A CRISE POLÍTICA BOLIVIANA DE 2019 E O PAPEL DA OEA NA FOMENTAÇÃO DA INSTABILIDADE

A CRISE POLÍTICA BOLIVIANA DE 2019 E O PAPEL DA OEA NA FOMENTAÇÃO DA INSTABILIDADE

Fonte: Joaquín Eguren, 2008.

1.A chegada do Movimento ao Socialismo (MAS) ao poder e a escalada da crise política em 2019;

Desde a consolidação de sua independência em 1825 e especialmente durante o século XX, a Bolívia foi palco de sucessivos golpes de estado, apresentando um cenário de grande instabilidade política, econômica, social e cultural (Castro et al., 2020). Na década de 1990, o país foi alvo da implementação das medidas econômicas neoliberais, especialmente as privatizações, acarretando em uma imensa insatisfação popular da classe trabalhadora boliviana, devido à restrição de seus acessos a serviços básicos, como por exemplo, o direito da posse de água (Castro et al., 2020). Essa restrição acabou resultando no levante popular, no ano de 2000, na cidade de Cochabamba, conhecido como a Guerra da Água. Nesse levante, os manifestantes reivindicavam o fim da privatização no setor de saneamento ( Castro et al., 2020)

Esse quadro de insatisfações populares em relação à restrição de acessos a direitos sociais básicos,  somados com o quadro de instabilidade crônica do país, acabou por consolidar Evo Morales na presidência do país em 2006, por meio de seu partido, o Movimento ao Socialismo (MAS). A chegada de Evo ao poder trouxe mudanças institucionais significativas no país, começando pelo fato de que pela primeira vez , a Bolívia seria  governada por um líder indigenista (Castro et al., 2020).


Figura 1: Evo Morales

Fonte: Alain Bachellier, 2006

 

 Nos 13 anos em que o país foi governado por Evo Morales de forma ininterrupta, (2006-2019), foi promovida uma ampla participação estatal na economia e foi implementado programas de redistribuição de renda, a fim de alcançar grupos marginalizados da sociedade (Castro et al., 2020). Além disso, o ex-mandatário conseguiu aprovar uma nova constituição para o país em 2009, responsável por renomear o estado boliviano para o Estado Plurinacional da Bolívia (Castro et al., 2020). Ao abarcar a grande diversidade cultural do país, o Estado Plurinacional colocou os marginalizados povos originários no centro do processo de construção política. Estima-se que existam no país, um contingente proporcional de 62,2% de grupos indígenas, um dos maiores da América Latina (Campos, 2014).

A permanência de Evo Morales no poder foi marcada por  um período de estabilidade econômica, redução da desigualdade social em virtude dos programas de redistribuição de renda, melhoria da infraestrutura do país, fomento a industrialização, exploração estatal dos recursos naturais, crescimento do PIB e especialmente uma melhoria nos direitos sociais dos bolivianos, como acesso à educação, saúde, transporte, entre outros (Castro et al., 2020). Além disso, através da Constituição de 2009, Evo conseguiu duas reeleições consecutivas para  mandatos presidenciais de 5 anos (2010-2014; 2015-2019). 

Contudo, mesmo que tenham ocorridos avanços significativos para a população boliviana durante os governos de Evo, os 3 mandatos do ex-presidente foram marcados por polêmicas e inconsistências. Um exemplo disso é em relação a redução da disparidade social na Bolívia. Mesmo que os programas de redistribuição de renda tenham sido eficazes para tirar uma considerável parcela dos bolivianos da linha da extrema pobreza, o país apresenta uma das taxas de desigualdade social mais alta da América Latina (Quelle, 2018). Estima-se que cerca de 39% dos bolivianos vivem em uma condição de pobreza (Quelle, 2018). Os moradores das áreas rurais são os que mais sofrem com essa condição, ainda mais levando em consideração que a maioria da população boliviana vive em zonas rurais (Quelle, 2018). Tais fatos apontam que as disparidades socioeconômicas no país ainda são agravantes. 

Uma das raízes da polarização da sociedade boliviana tem início em 2012, por meio do desentendimento do governo de Morales com os povos originários acerca da construção de uma rodovia no Território Indígena e Parque Nacional Isidoro Securé (TIPNIS). Esse evento fez com que várias lideranças indígenas rompessem com MAS, dando início a um sentimento de insastifação popular (Castro et al., 2020). Em dezembro de 2014, a Human Rights Watch endereçou uma carta a Evo, chamando a atenção para algumas leis que foram aprovadas em anos anteriores, que limitavam seriamente o pleno exercício dos direitos humanos dos bolivianos (Human Rights Watch, 2014).

O estopim para a deflagração da crise em 2019 acontece no ano de 2016, quando o ex- presidente convoca um plebiscito para tentar sua candidatura para um 4º mandato  (Castro et al., 2020). A tentativa de Evo de se perpetuar no poder fora dos limites constitucionais fez com que a oposição começasse a agir de forma ferrenha a fim de difamar sua reputação, alegando que ele tinha uma filha com uma menor de idade, o que posteriormente foi descoberto que era uma afirmação falsa (Castro et al., 2020). O resultado do plebiscito foi contrário a uma nova reeleição de Evo. Com o resultado negativo do plebiscito, o MAS alegou que a não candidatura de Morales representava uma séria violação dos direitos humanos (Castro et al., 2020)

Tais desgastes abriram caminho para os problemas se agravarem em 2017, quando o Tribunal Constitucional Plurinacional deu sinal verde para Evo concorrer a um 4º mandato (Molina, 2017). A decisão do Tribunal concebia o direito de Evo disputar a reeleição indefinidamente (BBC, 2018). Antes mesmo do parecer do tribunal, uma parcela dos bolivianos já demonstravam suas insatisfações através de protestos contra a nova tentativa de reeleição de Evo e o desrespeito contra o resultado do plebiscito (Staff, 2017). Em dezembro de 2018, o Tribunal Eleitoral Boliviano deu o aval definitivo para Evo se candidatar à reeleição (Presse, 2018a). A decisão deixou os opositores ao governo indignados, acarretando em novos protestos violentos, que culminaram no incêndio na sede do Tribunal Eleitoral em Santa Cruz (Presse, 2018b). Mesmo com toda essa conjuntura, a oposição não conseguiu se articular para lançar um candidato forte o suficiente para derrotar Evo (Castro et al., 2020).

Esse cenário acabou gerando um clima de extrema instabilidade e polarização para as eleições de 2019 (LUIGI, 2020). Mesmo com uma eleição mais acirrada, Evo conseguiu derrotar seu opositor, o ex-presidente Carlos Mesa. A crise se agravou ainda mais depois que a Organização dos Estados Americanos (OEA) divulgou um relatório, afirmando ter ocorrido fraudes nas urnas. A afirmação desencadeou uma  ocorrência de protestos violentos contra o resultado do pleito. Em 11 de setembro de 2019, as forças armadas bolivianas forçaram Evo Morales a se resignar como presidente do Estado Plurinacional da Bolívia. Em 12 de dezembro de 2019, a segunda vice-presidente evangélica do Senado, Jeanine Áñez, toma posse como presidente interina do país.

2. A posse de Jeanine Áñez e as declarações infundadas da OEA;

Figura 2: A presidente interina com uma bíblia junto com membros opositores ao MAS

Fonte: A great reckoning, 2019.

Com o vácuo de poder deixado por Evo, o ex-vice-presidente Álvaro García Linera também renunciou de suas funções. Posteriormente, a presidente do Senado, Adriana Salvatierra, o presidente da Câmara dos Deputados, Victor Borda, juntamente com o vice-presidente do Senado Rúben Medinacelli também renunciaram aos seus cargos, em uma tentativa de apoio a Morales (G1, 2019). Por meio de uma linha sucessória indefinida, assim como a suspensão de uma sessão para definir a sucessão sem o quórum dos membros do MAS, a segunda vice-presidente do Senado, Jeanine Áñez, se declarou como presidente interina. 

Em relação ao não comparecimento  do MAS, os membros do partido alegaram que não teriam garantias de segurança suficientes para se deslocarem até a capital La Paz, em virtude da eclosão dos protestos violentos (G1, 2019). Por mais que a senadora não tenha obtido o quórum mínimo para ser eleita presidente interna, Áñez fez uso de uma jurisprudência do ano de 2001, em que o antigo Tribunal Constitucional decidiu que o presidente do Senado poderia assumir o mandato presidencial em caso de vácuo de poder ( O Globo, 2019). Como a Presidente do Senado Adriana Salvatierra tinha renunciado, pelas regras de sucessão da casa, Áñez era a próxima na linha sucessória para exercer a presidência interina (O Globo, 2019). 

 Após tomar posse, Jeanine obteve um reconhecimento bem rápido de alguns países do cone sul, como Brasil e Colômbia, assim como do Reino Unido e Estados Unidos (LUIGI, 2020). A principal função de Áñez era a de convocar novas eleições em um prazo de 90 dias, além de pacificar o país.

A presidente interina falhou na estratégia de pacificação da nação. Durante o período em que que governou a Bolívia, Áñez ficou marcada por fomentar a perseguição contra membros do MAS, do silenciamento de jornalistas opositores e até mesmo na sua intenção de se candidatar para as eleições gerais, que viriam a acontecer em 3 de maio de 2020 (LUIGI, 2020).

A Organização dos Estados Americanos (OEA) teve um papel central em incentivar o caráter violento dos protestos e o cenário de  instabilidade. Desde 1989, a organização realiza missões de observação eleitoral, a fim de garantir credibilidade para os sistemas eleitorais da América Latina e do Caribe (Saltalamacchia Ziccardi, 2020). Em termos gerais, as missões de observância eleitoral trouxeram impactos positivos para a consolidação dos regimes democráticos sul-americanos e caribenhos (Saltalamacchia Ziccardi, 2020). No entanto, o mesmo não pode ser dito sobre a atuação da organização nas eleições bolivianas de 2019.

Quando a OEA alegou que poderia haver fraudes nas urnas, por meio de argumentos questionáveis e rasos,  as eleições da Bolívia de 2019, que já não tinham uma percepção de credibilidade, tendo em vista a manobra inconstitucional do MAS em lançar Evo como candidato pela quarta vez, perdem totalmente sua legitimidade, estimulando a onda de protestos que tomou conta da Bolívia antes e depois da renúncia de Evo Morales (Saltalamacchia Ziccardi, 2020). Em teoria, a OEA precisa estar livre de amarras ideológicas e adotar uma postura de neutralidade para realizar uma missão de observação eleitoral transparente e concisa. Esse não foi o caso da Bolívia.

 O responsável por dar o parecer final da missão eleitoral era o Secretário Geral da OEA, Luis Almagro. Desde o início do pleito, Almagro adotava uma postura de grande parcialidade, defendendo o discurso de fraude nas urnas sem provas concretas (Saltalamacchia Ziccardi, 2020). O  MAS tentou dialogar com a organização diversas vezes, o próprio Evo afirmou que respeitaria as conclusões da organização e caso a missão encontrasse alguma inconsistência no sistema das urnas, novas eleições seriam convocadas imediatamente (Saltalamacchia Ziccardi, 2020).

O que se pode observar é que  desde o início houve uma completa relutância da OEA em cooperar com o MAS, a fim de realizar um processo de observação eleitoral assertivo. Vários institutos de pesquisa, como o Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) realizaram várias análises no pleito eleitoral boliviano de 2019 e não encontraram nenhuma inconsistência como a OEA alegava. 

3. Conclusão

Findando a discussão proposta nesse artigo, é possível inferir que a crise política que tomou conta da Bolívia em 2019 possui várias nuances e diferentes graus de complexidade. O que pode ser analisado é que houveram manobras inconstitucionais tanto por parte do MAS, assim como da oposição. Além disso, não se pode ignorar como o papel da missão de observação eleitoral da OEA, somados com as manobras inconstitucionais, acabaram por intensificar a polarização da sociedade boliviana e agravando o quadro de instabilidade crônica que faz parte do país desde seus primórdios. Com o retorno do MAS nas eleições de 2020, por meio do atual presidente Luis Arce, resta saber como a persistente polarização boliviana vai se transformar nos próximos anos e como ela poderá influenciar as futuras crises políticas do país.  

Nota de rodapé

  1. A renomeação do estado boliviano para o Estado Plurinacional da Bolívia em 2009, um regime político decolonial, permitiu que fosse possível trazer para o processo de construção política a grande diversidade cultural que faz parte do país. Há hoje na Bolívia o reconhecimento de mais de 37 línguas oficiais, além do castelhano. 

REFERÊNCIAS

Bolivia: Carta al Presidente Evo Morales sobre Derechos Humanos. Human Rights Watch. Disponível em: <https://www.hrw.org/es/news/2014/12/15/bolivia-carta-al-presidente-evo-morales-sobre-derechos-humanos>. Acesso em: 22 fev. 2023.

CAMPOS, A. C. Relatório da ONU aponta aumento do número de indígenas na América Latina. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/internacional/noticia/2014-09/relatorio-da-onu-aponta-aumenta-do-numero-de-indigenas-na-america>. Acesso em: 20 fev. 2023.

CASTRO, Fábio Sousa Mendonça de; GUERRA, Sinclair Mallet Guy; FILHO, Paulo Alves de Lima. Bolívia pré-golpe. Revista Fim do Mundo, n. 01, p. 104–133, 2020.

Entenda a jurisprudência que deu a Jeanine Áñez a brecha para se declarar presidente da Bolívia – Jornal O Globo. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/mundo/entenda-jurisprudencia-que-deu-jeanine-anez-brecha-para-se-declarar-presidente-da-bolivia-24079654>. Acesso em: 22 fev. 2023.

Jeanine Áñez se declara presidente da Bolívia em Congresso sem quórum. G1. Disponível em: <https://g1.globo.com/mundo/noticia/2019/11/12/jeanine-anez-assume-como-presidente-de-bolivia.ghtml>. Acesso em: 22 fev. 2023.

LUIGI, Ricardo. A Crise Na Bolívia: Da Renúncia Do Presidente Evo Morales À Convocação De Novas Eleições. Boletim de Conjuntura (BOCA), v. 1, n. 3, p. 34–40, 2020.

MOLINA, Fernando. Evo Morales consegue liberação na Justiça para se candidatar ao quarto mandato. El País Brasil. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2017/11/29/internacional/1511917821_762144.html>. Acesso em: 22 fev. 2023.

Por que decisão da Justiça de deixar Evo Morales concorrer a 4o mandato divide a Bolívia. BBC News Brasil. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/internacional-46452050>. Acesso em: 22 fev. 2023.

PRESSE, France. Protesto contra Evo Morales incendia Tribunal Eleitoral na Bolívia. G1. Disponível em: <https://g1.globo.com/mundo/noticia/2018/12/12/protesto-contra-evo-morales-incendia-tribunal-eleitoral-na-bolivia.ghtml>. Acesso em: 22 fev. 2023.

PRESSE, France. Tribunal Eleitoral Boliviano autoriza Evo Morales a disputar 4o mandato. G1. Disponível em: <https://g1.globo.com/mundo/noticia/2018/12/05/tribunal-eleitoral-boliviano-autoriza-evo-morales-a-disputar-4o-mandato.ghtml>. Acesso em: 22 fev. 2023.

QUELLE, Kathryn. Top 10 Facts About Hunger in Bolivia. The Borgen Project. Disponível em: <https://borgenproject.org/top-10-facts-about-hunger-in-bolivia/>. Acesso em: 22 fev. 2023.

SALTALAMACCHIA ZICCARDI, Natalia. La OEA en la elección presidencial de Bolivia: problemas de credibilidad. Análisis Carolina, 2020. Disponível em: <https://www.fundacioncarolina.es/la-oea-en-la-eleccion-presidencial-de-bolivia-problemas-de-credibilidad/>. Acesso em: 17 fev. 2023.

STAFF, Reuters. Bolivianos protestam contra nova tentativa de Morales de concorrer a 4o mandato presidencial. U.S. Disponível em: <https://www.reuters.com/article/bolivia-protesto-morales-idBRKBN1CG1EX-OBRTP>. Acesso em: 22 fev. 2023.

Pedro Henrique Santos Chaves

Graduando em Relações Internacionais pela UFG. Sou fascinado por cinema e literatura de suspense, fantasia e ficção científica. Tenho grande interesse em questões voltadas para o Continente Africano e América Latina, como Guerras Civis, Ditaduras Militares, Intervenções Humanitárias e Terrorismo.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *