GUATEMALA: O COMBATE À CORRUPÇÃO E A DESCRENÇA DO POVO

GUATEMALA: O COMBATE À CORRUPÇÃO E A DESCRENÇA DO POVO

Foto: REUTERS/Luis Echeverria 

A Guatemala é um país centro-americano banhado pelos oceanos Atlântico e Pacífico. Sua história é milenar e, antes mesmo do Estado-nação hoje conhecido como Guatemala florescer ali, os Maias ocupavam a região. Sua população é estimada em 17 milhões de habitantes e está concentrada no sul do país, sendo que a maioria são moradores da área rural. O país é o mais populoso da América Central e possui a maior taxa de natalidade de toda a América Latina, com 2,72 filhos em média por guatemalteca, com projeções atualizadas deste ano (CIA, 2020). O país também tem uma população nova, em média 23 anos de idade. Portanto, é um país novo, com altas taxas de nascimento e vive entre dois oceanos centrais para o comércio mundial. A impressão que se tem é de um país pacato e com potencial econômico, correto? Mas a situação política está longe de ser pacata. A imagem destaque deste artigo é do Congresso da Guatemala em novembro de 2020. Como a situação chegou a este ponto?

Breve história do país e o lançamento da Comissão Internacional Contra a Impunidade na Guatemala (CICIG)

Durante o século XX, o país sofreu diversos ataques às suas tentativas de instaurar a democracia. No meio de tantas instabilidades, realiza-se um golpe de Estado em 1954, contra o democraticamente eleito presidente Jacobo Árbenz. Logo mais, em 1960, inicia-se a Guerra Civil da Guatemala, que dura desse ano até 1996. As três décadas e meia de guerra resultaram em aproximadamente 200.000 mortos (LIMA, 2020), um Estado corrupto e um país marcado pela pobreza. Em 1996, o primeiro presidente do período pós-Guerra, Álvaro Arzú, assina o acordo de paz com as guerrilhas e cessa a guerra.

Porém, mesmo com o encerramento da guerra e relativa estabilidade no país, ainda havia alta percepção de corrupção e irregularidades no governo federal. Em pesquisa realizada no ano de 2006, pesquisadores identificaram que 76,4% da população considerava “comum” ou “muito comum” a corrupção entre autoridades públicas na Guatemala (NAVIA; PERELLÓ; MASEK, 2019, p. 8). Além do mais, a atuação de grupos criminosos dentro da estrutura do Estado ameaçava a democracia e atos anticorrupção pelas instituições estatais. O funcionamento destes grupos criminosos, ou CIACS, é descrito na imagem 1.

Imagem 1 – Fases de Domínio do Estado por Grupos Criminosos[1]

Fonte: GUTIÉRREZ, 2016, p. 90

Para que o problema da corrupção fosse resolvido, uma coalizão de organizações não-governamentais (ONGs): Human Rights Watch, Washington Office for Latin America (WOLA), Anistia Internacional, juntamente com a Missão de Verificação das Nações Unidas na Guatemala (MINUGUA), missão de Paz da ONU, juntamente com os governos canadenses, dos Estados Unidos da América (EUA) e alguns da União Europeia[2], buscou a criação de uma comissão internacional para o combate à corrupção no país (EQUIZÁBAL, 2015, p. 2).

Após o desenvolvimento da ideia, a comissão estava num estado de stand-by. Entre 2004 e o início de 2007, a instituição não estava em funcionamento. Porém, com o assassinato de três políticos do Parlamento Centroamericano na Guatemala, houve apoio político para a retomada da Constituição. O padrinho político deste projeto no governo foi o então vice-presidente Eduardo Stein, e, com isto, no mesmo ano é lançada as atividades da Comissão Internacional contra a Impunidade da Guatemala (CICIG). O acordo com a ONU foi de soberania compartilhada, na qual:

[…] a Guatemala cederia parte de sua soberania ao incorporar fiscais e investigadores internacionais em processos penais internos, e a ONU cederia também ao ater-se às leis e tribunais guatemaltecos, e não aos tribunais internacionais, para sustentar as acusações contra os acusados[3]. (GUTIÉRREZ, 2016, p. 84).

Então, quais são as principais funções da CICIG?

Segundo o acordo internacional que deu origem a Comissão (CICIG, 2006), as suas principais funções são: a) identificar a existência e atuação de organizações criminosas que atuam dentro do território guatemalteco, assim como identificar suas formas de financiamento e possíveis elos com o Estado da Guatemala; b) colaborar com o Estado guatemalteco nas desarticulações destes grupos criminosos e auxiliar no devido processo legal por crimes cometidos por seus membros; e c) Recomendação à Guatemala de medidas de boas práticas públicas para o combate destes crimes, incluso reformas jurídicas e institucionais.

Quais foram os resultados da CICIG?

Os resultados práticos da CICIG são, em geral, divididos pela gestão dos três chefes que a comandaram. O primeiro foi o jurista espanhol Carlos Castresana (2007-2010), que deu as bases legais para a estabilidade e pleno funcionamento da comissão, assim como fez as sugestões de reformas judiciais preconizadas na Carta de estabelecimento da Comissão. Em sua gestão, foi preso o ex-presidente Alfonso Portillo (2000-2004) por apropriação indevida de dinheiro público e acusou o então presidente Álvaro Colom (2008-2012) de ordenar a morte do advogado Rodrigo Rosenberg (SCHWARTZ, 2019, p. 202).

Na gestão do Comissionado-geral Iván Velásquez (2013-2019), atuou-se em investigações em desfavor do partido político do presidente em exercício, Otto Peréz Molina (2012-2015), o Partido Patriota. A gota d’água veio com o escândalo conhecido como La Línea, que foi revelado fraudes alfandegárias no valor de US$ 120 milhões entre 2014 e 2015. Com isto, manifestantes de todas as matrizes políticas foram à Praça da Constituição na Cidade da Guatemala exigindo a renúncia do presidente e da vice. Os dois renunciam em setembro de 2015, e os eventos são conhecidos como Primavera Guatemalteca (SCHWARTZ, 2019, p. 202).

A CICIG já sofreu diversas críticas, principalmente por necessariamente relacionar os grupos corruptos com a coalizão anti-corrupção, uma vez que os funcionários da Comissão deviam se submeter ao processo legal que por vezes estava corrompido pela corrupção generalizada. Por este motivo, já compararam tal situação com o Drácula sendo responsável pelos estoques de sangue. De qualquer maneira, e levando em conta suas falhas, ainda entende-se a Comissão como fundamental para uma coalizão nacional que une estudantes, comunidade maia, empresários e outros grupos pela pauta anti-impunidade. (SCHWARTZ, 2019, p. 203).

A CICIG hoje

A CICIG não mais existe. Na sua carta constitutiva de 2006, aqui já citada, foi definido que seu mandato era de apenas dois anos, podendo ser postergada indefinidamente. Portanto, a cada dois anos esperava que os presidentes da república renovassem a CICIG. Como ela teve muito apoio popular, mesmo que a Comissão impactasse politicamente seu partido ou a sua pessoa, os presidentes tendiam a renová-la, pois a extinção da Comissão seria mais negativa para seu capital político. Porém, o último presidente do país, o comediante Jimmy Morales, sai do governo em 2019 sem renová-la, e, portanto, a Comissão encerra suas atividades no fim de 2019.

Os Protestos e a Queimada do Congresso Nacional

         Após doze anos de atuação, resultados significativos no combate à corrupção nacional e a passagem pelo governo de cinco presidentes diferentes, tem-se o primeiro governo sem a atuação da Comissão. No fim de 2019 é eleito presidente do país Alejandro Giammatei. Assume em 14 de janeiro de 2020. Porém, em alguns meses de governo, o novo presidente já passa por uma grave crise política: os protestos de novembro de 2020 no país. Jovens indignados com a corrupção vão à Praça da Constituição, a mesma praça que levou à derrubada do presidente Molina, e pedem a saída do presidente, a recusa do Congresso de aprovar um orçamento que diminui o financiamento da saúde e educação.

Porém, as pautas lembram aquelas das manifestações de 2013 no Brasil: são generalizadas, composta pelos setores mais diversos da sociedade, e não tem como alvo apenas um ou outro político, mas todo o sistema. Não é possível simplificar os protestos à apenas a pauta orçamentária. O maior orçamento da história da Guatemala, que deve levar à um aumento da dívida pública, foi apenas a gota d’água de uma insatisfação crescente entre o povo guatemalteco. A má administração da crise do coronavírus, o orçamento, a sensação de corrupção generalizada nas instituições políticas do país, todos são fatores determinantes para a realização destes protestos pela região.

No momento que escrevo este artigo, está na terceira semana seguida de protestos, e o governo começa a ceder. Nesta semana o presidente Giammatei anunciou uma reforma geral de seus ministros. 31 de dezembro será o último dia do atual gabinete, com uma reforma profunda em janeiro de 2021, sendo esta uma mensagem do presidente de união nacional (SAPALÚ, 2020). Até onde chegarão as manifestações que estão em curso? Conseguirão os manifestantes derrubar outro presidente, ou as reformas supracitadas pacificarão a indignação popular? Estas são respostas que precisamos buscar. As manifestações no país centro-americano são muito importantes para a política da região e não recebem atenção necessária da mídia, mesmo a mídia dos países latino-americanos. Entender a situação guatemalteca é entender a agonia de um povo que luta por uma melhora de vida.

 

BIBLIOGRAFIA

CIA. The World Factbook – Guatemala. 2020. Disponível em: <https://www.cia.gov/library/publications/the-world-factbook/geos/gt.html>. Acesso em: 7 dez 2020.

CICIG. Acuerdo entre la Organización de las Naciones Unidas y el gobierno de Guatemala relativo al establecimiento de una Comisión Internacional contra la Impunidad en Guatemala. 2006. Disponível em: <https://www.cicig.org/uploads/documents/mandato/acuerdo_creacion_cicig.pdf>. Acesso em: 07 dez 2020.

____. El legado de justicia em Guatemala. Informe de encerramento. CICIG. 2019. Disponível em: <https://www.cicig.org/wp-content/uploads/2019/08/InformeLegadoJusticia_SI.pdf>. Acesso em: 7 dez 2020.

EQUIZÁBAL, Cristina. Logros y limitaciones de la Comisión internacional contra la impunidad em Guatemala (CICIG). FUNDE: San Salvador, 2015. Disponível em: <http://www.funde.org/logros-y-limitaciones-de-la-comision-internacional-contra-la-impunidad-en-guatemala-cicig>. Acesso em: 7 dez 2020.

GUTIÉRREZ, Édgar. Guatemala fuera de control: la CICIG y la lucha contra la impunidad. Nueva Sociedad: n. 263, p. 81-95, 2016.

LIMA, Lioman. Masacre de Dos Erres: así fu ela mayor matanza de la guerra civil em Guatemala por la que EE.UU deportó a um exmilitar después de 20 años. BBC. 2020. Disponível em: <https://www.bbc.com/mundo/noticias-america-latina-51731353>. Acesso em: 7 dez 2020.

SAPALÚ, Lucero. Giammatei anuncia el cierre del Centro del Govierno. El Periódico, 2020. Disponível em: <https://elperiodico.com.gt/nacionales/2020/12/04/giammattei-anuncia-el-cierre-del-centro-de-gobierno-2/>. Acesso em: 7 dez 2020.

SCHWARTZ, Rachel. Guatemala’s Anti-Corruption Struggle Teeters on the Edge. NACLA Report on the Americas: v. 51, p. 200-205, 2019.

NAVIA, Patricio; PERELLÓ, Lucas; MASEK, Vaclav. The Determinants of Perception of Corruption in Guatemala, 2006-2016. Public Integrity: Nova Iorque, 2019.

[1] Em tradução para o português, temos: “Fase 1: Predatória – os grupos criminosos instalam-se no Estado contrainsurgente. Fase 2: parasitária – os grupos criminosos infiltram órgãos de segurança do Estado. Fase 3: simbiótica – os grupos criminosos cooptam a população e controlam territórios. Fase 4: Os grupos criminosos levam ao Estado falido” –  tradução própria.

[2] No seu relatório final, a CICIG agradece a todos os países que colaboraram, política e financeiramente nos seus doze anos de atuação (2007-2019). São os seguintes países: Alemanha, Argentina, Canadá, Chile, Colômbia, Dinamarca, Espanha, EUA, Finlândia, França, Irlanda, Itália, México, Noruega, Países Baixos, Perú Reino Unido, Suécia, Suiça, União Europeia e Uruguai (CICIG, 2019).

[3] No original: “[…] Guatemala cedería parte de su suberanía al incorporar a fiscales e investigadores internacionales em processos penales internos, y la ONU cedería también de alguna manera al atenerse a las leyes y los tribunales guatemaltecos, y no a los tribunales internacionales, para sostener acusaciones en contra los acusados”.

Gustavo Milhomem

Graduado em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Goiás. Idealizador do Dois Níveis.

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