TURCOMENISTÃO: PECULIARIDADES DE UM DOS PAÍSES MAIS FECHADOS DO MUNDO

TURCOMENISTÃO: PECULIARIDADES DE UM DOS PAÍSES MAIS FECHADOS DO MUNDO

Bandeira do Turcomenistão

O colapso da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), em 1991, gerou muitas incertezas quanto ao futuro das repúblicas que a formavam. A maioria dos Estados conquistou a independência naquele mesmo ano, mas nem todos seguiram a democracia. Foi o caso dos governos que hoje compõem a Ásia Central e um deles é o objeto de análise deste artigo.

A República do Turcomenistão fica às margens do Mar Cáspio, na costa oeste, e faz fronteira com Cazaquistão, Uzbequistão, Irã e Afeganistão. Grande parte do seu território é coberta por deserto, mas o Sul é cercado de montanhas e colinas (ESCOLA BRITANNICA, 2021). O país tem 6 milhões de habitantes e sua capital é Ashgabat (IG, 2021).

Sua extensão territorial é de 488.100 km² (53º maior país do mundo e equivalente a 5,7% do território brasileiro). A moeda é o Manat turcomeno e os idiomas falados são turcomeno, russo e uzbeque (CANEVER, 2013, p. 39).

Mapa da Ásia Central

Autocracia plena

O país é considerado um dos mais autoritários do mundo e seu nível de ditadura é comparável ao regime da Coreia do Norte. Desde a sua independência, apenas dois líderes governaram o país: Saparmurat Niyazov, de 1991 até 2006, ano da sua morte [1], e Gurbanguly Berdimuhammedov, que assumiu o posto do antecessor e comanda o país desde então (BILHAR, 2020). Um governante praticamente deu continuidade à gestão do outro, mantendo o autoritarismo sobre a população, vigiada em tempo integral, e repetindo até mesmo certos hábitos peculiares.

Comparando passado e presente, pode-se fazer uma analogia entre os dois únicos chefes de Estado turcomenos pós- independência e líderes do século XX, marcados também pelo caráter autoritário de seus governos, com base nesta análise feita por Morgenthau (2003, p. 422):

“(…) a própria tradição da civilização ocidental, que tenta restringir o poder dos fortes em benefício dos fracos, foi combatida por ser tida como efeminada, sentimental e decadente. Seus opositores têm sido aqueles que, como Nietzche, Mussolini e Hitler, não só aceitam o desejo de mando e a luta pelo poder como fatos sociais basilares, mas ainda enaltecem as suas manifestações desenfreadas e postulam essa ausência de restrições como um ideal para a sociedade e uma norma de conduta para o indivíduo.” (MORGENTHAU; 2003; p. 422).

Neutralidade x Isolacionismo

A manipulação de informações pelo governo turcomeno envolveu até mesmo a pandemia da Covid-19, a ponto de o país se autodefinir, na contramão do resto do mundo, como um país sem nenhum caso registrado de coronavírus, com reconhecimento da Organização Mundial de Saúde (OMS). Essa informação foi prontamente contestada por grupos de direitos humanos que conhecem a realidade de um país onde qualquer ação dos cidadãos turcomenos é intensivamente monitorada (IG, 2021). Por outro lado, a afirmativa pode fazer sentido partindo do pressuposto do isolacionismo e da restrição à entrada de estrangeiros em solo turcomeno.

No entanto, historicamente, o Turcomenistão pós-independência adotou um status de neutralidade na geopolítica mundial, interpretada pela comunidade internacional como um isolacionismo, sem se envolver em conflitos, organizações e alianças sequer no âmbito regional. A postura visa evitar a influência de outros países, tanto que, ao contrário de seus vizinhos (Cazaquistão, Quirguistão, Tajiquistão e Uzbequistão), não integra a Organização para a Cooperação de Shangai (OCS), criada há 20 anos para fortalecer a região (SANTOS, 2020).

Por outro lado, avalia-se que o país prefere buscar parcerias por meios próprios, uma vez que possui ligações com instituições como a Organização das Nações Unidas (ONU), Banco Mundial, ao programa de cooperação e parceria individual da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), e mais recentemente se tornou um membro observador da Organização Mundial do Comércio (SANTOS, 2020).

Contudo, esquivar-se de outras nações sempre foi um ponto defendido pelos turcomenos pelo fato de o país ter uma das maiores reservas de gás natural do mundo. Saparmurat Niyazov era avesso a investimentos estrangeiros no setor energético local, diante das intromissões políticas que tal medida poderia acarretar (KHANA, 2008, p. 159). O desejo de não estar necessariamente ligado a nenhuma influência também poderia despertar o estreitamento de relações com o ocidente e com a China e Estados Unidos (ao invés da Rússia), uma vez que a Ásia Central era objeto da cobiça de outras potências e, nesse jogo, o Turcomenistão poderia seguir seus próprios interesses (KHANA, 2008, p. 159-160).


Imprensa “sem voz” e aversão a estrangeiros

Canever (2013, p. 40) relata o sentimento dos turcomenos (pelo menos do governo e seus subordinados) em relação aos profissionais de imprensa e turistas. Jornalistas não são bem-vindos e existe um controle total da mídia. Eles também não são interessados pela opinião dos estrangeiros. Entrar no país? Somente com uma carta-convite e assim mesmo uma viagem exige a companhia de um guia designado pelas autoridades daquele país para filtrar informações que os forasteiros buscam saber do lugar. 

A mais recente pesquisa da Organização Não Governamental (ONG) Repórteres sem Fronteiras, relatou que o Turcomenistão ocupa a 178ª colocação, entre 180 países, no ranking de liberdade de expressão, confirmando o status do país como “autocracia totalitária”. A população também não tem acesso à internet, estando totalmente sujeita àquilo que as autoridades entendem como informação relevante para o povo. As redes sociais são bloqueadas. Prisão, submissão a condições degradantes e torturas são algumas penalidades aplicadas a quem tenta adotar uma postura independente no Turcomenistão. Muitos não viram outra saída a não ser encerrar suas atividades (REPÓRTERES SEM FROTEIRAS, 2021).

“Em janeiro de 2013, o país finalmente adotou uma lei de mídia, que prevê oficialmente a liberdade de expressão e a proibição da censura. Avanços de fachada: o Estado ainda reina supremo sobre todos os meios de comunicação turcomenos, os utiliza como meio de propaganda e pune severamente qualquer desvio da narrativa oficial. Em 2008, Gourbangouly Berdymoukhammedov declarou guerra às antenas parabólicas, única forma de a população ter acesso à informação não controlada, privando os cidadãos dos canais por satélite russos, turcos ou árabes que escapam à sufocante propaganda dos meios de comunicação estatais. Quanto à web, somente uma intranet totalmente censurada, a “Turkmenet”, é acessível, mediante apresentação de passaporte e cópia de documento que ateste a titularidade, aluguel ou uso livre do local onde se estabelece a conexão. O uso de VPN é proibido.” (REPÓRTERES SEM FRONTEIRAS, 2021).

Ditadura religiosa  

O Turcomenistão também é um dos maiores violadores mundiais da liberdade religiosa. Esse direito até está formalmente protegido pela sua Constituição, mas tal respeito não ocorre na prática. Assim como a liberdade de expressão, é uma falácia. As autoridades controlam toda e qualquer atividade religiosa, desde cultos e construção de templos até a nomeação de líderes. E qualquer prática independente é vista com desconfiança, assim como a demonstração explícita de fé. As sanções costumam ser duras (AID TO THE CHURCH IN NEED, 2021).

Os muçulmanos respondem por quase 96,6% da população, sendo o restante dividido entre agnósticos (1,7%) [2], cristãos (1,1%) e outros (0,7%). Em 2018, havia 131 organizações religiosas registradas, das quais 107 muçulmanas (102 sunitas e cinco xiitas), 13 ortodoxas russas, enquanto as 11 restantes eram baha’ís, protestantes, católicas e a Sociedade Internacional para a Consciência Krishna. Nos últimos dois anos não houve a criação formal de mais grupos (AID TO THE CHURCH IN NEED, 2021).

Estátua de Saparmurat Nyiazov em Ashgabat

Conflito de vaidades

As extravagâncias sempre foram marcas registradas na gestão dois líderes máximos do Turcomenistão pós-independência. A ponto de Niyazov trocar o nome do mês janeiro para o seu próprio nome e passar a chamar o “pão” de Gurbansoltan, o nome de sua própria mãe. E ele foi mais além ao se autodenominar o pai de todos os turcomenos (‘Turkmenbashi) e construir uma estátua de ouro de si próprio (gastos estimados em US$ 12 milhões) na capital Ashgabat, com um mecanismo que fizesse a imagem girar sempre em direção ao sol (BILHAR, 2020).

Berdymukhammedov não deixou por menos em relação ao seu antecessor e mandou construir uma estátua folhada em ouro onde ele mesmo está em cima de um cavalo, também na capital, e mandou mover o monumento de Niyazov para outro local da cidade, em 2010.  Mas de forma geral, o atual chefe de Estado turcomeno quase nada fez em relação ao seu antecessor e simplesmente deu prosseguimento às ideias de culto aos líderes e de extravagâncias e medidas em benefício próprio, fortalecendo a vaidade pessoal, a valorização dos clãs e a adoração ao sultanismo, em que o governante é praticamente a única instância (BILHAR, 2020).

Gurbanguly Berdimuhammedov com Barack e Michele Obama

Considerações finais

O exemplo turcomeno exposto neste artigo mostra um caso de autocracia que não está sempre aos olhos da comunidade internacional, mas mostra que o isolacionismo facilita o culto à própria personalidade, o autoritarismo sem maiores interferências e a perpetuação do poder ou sua assunção via acordo entre os próprios clãs que cercam o poder.

E tudo indica que o atual presidente, caso seja sua intenção ou se não tiver mais condições de administrar a nação por motivo de força maior (nesse caso apenas o óbito ou uma aposentadoria por decisão própria), deve fazer seu sucessor. Neste contexto, há grande possibilidade do futuro governante ser seu filho, Serdar Berdymukhamedov, que já ocupa cargos estratégicos no governo de seu pai, primeiro como ministro das Relações Exteriores e agora como titular da pasta de Comércio e Indústria, e atende a todas as demandas do pai (THE DIPLOMAT, 2020). A nomeação de familiares tem sido outra marca das gestões turcomenas.

Enquanto o Turcomenistão tiver pleno controle sobre suas atividades, monitorando o que é pertinente ou não ser divulgado ao mundo, evitando até mesmo relações mais íntimas com outros países, não haverá outro horizonte a não ser o prosseguimento do que já é conhecido mundialmente sobre esse país da Ásia Central. A não ser que um fato muito marcante possa promover a virada de jogo e mudar o rumo da história.

SUMÁRIO

[1] – Nyiazov também governou o Turcomenistão quando o país era uma república soviética antes de se tornar o primeiro presidente pós-independência.

[2] – Os agnósticos acreditam que é impossível ter certeza da existência de Deus.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AID TO THE CHURCH IN NEED. Liberdade religiosa no mundo. Relatório 2021. Disponível em < https://www.acn.org.br/turcomenistao/>. Acesso em 09/07/2021

BILHAR, Mateus. As singularidades da Política Externa e doméstica do Turcomenistão. Disponível em <https://relacoesexteriores.com.br/singularidades-politica-turcomenistao/>. Acesso em 06/07/2021.

CANEVER, Guilherme. Canever, Guilherme. De Istambul a Nova Délhi – Uma aventura pela Rota da Seda. PULP. Edição do Kindle. 2013

DOS SANTOS, Jonathan Christian Dias. The Republic of Turkmenistan and Neutrality as North: a balance of the geopolitical relations of Sapamurat Niyazov and Gurbanguly Berdimuhamedow. Disponível em <https://www.researchgate.net/profile/Jonathan-Christian-Santos-2>. Acesso em 13/07/2021.

ESCOLA BRITANNICA. Turcomenistão. Disponível em <https://escola.britannica.com.br/artigo/Turcomenist%C3%A3o/482724>. Acesso em 05/07/2021.

KHANNA, Parag. O segundo mundo: impérios e influência na nova ordem global. Tradução de Clóvis Marques. Intrínseca, 2008.

MORGENTHAU, Hans. A política entre as nações. Tradução de Oswaldo Biato. Editoria Universidade de Brasília. 2003.

PORTAL IG. O curioso país sem nenhum caso de Covid. Disponível em <https://turismo.ig.com.br/destinos-internacionais/2021-04-30/turcomenistao–o-curioso-caso-do-pais-sem-nenhum-caso-de-covid.html>. Acesso em 10/07/2021.

REPÓRTERES SEM FRONTEIRAS. Os predadores da liberdade de imprensa. Disponível em <https://rsf.org/pt/portraits/predator>. Acesso em 08/07/2021.

THE DIPLOMAT. Turkmenistan president’s son appointed minister. Disponível em <https://thediplomat.com/2020/02/turkmenistan-presidents-son-appointed-minister/>. Acesso em 08/07/2021.

IMAGENS

DEPARTAMENT OF STATE USA. Disponível em <https://www.flickr.com/photos/statephotos/3950135224/in/photolist-724tzJ-4TQWLh>. Acesso em 12/07/2021

KAUFDEX. Disponível em <https://pixabay.com/pt/users/kaufdex-2137215/>. Acesso em 13/07/2021

MAPA MUNDI. Disponível em https://www.mapa-mundi.org/. Acesso em 15/07/2021.

STANLEY, David. Disponível em <https://www.flickr.com/photos/davidstanleytravel/5730563311/in/photolist-9JoCPH-cUJzJ5-nniEy2-8rR4Tf-v5qKe-nucysp-589UK9-LZwvBW-4SbBH3-MLYbTE-4S7q6H-4SbBJE-7tLMR7-dYrB9c-dYrCSX-4S7qiX-uNNccv-FFqSkf-nuSat1-vHmCSq-wDe2Gm-7wSzdr-nEpiKP-YaEzZ9-ntxihT-vtbx6c-9ZXJ9m-2k5gWSY-4SbBXC-awU23e-vGUR87-3HQK2c-4SbBBs-dYxmSL-7KcKTJ-6HfMrH-4S7qgp-2gkHSuP-dvP8Vz-839pcy-aucMLh-F2ty-7VD2rW-br7Biw-aeaDUy-FC8pR-7VD235-d7UEN1-NHkAjq-vL3mmn>. Acesso em 14/07/2021.

Pablo de Deus Ulisses

Jornalista e estudante do 5° semestre de Relações Internacionais na Estácio de Sá.

3 comentários sobre “TURCOMENISTÃO: PECULIARIDADES DE UM DOS PAÍSES MAIS FECHADOS DO MUNDO

  1. Eu adorei o artigo!
    É importante a divulgação dessa informação, não se vê muitas informações sobre o Turcomenistão nem reivindicações em organizações internacionais. Pelo que interpretei, a própria comunidade internacional não se posiciona ao que ocorre no país e também não se tem protestos pelos líderes defensores da democracia.
    Integrar a OMC nesses níveis de opressão interna nos faz questionar mais uma vez as intenções dos Estados pelo mundo, e também os requisitos que um Estado tem que apresentar para integrar uma organização.

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