Chile: Por que a constituição mais progressista do mundo foi rejeitada?

Chile: Por que a constituição mais progressista do mundo foi rejeitada?

O Chile rejeitou a proposta da criação de uma nova constituição, considerada uma das mais progressistas do mundo, com um leque enorme de leis voltadas para  a proteção ambiental, criação e defesa dos direitos dos povos indígenas, garantia  da paridade de gênero, classificação da água como um bem estatal e criação de um Estado plurinacional, entre  outras medidas. A esperança dos grupos que apoiavam a sua aprovação era a de que o Chile poderia, finalmente, enterrar seu passado ditatorial que ainda perdura com a vigência da atual Constituição, redigida durante a ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990). Assim, uma nova lei maior  poderia reformar um país iludido pelos seus altos padrões de vida, onde poucos têm acesso facilitado aos serviços básicos como educação, saúde, transporte público, pensão e até mesmo à água – todos privados ou parcialmente privados.

O neoliberalismo no Chile

Antes de tudo, é necessário conceituar o neoliberalismo, pois é impossível discorrer sobre o Chile sem que a teoria neoliberal seja mencionada. O neoliberalismo é uma teoria econômica que aprofunda o liberalismo clássico e está ancorado nos princípios de privatização das estatais, liberalização do comércio exterior e especulação financeira, com o objetivo primário de reduzir significativamente a participação estatal na economia e confiar na autorregulação do mercado (BATISTA, 1994). Assim, a teoria econômica ganhou forma e influência a partir do século XX,  com o surgimento de diversas escolas de pensamento, como a escola austríaca de Friedrich Hayek, a de Chicago de Milton Friedman, e a de Virgínia de James Buchanan, todas com suas respectivas diferenças teóricas. A teoria econômica não se manteve nos debates de seus defensores. Sua aplicação se concretizou, inicialmente, nos Estados Unidos de Ronald Reagan (1981-1989) e no Reino Unido de Margaret Thatcher (1979-1990), em um período em que o keynesianismo – uma teoria que valoriza a participação estatal na economia – foi posto em cheque quando o Ocidente enfrentava problemas econômicos na década de 1970.

A influência do neoliberalismo na política econômica dos países ocidentais não enxergou fronteiras e transbordou para o Sul global, onde os teóricos neoliberais encontraram um Estado com a vontade de ferro e com os meios para transformar sua economia nos pilares do neoliberalismo – o Chile. Dessa forma, Augusto Pinochet, presidente durante a ditadura chilena (1973-1990), convidou integrantes da escola de Chicago para participarem na formulação das políticas econômicas do país. O Consenso de Washington – um projeto formulado por economistas estadunidenses para direcionar os esforços das instituições financeiras dos EUA no desenvolvimento das economias em desenvolvimento – finalmente encontrou um lugar para a sua aplicação em sua totalidade (NASCIMENTO, 2008).

Os resultados das políticas neoliberais parecem evidenciar que o neoliberalismo realmente conseguiria trazer sucesso econômico ao país. O PIB aumentou bruscamente, os investimentos externos foram retomados e o país passava por um “milagre econômico”. Todavia, apesar do sucesso econômico, a desigualdade social disparou. A privatização de praticamente todos os serviços sociais impediu com que a população conseguisse acessá-los, criando uma qualidade de vida impossível de ser custeada pelas famílias de baixa renda. As consequências desse modelo neoliberal se estendem até hoje – os 1% mais ricos do Chile concentram 50% da riqueza total do país (PARIS SCHOOL OF ECONOMICS, 2023).

Foto: Os Chicago Boys

Protestos e referendo

As consequências políticas da aplicação da política dos Chicago Boys se consolidaram no século XXI, a partir do crescente descontentamento da população com o obstáculo criado pela política neoliberal, que impossibilitava o acesso aos serviços básicos. A privatização da educação foi a razão pela qual, em 2006, protestos organizados pelas organizações estudantis, movimento conhecido como “Revolução dos Pinguins”, pelas cores preta e branca do uniforme utilizado pelos manifestantes, se iniciaram pedindo reformas que garantissem maior acesso à educação, a qual era custosa para a maior parte da população. Em 2011, mais protestos ocorreram, porém, desta vez, demandando educação pública gratuita. Entretanto, até então, o país ainda não havia testemunhado o maior protesto popular de sua história. Em 2019, o aumento do preço da passagem do transporte público foi anunciado pelo governo de Sebastián Piñera (2018-2022), em um país onde o custo de vida é alto. O resultado foi a explosão de intensos protestos, mais uma vez orquestrados pelas organizações de estudantes, que agora não protestavam somente contra o preço do transporte público e pela reforma da educação, mas também demandavam uma reforma no sistema neoliberal como um todo (CNN, 2022).

Para a consolidação de uma mudança estrutural da política neoliberal chilena, a oposição enxergou a necessidade de uma nova constituição, até então, a mesma redigida durante a ditadura de Pinochet organizou a sociedade do Chile. Dessa maneira, os movimentos de centro-esquerda conseguiram consolidar a realização de um referendo, a fim de consultar a população sobre a criação de uma nova constituição, que reformaria a sociedade chilena e garantiria os direitos fundamentais à população. O resultado do referendo foi positivo para os reformistas, e 78% dos votos foram favoráveis à composição de uma nova constituição (FRANCE 24, 2022). Assim, uma assembleia constituinte fora formada, desta vez composta por diversos setores da sociedade excluídos durante a ditadura, incluindo indígenas, e a inédita divisão equilibrada dos assentos entre homens e mulheres.

Campanhas e resultado

Gabriel Boric, um dos líderes dos movimentos estudantis que organizaram protestos pela educação, assumiu o governo chileno em 2022 com a tarefa de garantir o acesso à informação à população sobre a  nova carta magna do país. Sem dúvidas, a aprovação do novo texto seria uma vitória política para o esquerdista.

Apesar do esforço do presidente em garantir o acesso à informação confiável sobre a constituinte, a campanha pelo “apruebo” encontrou desafios desencadeados pelo “rechazo”. Enquanto os defensores da aprovação utilizavam  marchas e eventos organizados para difundir os benefícios do novo texto, os opositores usavam a desinformação para atrair votos. A nova constituição foi alvo de várias informações falsas sobre as novas leis que iriam regular a sociedade chilena. Uma das desinformações disseminadas pela oposição foi a legalização do aborto durante os nove meses de gestação. Além do mais, a própria assembleia que redigiu a nova constituição foi alvo de críticas. Em um dos episódios, um legislador participou de uma das reuniões dentro do chuveiro, em outro, um membro da assembleia mentiu dizendo ter um câncer terminal para defender a criação de um sistema de saúde universal (EL PAÍS, 2021).

No dia da decisão sobre o futuro do neoliberalismo chileno, as urnas presenciaram um contingente grande de pessoas, o qual não era comum durante as decisões eleitorais. A razão foi a obrigatoriedade do voto, e isso fez com que pessoas que geralmente não participam dos processos eleitorais votassem. O resultado foi inesperado: o “rechazo” ganha com 61% dos votos (FRANCE 24, 2022). A decisão foi um choque para ambas as campanhas – os reformistas acreditavam que ganhariam pelo intenso engajamento em protestos a favor da nova constituição, e os contrários à proposta não pensavam que ganhariam com uma margem tão alta.

Conclusão

Apesar do resultado, os planos para um novo texto constitucional não foram abandonados, e agora o governo tem de organizar uma nova constituinte, a fim de elaborar uma constituição que agrade a maioria da população. Assim, o Chile escolhe manter o sistema neoliberal na regulação de sua economia. Entretanto, o resultado não pode ser visto como inteiramente negativo. A vontade popular sempre deve ser mantida, com o propósito de preservar a democracia e reprimir a construção de sistemas totalitários de poder.

Embora a constituição neoliberal de Pinochet ancorada no Consenso de Washington tenha garantido a elevação do PIB chileno e o aumento da qualidade dos serviços públicos, tornando assim, o país mais desenvolvido da América do Sul, o sistema econômico elaborado pela Escola de Chicago permitiu que o “milagre chileno” fosse usufruído somente por uma pequena parcela da população – famílias de alta renda. Dessarte, a desigualdade social começa a diminuir após o retorno do Chile à democracia, quando os governos civis, pressionados pelas demandas populares, começam a atuar no auxílio às família de baixa renda, impossibilitadas de acessarem os serviços públicos.

A decisão final levanta novos questionamentos sobre a sociedade chilena e seu governo. Qual a extensão dos danos da desinformação? Como o governo pode reformar uma constituição, a fim de que ela englobe todos? A sociedade chilena está ciente de seu passado ditatorial que moldou o Chile atual? Como criar uma sociedade mais justa e igualitária, com acesso ao que deveria ser universal? Como acabar com a ilusão de um país com altos padrões de vida, onde poucos possuem os meios financeiros para acessá-los? A resposta para essas perguntas poderão ou não ser respondidas em futuras negociações em torno do futuro texto constitucional.

Referências

BATISTA, Paulo. O Consenso de Washington: A Visão Neoliberal Dos Problemas Latino-Americanos. Pensando o Brasil, Editora FUNAG, São Paulo, 1994.

CNN. Chile is voting on one of the most progressive constitutions in the world. But consensus is crumbling. 2022.  Disponível em: https://edition.cnn.com/2022/09/01/americas/chile-referendum-vote-new-constitution-intl-latam/index.html.

EL PAÍS. Um dos vice-presidentes da Constituinte engana o Chile com um falso câncer. 2021. Disponível em: https://brasil.elpais.com/internacional/2021-09-06/um-dos-vice-presidentes-da-constituinte-engana-o-chile-com-um-falso-cancer.html.

FRANCE 24. Chile rechaza una nueva Constitución: las razones del ‘No’ y las alternativas constituyentes. 2022. Disponível em: https://www.france24.com/es/am%C3%A9rica-latina/20220905-chile-rechaza-una-nueva-constituci%C3%B3n-las-razones-del-no-y-las-alternativas-constituyentes. 

NASCIMENTO, Priscila. O neoliberalismo no México e a emergência do movimento zapatista. Marília, Universidade Estadual Paulista, São Paulo, 2008.

PARIS SCHOOL OF ECONOMICS. The World Inequality Lab. 2023. Disponível em: https://www.parisschoolofeconomics.eu/en/research/pse-research-centers/the-world-inequality-lab-wil/.

Gabriel Moncada Xavier

Estudante de Relações Internacionais e experiente em simulações da ONU. Sou curioso e quero olhar para o mundo com todas as lentes possíveis. Gosto de diplomacia, política externa, organizações internacionais e Direitos Humanos.

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