A QUESTÃO DO TRÁFICO DE MARFIM NA ÁFRICA CENTRAL E SUA RELAÇÃO COM O FINANCIAMENTO DE GRUPOS TERRORISTAS

A QUESTÃO DO TRÁFICO DE MARFIM NA ÁFRICA CENTRAL E SUA RELAÇÃO COM O FINANCIAMENTO DE GRUPOS TERRORISTAS

Foto: Jerome Starkey/Flickr

Segundo um estudo realizado pela ONG Traffic em 2017, mais de cinquenta e três mil quilos de marfim provenientes da África Central[1] foi apreendido globalmente entre 2007-2015. Mediante tal fato, o que se busca com esse artigo é entender até que ponto o tráfico de marfim está relacionado com o financiamento de atividades ilícitas nesta região. Para tal, relaciona-se a redução do número de elefantes e rinocerontes em territórios dominados por grupos taxados como terroristas.

DINÂMICA DO TERRORISMO NA ÁFRICA

Os conflitos atuais dentro do continente africano podem ser explicados a partir da perspectiva teórica das “novas guerras”. Para Kaldor (2005, pág. 493) o termo se refere às guerras que geralmente ocorrem no contexto de desintegração de Estados travadas por redes de atores estatais e não estatais, muitas vezes sem uniformes.[2] Diante disso, ao se analisar o perfil de alguns conflitos dentro do continente africano, é possível observar que estes ocorrem em um cenário em que os Estados têm pouca ou nenhuma capacidade de resposta, consequentemente, possuem dificuldades de controlar o desfecho de algumas tensões, muitas vezes originadas de conflitos étnicos ou religiosos.

Quando se trata de terrorismo, estima-se, de acordo Milián (2018) – investigador do grupo de estudos africanos da Universidade Autônoma de Madri – que há aproximadamente treze conflitos armados no continente africano, dos quais seis são coordenados por grupos jihadistas. As principais regiões de atuação desses grupos são: Líbia, Argélia, Chad, Somália e República Democrática do Congo.

Dado o pressuposto, a identificação do que seria ou não taxado de ação terrorista, dentro do continente africano, partiu do princípio que visava distinguir as lutas de libertação ou autodeterminação contra o que seria apenas tentativas de se instaurar o terror.[3] Foi nesse contexto, que a ex Organização para a Unidade Africana (OUA), atual União Africana (UA), criou em 1999 a Convenção para Combate ao terrorismo. A partir disso, define-se esse tipo de ação, segundo o Artigo 1, como:

Todo acto que é uma violação da legislação criminal do Estado Parte e desta Convenção e que pôr em perigo a vida, a integridade física e a liberdade ou causar graves danos ou morte a uma pessoa ou grupo de pessoas, destruir a propriedade pública ou privada, os recursos naturais o patrimônio cultural e ambiental […].(OUA, 1999, artigo 1)

Diante disso, é importante enfatizar que as ações de grupos terroristas na África possuem diferentes motivações políticas e divergem de uma região para outra, afinal é uma região marcada por conflitos étnicos. Sendo assim, o que se questiona é o que alimenta o terrorismo nesses territórios?

O PRODUTIVO TRÁFICO DE MARFIM

Estima-se, de acordo com os dados fornecidos pela Traffic (2017), que a maior parte do marfim traficado no mundo tem como origem a região central africana, sendo oriundo de cinco principais regiões: Camarões, República Centro Africana, Gabão, Congo e República Democrática do Congo. Ressalta-se aqui que todos os países citados são membros de longa data da Convenção sobre Comércio Internacional de Espécies Ameaçadas de Fauna e Flora Selvagens (CITES), um acordo internacional concluído entre governos cujo os objetivos são garantir que o comércio internacional de espécimes de animais e plantas selvagens não gere um risco a existência das mesmas. Entretanto, mesmo após a assinatura do tratado, todas as regiões supracitadas mantêm mercados ilegais de marfim em seus territórios. Cálculos realizados pelo Sistema de Informação de Comércio de Elefantes (The Elephant Trade Information System – ETIS) mensuram que:

[…] durante o período de 26 anos, de 1990 a 2015, um mínimo de cerca de 56.497 kg de marfim sumiu da custódia do governo dessas cinco nações e, presumivelmente, entrou no comércio ilegal de marfim. Em ordem decrescente, o Congo (40.507 kg) responde por 72% deste valor e a RDC (7.686 kg) por outros 14%, devido principalmente à situação de seus estoques de marfim no início da década de 1990, que eram supostamente grandes, mas posteriormente desapareceram. CAR (4.301 kg), Camarões (2.837 kg) e Gabão (1.165 kg) foram responsáveis ​​por quantidades significativamente menores de marfim “perdido” durante este período. (TRAFFIC REPORT. 2017, p. 69, tradução minha.)

Desse modo, o parêntese que se faz é o de que o tráfico de marfim tornou-se uma atividade extremamente rentável, fato esse que notavelmente chamou a atenção de grupos terroristas. Em 2016, foi notificado pela ONG Elephant Action League (EAL), que a caça predatória de marfim e de chifre de rinoceronte se tornou fonte de financiamento de várias milícias e grupos terroristas, como por exemplo a milícia sudanesa Janjaweed.  Além disso, foi comprovado por meio de investigações que o grupo terrorista al-Shabaab coordena parte do tráfico no Quênia e na Somália. Segundo o relatório da EAL, a receita mensal do grupo, originada do tráfico de marfim, foi de aproximadamente duzentos mil dólares e que grande parte desse dinheiro foi usada para manter um exército de 5000 mil homens em 2010.[4] Observe o mapa a seguir:

Mapa 1: Relação entre as regiões que mais traficam marfim e o índice de incidência terroristas de cada uma delas (2015)

Fonte: Elaboração própria (Dados: ETIS Data, 2015)

Grupos radicais na República Democrática do Congo (RDC) também começaram a financiar parte de suas ações através do comercio ilegal de marfim no mesmo período. O Exército de Resistência do Senhor ou Lord’s Resistance Army (LRA)[5], que atua em grande parte da RDC foi citado pelo Conselho de Segurança da ONU por seu possível envolvimento com contrabando de marfim.[6] Quando a LRA se retirou de Uganda, país no qual se originou, os rebeldes passaram a se exilar na República Democrática do Congo, mais especificamente dentro do Parque Nacional de Garamba.[7] O parque é abrigo de milhares de elefantes, desde então agentes que trabalham no local já relataram diversos eventos de caças ilegais na região. Como pontua Mashini e Nkoke (2020),

A República Democrática do Congo (RDC) apresenta uma situação ainda mais crítica do que os outros países da sub-região da África Central, visto que o número de elefantes, estimado em um milhão no início do século XX, reduziu-se a cem mil no início da década de 1980. Hoje, a população de elefantes na RDC é estimada entre 7.803 e 9.557. Este colapso da população geral de elefantes na RDC é o resultado de inúmeras ameaças, incluindo mortes ilegais pelo seu marfim e / ou outros produtos, conflitos com humanos e perda e fragmentação de seus habitats. (MASHINI e NKOKE. 2020, pág. 16, tradução minha)[8]

Dado o pressuposto, vale ressaltar que quando o LRA chegou ao território da RDC eles não possuíam o poder bélico que possuem hoje. Em 2014, Michael Onen, um sargento do LRA, foi capturado aos arredores do Parque Nacional do Garamba e quando o questionaram sobre o porquê da matança de elefantes no parque, ele alegou que o marfim era a melhor forma de se conseguir munição. Ou seja, o dinheiro arrecadado com venda do produto era destinado, entre outras coisas, à compra de armamento. Na ocasião o sargento também ressaltou que para Kony, líder do grupo, “apenas o marfim poderia fazer o LRA ser poderoso novamente”[9]. De acordo com Christy (2015),

De março de 2014 a março de 2015, os guardas florestais de Garamba registraram 31 contatos com caçadores armados, mais da metade dos quais com grupos viajando para o sul na direção do Sudão do Sul e Sudão. Eles incluíam as Forças Armadas do Sudão do Sul (SPLA) e militares sudaneses, bem como desertores desses militares e uma variedade de rebeldes sudaneses. (CHRISTY. 2015, tradução minha)[10]

Dados do ETIS reforçam  que a África Central, especialmente a RDC, é um grande fornecedor de marfim ilegal e um dos motivos é a fraca aplicação da lei de vida selvagem. Diante desse cenário, atores do crime organizado se aproveitam das poucas políticas de proteção ambiental destes locais, além do baixo índice de fiscalização e de estabilidade política, para lucrar com o comércio ilegal de marfim. Segundo Anderson e Jooste (2014),

Guerrilheiros do Sudão têm sido acusados de incidentes em que centenas de elefantes foram abatidos em reservas naturais nos Camarões. A milícia rebelde Seleka, que derrubou o governo da República Centro-Africana em inícios de 2013, e cujo tratamento brutal da população causou crises comunitárias em todo o país, terá praticado a caça furtiva de elefantes nas suas reservas. O grupo radical islâmico al Shabaab, da Somália, também tem ganho centenas de milhares de dólares, ou mais, ao incentivar aldeões do Quénia a caçar furtivamente elefantes cujo marfim é depois contrabandeado para o estrangeiro a partir dos portos da Somália. (ANDERSON e JOOSTE. 2014, p. 1)

De acordo com Anderson e Jooste (2014), em 2003 o preço do marfim se situava na faixa dos 200 dólares o quilo. Dez anos depois, em 2013, a mesma quantidade do produto já custava em média 2500 dólares, atualmente o valor continua na mesma faixa. Logo, com a elevação dos preços, grupos criminosos continuam investindo na caça predatória como meio de financiar suas atividades.

 CONCLUSÃO

A utilização do tráfico ilegal de marfim por grupos terroristas na África Central é um fato. A configuração política da região, juntamente com a insuficiente fiscalização em parques nacionais, como o caso do parque do Garamba, propicia que grupos terroristas usem da caça predatória e da venda do marfim para beneficiar suas causas. Entretanto, cabe ainda ressaltar, que o tráfico de marfim não é a única forma de aquisição de recursos por parte dessas organizações. Outras atividades criminosas também são usadas como fontes de renda como, por exemplo, o tráfico de drogas, armas, carvão.

O Talibã e o Hezbollah usam tais métodos como modo de financiar seus gastos militares. Ademais, ainda atuam na produção e no tráfico de opiáceos, maconha, diamantes e outros minerais, juntamente com fraudes de cartão de crédito e outras atividades ilícitas[11]. Por fim, como enfatiza Anderson e Jooste (2014, p.5) “de um modo geral, as redes de tráfico continuam a agir sem receio das consequências. Em muitos países da linha da frente, como o Gabão e Moçambique, os crimes relacionados com a vida selvagem são delitos menores puníveis por multas relativamente leves.”

BIBLIOGRAFIA

ANDERSON, B. AND JOOSTE J. Caça Furtiva De Vida Selvagem: A Ameaça Crescente Do Tráfico Em África. Africa Center for Strategic Studies, 2014, www.jstor.org/stable/resrep26846. Acesso em 6 set. 2021 .

CHRISTY, Brian, How Killing Elephants Finances Terror in Africa, National Geographic, 2015, disponível em: <https://www.nationalgeographic.com/tracking-ivory/article.html>Acesso em: 6 set. 2021.

CITIES. CITES Trade Database. Disponível em: <https://trade.cites.org/en/cites_trade/#.> Acesso em: 6 set. 2021 .

CROSTA, A., SUTHERLAND, K. White Gold of Jihad: The 2010-2012 groundbreaking investigation into al-Shabaab’s link to ivory trafficking in Eastern Africa” Los Angeles, CA: Elephant Action League (EAL), 2016. Disponível em: <https://earthleagueinternational.org/wp-content/uploads/2016/02/Report-Ivory-al-Shabaab Oct2016.pdf> Acesso em: 6 set. 2021.

DW. Comércio ilegal de marfim financia terrorismo em África. Disponível em: <https://www.dw.com/pt-002/com%C3%A9rcio-ilegal-de-marfim-financia-terrorismo-em %C3%A1frica/a-17086917>. Acesso em: 6 set. 2021.

MASHINI, M.C. NKOKE, S.C. Les stocks d’ivoire d’elephant de la République Démocratique Du Congo: quel système de gestion mettre en place? TRAFFIC International Yaoundé, Cameroun, 2020. Disponível em: <https://www.traffic.org/site/assets/files/12901/systeme-de-gestion-des-stocks-divoire-de-la-rdc.pdf> Acesso em: 6 set. 2021.

NKOKE, S.C. LAGROT J.F. RINGUET, S. and MILLIKEN, T. Ivory Markets in Central Africa – Market Surveys in Cameroon, Central African Republic, Congo, Democratic Republic of the Congo and Gabon: 2007, 2009, 2014/2015. TRAFFIC. Yaoundé, Cameroon and Cambridge, UK. 2017. Disponível em: <https://www.traffic.org/site/assets/files/1615/central-africa-ivory-report-final.pdf> Acesso em: 6 set. 2021.

NYTIMES. War’s Other Victims: Animals. Disponível em: <https://www.nytimes.com/2018/01/12/science/africa-war-animals-conservation.html>. 6 set. 2021.

UNITED NATIONS SECURITY COUNCIL. Lord´s Resistance Army. 2016. Disponível em: <https://www.un.org/securitycouncil/sanctions/2127/materials/summaries/entity/lord%E2%80%99s-resistance-army> Acesso em: 8 set. 2021.

VISION OF HUMANITY. Global terrorism index. Disponível em: <http://visionofhumanity.org/indexes/terrorism-index/.> Acesso em: 6 set. 2021 .


NOTAS

[1] Disponível em:<https://www.traffic.org/site/assets/files/1615/central-africa-ivory-report-final.pdf>

[2] KALDOR, Mary. Old Wars, Cold Wars, New Wars, and the War on Terror. Centre for the Study of Global Governance, London School of Economics, London, International Politics, n. 42, p. 491–498, 2005.

[3] MILIÁN, Iván Navarro. La nueva narrativa del terrorismo internacional en África: respuestas y resultados. Comillas Journal of International Relations, n. 13, p. 28-48, 2018.

[4] CROSTA, A., SUTHERLAND, K., White Gold of Jihad: The 2010-2012 groundbreaking investigation into al-Shabaab’s link to ivory trafficking in Eastern Africa, 2016, pág. 7, tradução minha

[5]O LRA, surgiu no norte de Uganda na década de 1980. Joseph Kony ordenou que o LRA se retirasse de Uganda em 2005 e 2006 devido à crescente pressão militar. Desde então, o LRA está presente na República Democrática do Congo, na República Centro-Africana, no Sudão do Sul e supostamente no Sudão. Além disso, é responsável pelo sequestro, deslocamento e morte de centenas de pessoas na República Centro-Africana. (Conselho de Segurança da ONU, 2016, tradução minha)

[6] Disponível em: <https://nacoesunidas.org/conselho-de-seguranca-da-onu-pede-investigacao-sobre-caca-ilegal-de-elefantes-na-africa/>

[7] “O Parque Nacional Garamba está localizado na parte nordeste da República Democrática do Congo (RDC), na zona de transição entre as densas florestas tropicais da Bacia do Congo e das Savanas da Guiné e Sudão. Ele contém a última população mundial de rinoceronte branco do norte, subespécie endêmica de girafa congolesa e uma população mista de elefantes, combinando elefantes da floresta, elefantes do mato e indivíduos que demonstram características morfológicas comuns às duas subespécies de elefante.” (UNESCO, tradução nossa, disponível em: https://whc.unesco.org/en/list/136/)

[8] Disponível em: <https://www.traffic.org/site/assets/files/12901/systeme-de-gestion-des-stocks-divoire-de-la-rdc.pdf>

[9] CHRISTY, Brian, How Killing Elephants Finances Terror in Africa, National Geographic, 2015. Disponível em: <https://www.nationalgeographic.com/tracking-ivory/article.html>

[10] Disponível em: <https://www.nationalgeographic.com/tracking-ivory/article.html>

[11] Crosta, A., Sutherland, K. White Gold of Jihad: The 2010-2012 groundbreaking investigation into al-Shabaab’s link to ivory trafficking in Eastern Africa, Los Angeles, CA: Elephant Action League (EAL), 2016, pág. 24.

Anna Clara Oliveira

Estudante do 7ºperíodo de Relações Internacionais na Universidade Federal de Goiás e pesquisadora no programa de iniciação científica sobre milícias brasileiras, crime organizado transnacional e assemblages globais da segurança.

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