BARRAGEM DO NILO AZUL: DISPUTA PELA ÁGUA NO NORTE DA ÁFRICA

BARRAGEM DO NILO AZUL: DISPUTA PELA ÁGUA NO NORTE DA ÁFRICA

A medida que o tempo passa, as tensões que envolvem a disputa por recursos naturais se tornam cada vez mais frequentes. Sob esta perspectiva, nota-se que água é um dos recursos naturais que mais gera atrito entre países. O Relatório Geral das Nações Unidas para o Desenvolvimento Hídrico de 2015, por exemplo, aponta que até 2050 a demanda por água aumentará em cerca de 50%, e isso, com certeza, acirrará a competição pelo recurso natural. E esse é o caso do aumento das tensões entre Sudão, Egito e Etiópia (sendo mais acentuado nas relações destes dois últimos). 

Abtew e Dessu (2019) apresentam outros cases de atritos entre nações no que se refere a utilização da água de rios fronteiriços, revelando assim, que o conflito na região do Rio Nilo não é exclusivo. São eles: “Rio Indus, entre Índia e Paquistão; Rio Colorado, Estados Unidos e México; Rio Mekong, China, Myanmar, Tailândia, Laos, Camboja e Vietnã; Rio Paraná, entre Brasil, Paraguai e Argentina; Rio Eufrates, Turquia Síria e Iraque; e Rio Ganges, Nepal e Índia”.

Estudiosos do campo de Segurança Internacional da década de 1990, área essa que possui como objeto de estudo o conflito (seja estatal ou não), buscavam explicar a correlação entre a escassez de recursos naturais e os conflitos. Desta forma, os autores (a exemplo de Homer-Dixon) concluíram que a escassez de recursos naturais se dá por meio da degradação dos recursos naturais, pelo consumo desenfreado e pela distribuição desigual, os quais, consequentemente, geram conflitos. Os estudos também concluem que a escassez de recursos naturais pode provocar movimentos migratórios, declínio econômico e enfraquecimento estatal, os quais resultam em insurgências, conflitos de causas étnicas e até golpes de Estado. Sendo assim, o argumento central é que a falta de recursos naturais gera conflitos entre grupos sociais dentro de um Estado, e que isso poderia desestabilizar toda a estrutura governamental. Levando isso em consideração, percebe-se que os governos procuram se afirmar na arena internacional com respeito a temática de recursos naturais, chegando ao ponto de iniciarem conflitos com outros Estados. E é aí que entra em ação a diplomacia hídrica, a qual tem sido posta em prática na região do Rio Nilo.  

Agora, quando se fala em Rio Nilo, qual país vem a mente? Possivelmente você pensa no Egito, certo? Desde os tempos mais remotos, o Nilo representa a vida, a cultura e a economia egípcia. Atualmente não é diferente. Sendo assim, verifica-se que cerca de 90% dos egípcios dependem das águas do Nilo. Ou seja, o país faraônico é altamente dependente da água deste famoso rio. Embora o nome apresente uma conexão ao Egito quase que “sintática”, a Bacia do Nilo, a qual também leva em consideração seus afluentes, abrange outros dez países: Burundi, Eritreia, Etiópia, Quênia, República Democrática do Congo, Ruanda, Sudão, Sudão do Sul, Tanzânia e Uganda. 

  
Curso do Rio Nilo / Imagem: BBC

O Rio Nilo é o mais extenso do mundo, com 6.853 km de águas que nascem na região do lago Victória, em Uganda, percorre todos os países citados anteriormente e deságua no mar Mediterrâneo, já em terras egípcias. Dentre os seus afluentes, o Rio Nilo Azul junto com os rios Atbara e Sobat correspondem a cerca de 85% do fluxo total do Rio Nilo. Portanto, tal rio se mostra um afluente bastante importante para a estabilidade hídrica da região. E é no Nilo Azul, um dos principais afluentes do Rio Nilo, na região fronteiriça da Etiópia com o Sudão, que se encontra a construção por parte do governo etíope, da Grande Barragem Etíope da Renascença (ou do inglês, Grand Ethiopian Renaissance Dam, GERD), a qual vem gerando um princípio de tensão entre Etiópia, Egito e Sudão. 

Já prevendo complicações na construção da barragem, em maio de 2012, o governo etíope convida os ministros dos assuntos relacionados à água do Egito e do Sudão para um encontro trilateral denominado Painel Internacional de Peritos (do inglês, International Panel of Experts). Na reunião, os ministros chegaram a conclusão que a documentação referente à engenharia da hidrelétrica GERD estava correta, porém não encontraram informações acerca do impacto da construção. Sendo assim, dois estudos (de forma independente) foram recomendados: uma simulação sobre o sistema hídrico e energético no ambiente transfronteiriço da GERD e um estudo socioeconômico dos impactos da construção da barragem. De acordo com Abtew e Dessu (2019), uma consultoria holandesa e outra francesa foram selecionadas para a realização do estudo. No entanto, após atrasos e desavenças entre Egito e Etiópia, a proposta foi abandonada pela empresa holandesa, a qual alegou que seria impossível realizar uma pesquisa neutra e de qualidade, inviabilizando assim, a realização do estudo. 

Localização da barragem GERD / Imagem: DW

Após o fracasso da primeira tentativa de negociação e o aumento das tensões em torno da construção da GERD, a qual vem causando instabilidade nas relações internacionais da região do Rio Nilo, os governos do Egito, do Sudão e da Etiópia, assinaram, à luz do direito internacional, a Declaração dos Princípios da GERD em Cartum, Sudão, no dia 23 de março de 2015, a qual possui mecanismos de resolução de conflitos por meio do multilateralismo e da cooperação, além da execução de boas práticas no que tange às negociações de demandas que possam surgir entre os atores. 

No entanto, a Declaração não conseguiu nortear as discussões de forma satisfatória. Egito e Sudão, por exemplo, temem que a barragem venha causar um desabastecimento em seus respectivos países por causa da possível redução do fluxo do rio, visto que o Nilo é extremamente importante para estas nações, e, ainda, são as águas do rio que dão as condições necessárias para se viver. Mesmo assim, após vaivéns da Etiópia e do Egito, no mês de Julho, o governo etíope decidiu iniciar o abastecimento da represa que formará a barragem, a qual principiou sua construção em 2011. Outro ponto de discordância é o tempo que levará para formar tal represa. O Egito quer que o abastecimento completo seja concluído entre 12 e 21 anos, já a Etiópia resiste a tal proposta e prefere que sejam apenas 7 anos o tempo de duração do preenchimento da barragem.

Em fevereiro de 2020, os Estados Unidos tentou mediar um acordo entre os atores estatais, porém não obteve sucesso. Nesse “jogo de xadrez” da região Nordeste da África, Egito e Sudão, buscando internacionalizar a questão, levou o caso ao Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU). Por outro lado, na tentativa de não globalizar o conflito, o Primeiro-Ministro da Etiópia, Abiy Ahmed [1], enviou uma notificação ao CSNU alegando que a União Africana (UA) teria plenas condições de resolver a situação. E foi um movimento certeiro, pois isso ia de encontro com as aspirações da Etiópia [2] na região e com os anseios da UA em se afirmar como representante do continente, fazendo valer, portanto, o termo do economista George Ayittey: “African Solutions to African Problems”.

O presidente da Comissão da UA, Moussa Faki Mahamat, concluiu que um dos principais pontos de discórdia entre as nações envolvidas seria a quantidade de água liberada pela hidrelétrica durante os períodos de seca na região. Ademais, Mahamat afirmou ainda, que os países envolvidos aceitaram a jurisdição do bloco sobre a temática, isto é, seria por meio da arena multilateral e dos mecanismos da UA que os países seriam conduzidos a um resultado comum. Portanto, seja pelas habilidades diplomáticas de Abiy Ahmed ou pela vontade da UA em resolver a questão, espera-se que os três países cheguem a um acordo satisfatório. Agora, resta esperar para ver quem conseguirá resolver o complexo conflito que se instalou em parte do Norte da África.

[1] Inclusive, devido a sua contribuição para o fim do conflito que perpetuou durante 20 anos entre o seu país e a vizinha Eritreia, ganhou o nobel da paz em 2019. Basicamente, o atrito entre os dois países se resumia a uma cidade. Eles disputavam a cidade fronteiriça de Badme, a qual não tinha nenhum recurso aparente para o motivo da desavença. Por esse motivo, o conflito ficou conhecido como “dois carecas brigando por um pente”. Tal conflito causou milhares de mortos até que, em 2018, Abiy Ahmed tomou uma série de medidas que culminou com a pacificação da região, uma delas foi a renúncia pelo território disputado e a retirada do estado de emergência.

[2] Vale ressaltar que a sede da União Africana fica em Adis Abeba, capital da Etiópia.

REFERÊNCIAS

ABTEW, W; DESSU, S. B. The Grand Ethiopian Renaissance Dam on the Blue Nile. Cham: Springer Geography, 2019. 173 p.

BBC NEWS. River Nile dam: Reservoir filling up, Ethiopia confirms. 2020. Disponível em: <https://www.bbc.com/news/world-africa-53416277>. Acesso em: 28 jul. 2020.

__________. Prêmio Nobel da Paz: primeiro-ministro da Etiópia, Abiy Ahmed, é premiado por acordo que encerrou 20 anos de guerra civil. 2019. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/internacional-50015652>. Acesso em: 28 jul. 2020.

CEIRI NEWS. Egito, Etiópia e Sudão: desavenças pela maior hidrelétrica da África. 2020. Disponível em: <https://ceiri.news/egito-etiopia-e-sudao-desavencas-pela-maior-hidreletrica-da-africa/>. Acesso em 28 jul. 2020.

DW. Acordo à vista entre Egito, Sudão e Etiópia sobre barragem do Nilo Azul? 2020. Disponível em: <https://www.dw.com/pt-002/acordo-%C3%A0-vista-entre-egito-sud%C3%A3o-e-eti%C3%B3pia-sobre-barragem-do-nilo-azul/a-53966115>. Acesso em 28 jul. 2020.

ISS. 18 September 2008: African Solutions to African Problems. 2008. Disponível em: <https://issafrica.org/iss-today/african-solutions-to-african-problems#:~:text=The%20catchall%20phrase%20%E2%80%9CAfrican%20solutions,acquired%20a%20degree%20of%20autonomy.>. Acesso em: 28 jul. 2020.

ONU. Deputy UN chief calls for ‘hydro-diplomacy’ as world faces growing water shortages. 2015. Disponível em: <https://news.un.org/en/story/2015/03/494732-deputy-un-chief-calls-hydro-diplomacy-world-faces-growing-water-shortages>. Acesso em 28 jul. 2020.

RØNNFELDT, C. F Three Generations of Environment and Security Research. Journal of Peace Research,  Vol. 34, No. 4, p. 473-482, 1997.

Thiago Barros

Graduado em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Goiás. Diretor Executivo do Dois Níveis.

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