UM PAÍS QUE ACORDOU COM OS PÉS NO AUTORITARISMO: O CASO DE EL SALVADOR

UM PAÍS QUE ACORDOU COM OS PÉS NO AUTORITARISMO: O CASO DE EL SALVADOR

Nayib Bukele em palanque pressionando a aprovação de verba para investimento em material militar na Assembleia Nacional. Foto por Jose Cabezas.

“Aos nossos amigos da Comunidade Internacional: […] Estamos limpando nossa casa… e isso não é da sua conta” (BUKELE, 2021, tradução minha)[1].

Essa foi a resposta dada pelo presidente de El Salvador – em sua conta oficial do Twitter – à Comunidade Internacional, um dia após o Congresso salvadorenho destituir cinco juízes da Suprema Corte e o Procurador-Geral do país. A decisão, que teve 64 votos a favor e 19 contra, foi liderada pelos apoiadores do presidente Nayib Bukele, que formam a maioria na Assembleia Nacional (BBC NEWS MUNDO, 2021).

De acordo com Bukele, a decisão está embasada nos artigos 186 e 192 da Constituição que permitem à Assembleia Legislativa destituir tanto os magistrados do Supremo Tribunal de Justiça quanto o Procurador-Geral, respectivamente. (PRESIDENCIA DE LA REPÚBLICA, 2021; EL SALVADOR, 1983).

No entanto, para entender como o país acordou recentemente com os pés no autoritarismo, é necessário analisar o contexto histórico do país, como o atual presidente chegou ao poder, suas recentes ameaças à democracia salvadorenha e quais podem ser as perspectivas para o país.

CONTEXTO HISTÓRICO

Localizada na América Central e banhada apenas pelo Oceano Pacífico, El Salvador tem, para Bernal (2017), o autoritarismo como uma “parte constitutiva” da sua cultura política. Foi graças a esse período autoritário na história daquele país (entre 1911 e 1992), que cinco projetos – ou tentativas fracassadas – de reformas da organização política foram realizadas, algumas mais bem sucedidas do que outras, mas todas com um traço em comum: a violência. Dentre essas lutas contra o autoritarismo, a de maior destaque – e também a mais sangrenta – foi a Guerra Civil que o país enfrentou entre 1979 e 1992.

Localização geográfica de El Salvador. Imagem por Encyclopædia Britannica, Inc.

A GUERRA CIVIL EM EL SALVADOR

Marcada pelo financiamento exorbitante, tanto por parte dos estadunidenses quanto por parte dos soviéticos – cada qual apoiando seus lados e, obviamente, seus interesses na Guerra Fria -, a Guerra Civil em El Salvador foi responsável pela morte de mais de 60 mil pessoas, com algumas estimativas chegando à casa dos 80 mil (BERNAL, 2017).

O início da Guerra se deu em 15 de outubro de 1979, quando através de um Golpe de Estado – que deu carta branca à deposição do General Carlos Humberto Romero – e após o estabelecimento de uma Junta Civil-Militar que tomou o poder em El Salvador, uma crise social e política foi instaurada.

Durante a crise, um arcebispo, o Monsenhor Oscar Romero, declarou publicamente inúmeras vezes ser contrário à repressão estatal e aos atentados realizados, tanto pelos radicais governistas quanto pelos radicais guerrilheiros. No entanto, em 24 de março de 1980, enquanto realizava uma missa, o Monsenhor Oscar Romero foi assassinado com um tiro no peito (BERNAL, 2017; MEMÓRIA GLOBO, 2021).

Como descreve Paulo Zero, correspondente da Rede Globo em El Salvador à época, foi justamente após o “[…] assassinato, [que] o governo aumentou a presença do Exército nas ruas e determinou censura dos meios de comunicação”. Durante o velório do arcebispo, 42 pessoas foram assassinadas em um tiroteio no local, o que marcou o início do aumento das hostilidades entre governistas e guerrilheiros no país (MEMÓRIA GLOBO, 2021).

“[…] Era uma guerra mais subversiva, que está no meio de você. Se você está num elevador com seis pessoas e tem duas que querem matar as outras quatro, o que você faz?.” (PINTO in MEMÓRIA GLOBO, 2021).

Durante a Guerra, ambos os lados recebiam apoio estrangeiro[3]. Para Avila (2013) esse apoio financeiro, diplomático e militar estadunidense foi decisivo, já que os militares salvadorenhos muito provavelmente não conseguiriam derrotar os guerrilheiros. A internacionalização do conflito também foi fundamental tanto para a observância dos crimes cometidos pelo governo salvadorenho – e também por seus aliados – quanto para a solução do problema.

A solução para o conflito veio com a assinatura do Acordo de Paz de Chapultepec, em 16 de janeiro de 1992 na Cidade do México. Em 15 de dezembro do mesmo ano houve a desestruturação militar da Frente Farabundo Martí para a Libertação Nacional (FMLN), que passou a ser “um partido político legalmente constituído e reconhecido” (AVILA, 2013, p. 20).

“Naturalmente a reação doméstica e internacional diante do Acordo de Chapultepec foi altamente favorável. Contudo, a implementação dos acordos, particularmente os que atingiam a depuração das forças armadas, acabou revelando-se não menos complexa e delicada, ao longo do ano de 1992.” (AVILA, 2013, p. 41).

COMO O ATUAL PRESIDENTE CHEGOU AO PODER

Com apenas 39 anos, Bukele é o presidente mais jovem da história de El Salvador. O “presidente milenial”, como afirmam alguns autores, tomou posse em 1º de junho de 2019 e desde então acumula em seu currículo político inúmeras polêmicas e atos antidemocráticos.

Assim como outros líderes antidemocráticos das Américas, Bukele usa o Twitter como ferramenta de comunicação oficial. De acordo com Ruiz-Alba e Mancinas-Chávez (2020), o presidente salvadorenho já chegou a “tratar de decisões importantes […] como nomeações ou exonerações de cargos públicos” utilizando a rede social e foi justamente através do Twitter que “[…] Bukele realizou uma estratégia de autopromoção em sua conta […], com a qual tentou criar uma imagem pessoal positiva”.

Nayib entrou na política em 2012 pelo partido Frente Farabundo Martí para a Libertação Nacional (FMLN), que, como já exposto, durante a Guerra Civil serviu como oposição aos governistas que dominavam El Salvador. Em 2017, foi expulso do partido por uma série de desentendimentos com os membros.

Após a expulsão, Bukele realizou uma rápida passagem pelo partido Cambio Democrático (CD) e pelo Gran Alianza por la Unidad Nacional (GANA) até que finalmente criou o seu partido, o Nuevas Ideas. Com a vitória de Nayib nas eleições de 2019, El Salvador quebrou com a tradição do bipartidarismo que ocorria no país desde 1992 (RUIZ-ALBA e MANCINAS-CHÁVEZ, 2020).

RECENTES AMEAÇAS À DEMOCRACIA E O FUTURO SALVADORENHO

Assim como alguns líderes americanos, Bukele é um dos políticos da atualidade que se dizem seres guiados pelo “direito divino” e que serão os responsáveis pela mudança de seus países, além, claro, do discurso anti-corrupção (MALDONADO, 2020). Também como vários desses líderes antidemocráticos, Nayib não mede esforços para ameaçar seus opositores e também os membros dos outros poderes, utilizando sempre o exército de seu país para tais ameaças.

Nayib Bukele durante sua invasão à Assembleia Nacional. Foto por Salvador Melendez/Associated Press via The Los Angeles Times.

Em fevereiro de 2020, antes de completar um ano de mandato, Bukele invadiu a Assembleia Nacional com um grupo de soldados do exército de El Salvador, sentou-se na cadeira do presidente da Casa e ordenou que uma sessão fosse iniciada amparado no que chamou de “direito divino” (ESCÁNEZ e RODRÍGUEZ-PINZÓN, 2020). Em entrevista realizada pelo jornalista Jacobo García, do El País, Nayib declarou que:

“Se […] fosse um ditador ou alguém que não respeitasse a democracia, […] teria assumido o controle de tudo. […] As pessoas ficaram com raiva quando pedi calma, mas se eu quisesse, teria assumido o controle de todo o governo hoje à noite.” (MALDONADO e GARCÍA, 2020).

Para Escánez e Rodríguez-Pinzón (2020, p. 206), essa tendência nas Américas de governos que apelam pelo uso das Forças Armadas como uma espécie de controle dentro dos governos civis pode ser chamada de “novo militarismo” ou de “remilitarização”, haja vista, muitos desses países já tiveram um histórico de militares no poder.

Em El Salvador, desde a retomada após o Acuerdo de Paz, houve uma predominância de governos que optaram por políticas agressivas, como afirma Escánez e Rodríguez-Pinzón (2020, p. 213, tradução minha)[4] “[…] ‘levar o exército às ruas’, por meio de declarações de excepcionalidade ou emergência que alteram e enfraquecem o Estado de Direito”, foi a política adotada tanto pelos governos de direita quanto pelos governos de esquerda no país desde 1992.

“Dentre as medidas mais características do governo Bukele está o contínuo apelo à força militar como braço de execução de políticas, o personalismo e um sistema de tomada de decisões caracterizado pela ‘ordem e comando’ que não atende aos procedimentos ou ao canal legislativo necessário de leis no âmbito da democracia.” (ESCÁNEZ e RODRÍGUEZ-PINZÓN, 2020, p. 217, tradução minha)[5].

Militares do Exército de El Salvador dentro da Assembleia Nacional durante a invasão de Bukele. Foto por Salvador Melendez/Associated Press via The New York Times.

Dois dias após a data que marca o aniversário do Acordo de Paz de Chapultepec, o presidente disse em pronunciamento para familiares das vítimas, no local do pior massacre feito por um exército na América Latina, que “a Guerra [Civil] foi uma farsa […] como os acordos de paz” (BUKELE, 2020, transcrição e tradução minha)[6].

De acordo com a pesquisadora da Anistia Internacional para a América Central, Astrid Valencia in Amaya (2021), “[…] o governo deve cumprir de boa fé seus compromissos internacionais relativos à justiça, verdade e reparação diante da imensa tragédia que o conflito armado representou.” (Idem, tradução minha)[7].

O presidente salvadorenho que nega a Guerra Civil – que assassinou mais de 60 mil pessoas – e que invadiu a Assembleia Nacional apoiado pelo exército do país, tudo isso próximo dos três anos de mandato, é o mesmo que apoiou a destituição dos cinco juízes e do Procurador-Geral e os trocou por simpatizantes do governo. O presidente milenial, aparentando ser um autocrata, não dá indícios que pretende moderar seu tom, o que faz com que as perspectivas para o país não sejam positivas; não restando dúvidas de que os salvadorenhos, no dia 02 de maio, acordaram com os pés no autoritarismo.

NOTAS

[1] “A nuestros amigos de la Comunidad Internacional: Queremos trabajar con ustedes, comerciar, viajar, conocernos y ayudar en lo que podamos. Nuestras puertas están más abiertas que nunca. Pero con todo respeto: Estamos limpiando nuestra casa… y eso no es de su incumbencia.” (BUKELE, 2021, original).

[2] “La Constitución le da la potestad a la Asamblea Legislativa para remover a magistrados de la Corte Suprema de Justicia, según lo establecido en el artículo 186, por causas específicas previamente establecidas por la ley.” (PRESIDENCIA DE LA REPÚBLICA, 2021, trecho original).

[3] Algo que marcou fortemente o conflito interno foi a internacionalização dele graças ao apoio militar, econômico e político, para ambos os lados, por parte dos Estados Unidos, Argentina, Chile, Venezuela, Alemanha, Itália, Nicarágua, Cuba, União Soviética, México, Costa Rica e Panamá (AVILA, 2013, p. 10).

[4] “[…] ‘Sacar al ejército a las calles’, a través de declaraciones de excepcionalidad o de emergencia que alteran y debilitan el Estado de Derecho.” (ESCÁNEZ e RODRÍGUEZ-PINZÓN, 2020, p. 213, trecho original).

[5] “Dentro de las medidas más características del gobierno de Bukele está su continua apelación a la fuerza militar como brazo de ejecución de las políticas, el personalismo y un sistema de toma de decisiones caracterizado por el ‘ordeno y mando’ que no atiende a los procedimientos ni al necesario cauce legislativo de las leyes en el marco de la democracia.” (ESCÁNEZ e RODRÍGUEZ-PINZÓN, 2020, p. 217, trecho original).

[6] “La Guerra fue una farsa […] como los acuerdos de paz.” (BUKELE, 2020, transcrição do trecho original).[7] “[…] El Gobierno debería cumplir de buena fe sus compromisos internacionales en materia de justicia, verdad y reparación ante la inmensa tragedia que significó el conflicto armado.” (VALENCIA in AMAYA, 2021, trecho original).

REFERÊNCIAS

AMAYA, Alba Miriam. Deutsche Welle. El Salvador: los Acuerdos de Paz no convencen a Nayib Bukele. 2021. Disponível em: <https://www.dw.com/es/el-salvador-los-acuerdos-de-paz-no-convencen-a-nayib-bukele/a-56198913>. Acesso em: 27 maio 2021.

AVILA, Carlos Federico Domínguez. Guerra e paz em El Salvador (1979-1992): um estudo com fontes brasileiras. Hegemonia, Brasília, n. 12, p. 153-198, 2013. Disponível em: <http://www.unieuro.edu.br/sitenovo/revistas/downloads/hegemonia_09_08.pdf>. Acesso em: 26 maio 2021.

BBC News Mundo. El Salvador: la respuesta de los jueces destituidos por la Asamblea controlada por Bukele (y las duras críticas de EE.UU. y la comunidad internacional). 2021. Disponível em: <https://www.bbc.com/mundo/noticias-america-latina-56967149>. Acesso em: 26 maio 2021.

BERNAL, Carlos Gregorio López. De las reformas a la revolución postergada: la historia de El Salvador en el siglo XX. Cuadernos Intercambio sobre Centroamérica y el Caribe, São Pedro, v. 14, n. 1, p. 1-22, abr./set., 2017. Disponível em: <https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=5922106>. Acesso em 26 maio 2021.

BUKELE, Nayib. A nuestros amigos de la Comunidad Internacional: Queremos trabajar con ustedes, comerciar, viajar, conocernos y ayudar en lo que podamos. Nuestras puertas están más abiertas que nunca. Pero con todo respeto: Estamos limpiando nuestra casa. …y eso no es de su incumbencia. 02 maio 2021. Twitter: @nayibbukele. Disponível em: <https://twitter.com/nayibbukele/status/1388705685689540615>. Acesso em: 24 maio 2021.

EL SALVADOR. Assembleia Legislativa. Constituição (1983). Constitución de La República de El Salvador. São Salvador, 1983. Disponível em: <https://www.asamblea.gob.sv/sites/default/files/documents/decretos/171117_072857074_archivo_documento_legislativo.pdf>. Acesso em: 26 maio 2021.

ESCÁNEZ, Francisco Javier Verde-Montenegro; RODRÍGUEZ-PINZÓN, Erika María. Bukele y las Fuerzas Armadas: un tándem que erosiona los contrapesos de la democracia salvadoreña. Pensamiento Propio, Manágua, 51 ed., p. 205-232, jan./jun., 2020.  Disponível em: <http://www.cries.org/wp-content/uploads/2020/08/PP51.pdf>. Acesso em: 26 maio 2021.

BUKELE, Nayib. Ayer en El Mozote, hablamos sobre la guerra y la supuesta paz… 18 dez. 2020. Twitter: @nayibbukele. Disponível em: <https://twitter.com/nayibbukele/status/1340127468162789376>. Acesso em: 27 maio 2021.

CONSULTOR JURÍDICO. De maioria governista, Congresso de El Salvador destitui juízes da Suprema Corte. 2021. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2021-mai-03/congresso-el-salvador-destitui-juizes-suprema-corte>. Acesso em: 26 maio 2021.

GARCÍA, Jacobo. El País. “Si fuera un dictador habría tomado el control de todo el Gobierno anoche”. 2020. Disponível em: <https://elpais.com/internacional/2020/02/10/actualidad/1581301240_367380.html>. Acesso em: 27 maio 2021.

MALDONADO, Carlos Salinas; GARCÍA, Jacobo. El País. Presidente de El Salvador invade o Congresso com militares e alega “direito divino”. 2020. Disponivel em: <https://brasil.elpais.com/internacional/2020-02-10/presidente-de-el-salvador-invade-o-congresso-com-militares-amparado-por-direito-divino.html>. Acesso em: 27 maio 2021.

MEMÓRIA GLOBO. Guerra Civil em El Salvador. 2021. Disponível em: <https://memoriaglobo.globo.com/jornalismo/coberturas/guerra-civil-em-el-salvador/>. Acesso em: 26 maio 2021.

PRESIDENCIA DE LA REPÚBLICA de El Salvador. Presidente Nayib Bukele se reúne con el cuerpo diplomático acreditado en el país para analizar el estado de la institucionalidad democrática. 2021. Disponível em: <https://www.presidencia.gob.sv/presidente-nayib-bukele-se-reune-con-el-cuerpo-diplomatico-acreditado-en-el-pais-para-analizar-el-estado-de-la-institucionalidad-democratica>. Acesso em: 24 maio 2021.

RUIZ-ALBA, Noelia; MANCINAS-CHÁVEZ, Rosalba. Estrategia de comunicación en Twitter de Nayib Bukele: el presidente milenial de El Salvador. Communication & Society, Pamplona, v. 33, p. 259-275, 2020. Disponível em: <https://idus.us.es/bitstream/handle/11441/95539/39038-Article%20Text-114320-1-10-20200420.pdf?sequence=1&isAllowed=y>. Acesso em: 26 maio 2021.

Jorge Willian Ferreira Gonçalves

Graduando em Relações Internacionais pela UFG. Membro do Grupo de Estudos sobre a Rússia (PRORUS/UFSC) e pesquisador voluntário na Cátedra Sérgio Vieira de Mello (CSVM/UFG). Tenho interesse nas relações Brasil-Rússia e a política externa russa no âmbito da Organização para Cooperação de Xangai e os BRICS.

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