TUNÍSIA: OS DESDOBRAMENTOS DA REVOLUÇÃO DE JASMIM E A LUTA POR DIAS MELHORES

TUNÍSIA: OS DESDOBRAMENTOS DA REVOLUÇÃO DE JASMIM E A LUTA POR DIAS MELHORES

A Tunísia foi responsável por um marco histórico em dezembro de 2010, quando protagonizou a Revolução de Jasmim, movimento que deu o ponto de partida para a Primavera Árabe [1]. A iniciativa tunisiana provocou um efeito dominó, a partir da saída do autocrata Zine El Abidine Ben Ali, em 2011, depois de 23 anos no poder, e que derrubou longas ditaduras em países como Egito, Líbia, Iêmen e Síria, entre outros, nos anos seguintes. 

A Revolução de Jasmim ou Revolução Tunisiana foi uma série de manifestações ocorridas de dezembro de 2010 a janeiro de 2011 por mudanças políticas, econômicas, sociais e culturais que resultaram na saída de Ben Ali, no posto desde 1987. O nome do movimento é uma referência à flor símbolo do país, o Jasmim.

Desde então, iniciou-se um processo de consolidação da democracia. Os tunisianos conseguiram uma nova Constituição e conquistaram o direito de escolher seus governantes, mas ainda convivem com os mesmos problemas sociais e econômicos, mesmo que em níveis diferentes. Isto posto, este artigo irá abordar os desdobramentos da Revolução de Jasmim na Tunísia, uma década depois do fim do regime autoritário de Ben Ali, completado em janeiro de 2021.

Conhecendo a Tunísia

A Tunísia está localizada no Norte da África, na região do Magrebe, entre Argélia e Líbia e é banhada pelo Mar Mediterrâneo. Tem uma população de mais de 11,5 milhões de habitantes e uma extensão territorial de 163.600 km² (um pouco maior do que o estado do Acre). O Islamismo é a religião predominante no país, sendo praticada pela quase totalidade da região e restante são cristãos ou judeus. O árabe é a língua oficial e mais falada, seguida pelo francês, influência da colonização, pois o país foi um protetorado da França de 1881 até 1956.  A capital e maior cidade é Túnis. Na parte cultural, o país reúne uma herança de diversas civilizações além da árabe-muçulmana (nômade, mediterrânea, cartaginesa, romana, otomana).

Histórico de longos governos

Ex-colônia da França, a Tunísia teve sua independência em 20 de março de 1956. Desde então, o primeiro-ministro Habib Bourguiba, líder da luta anticolonial, proclamou a República em 25 de julho de 1957 e tornou-se presidente do país, cargo que exerceria por mais de 30 anos (SALIBA; LOPES; ALEXANDRE, 2021, p. 222).

Com um governo pautado pela alternância de abertura e autoritarismo, em 7 de novembro de 1987, Bourguiba, fragilizado pela idade e pela saúde, foi retirado constitucionalmente pelo seu ex-primeiro-ministro nomeado um mês antes: Zine El Abidine Bem Ali (SALIBA; LOPES; ALEXANDRE, 2021, p. 223). Começava naquele momento uma nova era na Tunísia e um governo marcado pela autocracia.

Revolução de Jasmim e seus antecedentes

Em 2010, a insatisfação era crescente entre os tunisianos, que conviviam com problemas como desemprego, hiperinflação, criminalidade e péssimas condições de vida, além das restrições cada vez maiores à liberdade de expressão e punições aos opositores do regime de Ben Ali que perdurava há mais de duas décadas. Khanna (2008, p. 242) resume, a partir de um exemplo sucinto de um cidadão, o sentimento da população alguns anos antes do estouro da Revolução de Jasmim.

“O presidente Ben Ali refere-se à Tunísia como a terra do pensamento esclarecido, mas um jovem tunisiano que pegava carona para Dubai queixou-se: nunca poderei fazer o que quero no meu país”. (KHANNA, 2008, p. 242).

A gota d’água para o início dos conflitos aconteceu em dezembro de 2010, quando Mohamed Buazizi, um jovem comerciante de 26 anos, teve sua barraca de frutas confiscada pela prefeitura na cidade em que vivia (Sidi Bouzid), de onde tirava o sustento da família. Ele frequentemente era tratado com desprezo e humilhação pelas autoridades locais, o que não foi diferente quando foi tentar recuperar sua barraca (PANZERI, 2013, p. 27).

Não suportando mais o abuso de poder, a humilhação, as propinas e o autoritarismo, ele ateou fogo em si mesmo como protesto. Aquele gesto foi o que bastava para que as manifestações contrárias ao governo tunisiano se espalhassem país afora, lideradas principalmente pelos jovens, que faziam manifestações, comícios e greves, entre outros artifícios (2013, p. 27). Nascia assim a Revolução de Jasmim.

Arianni (2021, p. 11) faz a seguinte leitura sobre o clima no país: 

“É uma revolta do povo. De um povo que não tem trabalho, que tem fome e não consegue mais enfrentar o aumento criminoso dos preços de 20% a 30% do pão, do arroz, do óleo, do açúcar, do leite. Pedras, pedaços de garrafa, varas e qualquer outro objeto que possa armar os pobres daquela guerra. Até os jovens estão indo para a praça. O aumento do custo de vida, o desemprego (acima de 25%) e a escassez de habitação estão ficando cada vez mais uma mistura explosiva que o regime tenta conter com armas pesadas, canhões e gás lacrimogêneo”. (2021, p. 11, tradução minha).

A saída de Ben Ali passou a ser apenas uma questão de tempo. Em 10 de janeiro de 2011, em rede nacional, ele prometeu empregos e melhorias econômicas para a população. Mas seu discurso era cada vez menos convincente pelos acontecimentos em curso. Em 14 de janeiro, após várias tentativas fracassadas de reverter a situação, o autocrata fugiu para a Arábia Saudita.

Novos capítulos

A desistência de Ben Ali deu esperança aos tunisianos, que há muito desejavam condições de vida melhores e defendiam a democracia no país. Mas a sensação ainda era de incertezas sobre o futuro. Os governantes interinos da época discutiram, ainda em 2011, uma Assembleia Constituinte, formada no mesmo ano, eleita de forma democrática, com participação popular, o que representou o início da abertura política na Tunísia. Sua composição já sinalizava uma pluralidade partidária, com representantes de vários partidos representados e Moncef Marzouki declarado presidente (REIS, 2019).

Fim dos problemas? Ainda muito longe disso. A situação econômica ainda era preocupante. A falta de experiência de membros do governo com a administração pública e as acusações de envolvimento de aliados do governo com grupos extremistas ocasionaram problemas para o novo governo (SALIBA; LOPES; ALEXANDRE, 2021, p. 228).

Em 2013, novos fatos agravaram a já deteriorada situação política com o assassinato de oposicionistas à gestão Marzouki. O partido Ennahda, da base do então presidente, ficava mais enfraquecido e aumentavam as exigências de renúncia. Entretanto, em 26 de janeiro de 2014, a esperada Constituição tunisiana era aprovada e regeria o novo governo. Foram realizadas eleições legislativas em outubro e a votação para presidente ocorreu em novembro daquele ano, com o governo sendo empossado em janeiro de 2015. Assim, o país deu mais um passo na sua transição democrática e modernização política (SALIBA; LOPES; ALEXANDRE, 2021, p.231).

Contudo, o surgimento de novos atentados terroristas pôs novamente em xeque a estabilidade política e a consolidação da democracia, além de preocupar a comunidade internacional. Manter as conquistas de antes no âmbito democrático tornou-se um desafio.

Os anos seguintes foram marcados por turbulências políticas, denúncias de corrupção, crise econômica, entre outros problemas que se prolongaram até o turbulento processo eleitoral de 2019, em que um dos candidatos, o empresário Nabil Karoui, foi preso por fraude fiscal. Ainda assim, teve a segunda maior votação no primeiro turno e disputou o segundo turno depois de ser libertado por decisão judicial, mas acabou derrotado pelo jurista Kaïs Saïed (SALIBA; LOPES; ALEXANDRE, 2021, p. 236).

Governo novo, velhos problemas

A Tunísia ainda convive com recessão econômica, desemprego, condições de vida precárias e os protestos da população por todo o país, o que mostra que a permanente insatisfação por parte dos tunisianos, como define Olfa Lamloum, diretora do escritório da ONG internacional Alert em Túnis [3] (CACCIA; PYL; HABERT; PRADO, 2021, p. 24):

“Ao final de uma década, a constatação não deixa dúvidas:  aqueles que substituíram o ditador caído traíram a promessa de dignidade que a revolução levantou. Esta última foi inclusive rebatizada pelas autoridades de ‘transição democrática’, uma maneira sutil de negar qualquer legitimidade política àqueles que conduziram a contestação.  Essa ‘transição’ está em crise.” (2021, p. 24).

Considerações finais

É inegável que houve avanços no sistema político da Tunísia de uma forma peculiar, sem seguir padrões e exemplos do Ocidente, com o reconhecimento internacional. O esforço pela instalação da democracia foi visível nestes dez anos que sucederam a saída de Ben Ali, com a promulgação de uma nova Constituição, eleições com participação popular para escolher o presidente e os representantes do Legislativo.

Da mesma maneira que a população conquistou o direito de votar, também passou a cobrar mais das autoridades em forma de protestos em prol de seus anseios econômicos e sociais. Portanto, pode-se dizer que a Tunísia vive uma realidade bem diferente dos tempos de ditadura, em que a falta de liberdade de expressão era uma marca. Houve progresso expressivo nesse sentido, com os meios de comunicação com maior independência. As mulheres também tiveram mais direitos reconhecidos, como o de disputar cargos públicos. Assim, a capital Túnis elegeu em 2018 uma prefeita (Souad Abderrahim) pela primeira vez na história, tornando-se um feito inédito em um país árabe.  

Pelo histórico de guerras e violência nos países árabes, a transição tunisiana para a democracia ocorreu de forma considerada mais pacífica e moderna, o que tornou o país um exemplo bem-sucedido de mudança institucional, pois o país enfrentou diversas crises internas, mas conseguiu prosseguir com o objetivo de consolidar a tão sonhada democratização. 

Mas como todo país que passa pelo desenvolvimento de um novo modelo de governança, há desafios, especialmente nos aspectos econômicos e sociais. A Tunísia ainda tem um longo caminho a percorrer, mas a cada eleição presidencial – e já foram três depois da Era Ben Ali -, renova-se a esperança do povo daquele país. Não é um processo simples nem de curto prazo, pois há obstáculos como corrupção, fraudes, terrorismo, entre tantos outros que os tunisianos precisam enfrentar para viverem dias melhores.

SUMÁRIO

[1] – A Primavera Árabe consistiu em uma revolução iniciada na Tunísia (com a Revolução de Jasmim), depois no Egito, que se espalhou pelos países do Norte da África e Oriente Médio, organizada nas redes sociais, que culminou em guerras civis e protestos que resultaram no fim de vários regimes ditatoriais da região.

[2] – Capital da Tunísia

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CACCIA Bava, Silvio; PYL, Bianca; HABERT Paciornik, Cesar; PRADO, Samantha. Le Monde Diplomatique Brasil: Edição 162. 2021. Edição do Kindle.

DI FÁTIMA, Branco. Revolução de Jasmim: a comunicação em rede nos levantes populares da Tunísia. Disponível em https://repositorio.iscte-iul.pt/bitstream/10071/13872/1/Revolu%C3%A7%C3%A3o%20de%20Jasmim.pdf. Acesso em 21/05/2021.

GHERSI, Arianne. La “Primavera Araba” nella stampa italiana Egitto e Tunisia. l’Universale. 2021. Edição do Kindle.

KHANNA, Parag. O segundo mundo: impérios e influência na nova ordem global. Tradução de Clóvis Marques. Intrínseca, 2008.

PANZERI, Jose Luiz. Primavera Árabe: A Vitória Possível. Edição do autor. 2013. Edição do Kindle.

REIS, Ana Gabriela Costa. A Revolução de Jasmim: modernidade e secularismo na transição política da Tunísia. Revista Cadernos Internacionais. PUC-Rio. 2019. Disponível em <https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/45994/45994.PDF>. Acesso em 20/05/2021
SALIBA, Aziz Tuffi; LOPES, Dawisson E. Belém; ALEXANDRE, Marcos Antônio. Coleção Desafios Globais. Volume 1 – África. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2021.

IMAGENS

EASTON, Tim – Disponível em <https://www.flickr.com/photos/bathgate_wildlife/5339747585/in/dateposted/>. Acesso em 19/05/2021

MAPA MUNDI – Disponível em <https://www.mapa-mundi.org/>. Acesso em 31/05/2021

YEALACIS – Disponível em <https://www.flickr.com/photos/yelacis/6941650097/in/photolist-bzpLJn-ga4rEm-d1sTBC>. Acesso em 21/05/2021

TUNES, Nidaa – Disponível em <https://fotospublicas.com/pesquisas-na-tunisia-apontam-vitoria-candidato-laico-essebsi-nas-eleicoes/>. Acesso em 22/05/2021

Pablo de Deus Ulisses

Jornalista e estudante do 5° semestre de Relações Internacionais na Estácio de Sá.

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