ao país e o bloquearam de participar do processo de tomada de decisões destas instituições. A CEDEAO foi além e impôs um bloqueio logístico, econômico e financeiro em consequência ao golpe. Com o sucesso da iniciativa dessas duas instituições africanas, os militares cederam o poder a um civil em 8 de outubro de 2020, para liderar o processo de transição à democracia (FMI, 2021, p. 4).

            O golpe ocorreu em 18 de agosto de 2020, com a prisão de várias autoridades do país, incluso aí o então presidente Keïta, o primeiro-ministro Cissé e o Presidente da Assembleia Nacional – todos foram libertos posteriormente (FMI, 2021, p. 44). O presidente maliano Keita havia vencido as eleições nacionais de 2013, após o golpe bem-sucedido de 2012, e havia sido reeleito em 2018, portanto, estava ainda na primeira metade de seu segundo mandato. Os motivos para o golpe de agosto de 2020 são diversos, mas incluem aí: protestos de massa contra a suspeita de manipulação de resultados nas eleições parlamentares, na qual os manifestantes exigiam a dissolução do novo parlamento e a renúncia do presidente. Havia também pressões sociais após o sequestro de líderes da oposição e longos protestos dos professores em prol de melhores salários (FMI, 2021, p. 45).

            Além do mais, são citados mais motivos para o golpe militar: governança frágil e capacidade do Estado do Mali baixa em entregar serviços públicos básicos; coesão nacional foi erodida com o choque de grupos identitários, como o movimento Tuareg no norte do país, assim como a deterioração na segurança nacional nos últimos anos (FMI, 2021, p. 46). Esta deterioração, inclusive, é citado que apenas no ano de 2019 para 2020, o Mali relatou mais de 50% de aumento nos números de conflitos internos (PNUD, 2022b).

            Hoje, o Mali vive um governo de transição, que foi instaurado em outubro de 2020. O governo tem presidente e primeiro-ministro civis, foi realizado através de consulta nacional e para sua formação houve o auxílio de parceiros da região do Sahel e de outras partes do globo. O governo transitório adotou uma Carta de Transição para guiar os caminhos deste governo. Com os avanços, a CEDEAO retirou as sanções que tinham impostas, e urgiu para que a comunidade internacional reconhecesse o governo, mas também exigiu do governo transitório a adequação de suas atividades para o âmbito do respeito aos direitos humanos e o devido processo-legal no que tange a prisão de pessoas. Com isso, outras instituições internacionais reconheceram o governo, incluso aí a União Africana, a Organização das Nações Unidas e a União Europeia (FMI, 2021, p. 44).

            E hoje, como está o Mali? Segundo relatório de 25 de março de 2022 da Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO, 2022a, p. 4):

  1. A situação securitária e humanitária continua a se deteriorar por conta de ataques de grupos terroristas, com perda de vidas civis e militares;
  2. O governo de transição requereu da CEDEAO mais dois anos para atuarem, além dos 18 meses inicialmente programados em 2020;
  3. A CEDEAO parabeniza seu mediador por conquistar consenso sobre um prazo menor para o fim do governo transicional e o breve retorno para a ordem constitucional e democrática. A CEDEAO e União Africana propuseram um prazo adicional de 12 a 16 meses para o fim do governo de transição no Mali;
  4. Entretanto, a CEDEAO decidiu manter as sanções impostas em 9 de janeiro de 2022;
  5. A CEDEAO mais uma vez expressa sua preocupação em torno do deterioramento da situação securitária no Mali e pede para seus membros acompanhem e ajudem nos esforços em prol da democracia no país.

Uma das principais preocupações no momento que a comunidade internacional tem para com o Mali, além dos problemas de segurança da nação, é em relação ao prazo que o governo provisório se manterá. Em agosto de 2020 propuseram um período de transição de 18 meses. Em 9 de janeiro de 2022, anunciaram que as eleições, ao invés de acontecerem em fevereiro de 2022 como inicialmente previsto, serão realizadas em dezembro de 2026, aumentando o período de transição do prazo inicial de 1,5 anos para 6,5 anos (CEDEAO, 2022b, p. 3). Infelizmente, a situação maliana não é favorável, e esforços para a paz e democracia parecem não surtit muito efeito. Entretanto, a liderança e a proatividade dos países da CEDEAO em prol da democracia do Mali são esforços que já tiveram resultado no passado, e podem ser a chave para o sucesso da nação.

CURIOSIDADE

Caso você leitor tenha ficado interessado em conflitos armados na África Subsaariana, ou tenha interesse para saber mais das Relações Internacionais no Sahel, o Dois Níveis publicou o artigo O CINTURÃO DE SAHEL COMO BERÇO DOS CONFLITOS ARMADOS NA ÁFRICA?. Nele, há debates sobre a história da região do Sahel, conflitos armados na região e a formação da instituição internacional regional conhecida como o Grupo dos Cinco do Sahel (G5 do Sahel) com Burkina Faso, Chade, Mali, Mauritânia e Níger. Clique no artigo acima e leia!


[1] No original: “The number of internally displaced persons has surpassed 200,000. In addition, about 150,000 refugees from Mali have sought refuge in neighbouring countries (Mauritania, Niger, Burkina Faso and Algeria). According to estimates, around 4.2 million people are in need of humanitarian help. Humanitarian crisis further deepens due to the unstable political and security situation,  […]” (ESLOVÊNIA, 2022).


[2] No original: “Requests the African Union, in close coordination with ECOWAS, the Secretary-General and other international organizations and bilateral partners involved in the Malian crisis, to report to the Security Council every 60 days on the deployment and activities of AFISMA […]” (CSNU, 2012)

IMAGENS

Imagem em destaque: Accueil de Tiébilé Dramé, então ministro de relações exteriores do Mali, com seu homólogo francês Jean-Yves Le Drian em Paris, em maio de 2019. Ministério das Relações Exteriores da França. Foto por Jonathan Sarago. Disponível em: <https://basedoc.diplomatie.gouv.fr/exl-php/util/image_view/index.php?src=pho_doc|107886|0&count=1>. Acesso em: 28 de abril de 2022.

Imagem 2 – Bandeira do Mali.

Imagem 3 – Chegada de Boubou Cissé, então Primeiro-Ministro do Mali no Palácio do Eliseu para uma reunião com o presidente francês Emmanuel Macron. Ministério das Relações Exteriores da França. Foto por Ghislain Mariette .Disponível em: < https://basedoc.diplomatie.gouv.fr/exl-php/util/image_view/index.php?src=pho_doc|112822|0&count=1>. Acesso em: 28 de abril de 2022.

Imagem 4 – Primeiro Ministro da República do Mali, Dr. Choguel Kokalla Maïga. República do Mali. 2022. Disponível em: < https://primature.ml/>. Acesso em: 21 de abril de 2022.

BIBLIOGRAFIA

Banco Mundial. Mali. 2022. Disponível em: <https://data.worldbank.org/country/mali>. Acesso em: 21 de abril de 2022.

CEDEAO. Extraordinary Summit of the ECOWAS Authority of Heads of State and Government on the Situation in Mali, Guinea and Burkina Faso. 25 de março de 2022. Accra, República de Gana. Comunicado Final. 2022a. Disponível em: < https://ecowas.int/wp-content/uploads/2022/03/Eng-Final-Communique%CC%81-Extra-Summit-25-mars-a%CC%80-23h.pdf>. Acesso em: 28 de abril de 2022.

CEDEAO. 4th Extraordinary Summit of the ECOWAS Authority of Heads of State and Government on the Political Situation in Mali. 9 de Janeiro de 2022. Accra, República de Gana. Comunicado Final. 2022b. Disponível em: <https://www.ecowas.int/wp-content/uploads/2022/01/Final-Communique-on-Summit-on-Mali-Eng-080122.pdf>. Acesso em: 28 de abril de 2022.

CIA. The World Factbook – Mali. 2022. Disponível em: <https://www.cia.gov/the-world-factbook/countries/mali/>. Acesso em: 21 de abril de 2022.

CSNU. Resolução 2085. Conselho de Segurança das Nações Unidas. 20 de dezembro de 2012. Disponível em: < http://unscr.com/en/resolutions/doc/2085>. Acesso em: 25 de abril de 2022.

CSNU. Resolução 2100. Conselho de Segurança das Nações Unidas.25 de abril de 2013. Disponível em: < http://unscr.com/en/resolutions/2100 >. Acesso em: 25 de abril de 2022.

ESLOVÊNIA. Mali. República da Eslovênia. 2022. Disponível em: < https://www.gov.si/en/policies/defence-civil-protection-and-public-order/slovenian-armed-forces/international-cooperation/mali/>. Acesso em: 23 de abril de 2022.

FMI. Second and Third Reviews Under the Extended Credit Facility Arrangement, Requests for Waivers of Nonobservance of Performance Criteria and Modification of Performance Criterion – Press Release; Staff Report; And Statement by the Executive Director of Mali. Relatório do Fundo Monetário Internacional n.º 21/67. Washington D.C., março de 2021, 111 p..

PNUD. Latest Human Development Index Ranking. Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. 2022a. Disponível em: < https://hdr.undp.org/en/content/latest-human-development-index-ranking >. Acesso em: 22 de abril de 2022.

PNUD. New threats to human security in the Anthropocene Demanding greater solidarity. Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. 2022b. Disponível em: < https://hdr.undp.org/sites/default/files/srhs2022.pdf >. Acesso em: 25 de abril de 2022.

TPI. Mali. Tribunal Penal Internacional. 2022. Disponível em: <https://www.icc-cpi.int/mali >. Acesso em: 27 de abril de 2022.

Gustavo Milhomem

Graduado em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Goiás. Idealizador do Dois Níveis.

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