ENTRE A FOME E A GUERRA: A HISTÓRIA DO CONFLITO EM DARFUR NO SUDÃO

ENTRE A FOME E A GUERRA: A HISTÓRIA DO CONFLITO EM DARFUR NO SUDÃO

A região do Darfur, que significa “terra dos Fur”, está localizada no extremo oeste da República do Sudão, mais especificamente, na fronteira com o Chade e a África Central. Seu território se expande por uma área de 508 km2, em termos comparativos compreende uma região maior que o território francês. “Dar Fur foi um estado independente durante três séculos até 1916,  ano que foi anexado ao Sudão. Além disso, foi um dos reinos mais poderosos em uma série de estados posicionados na extremidade sul do deserto do Saara” […]. (FLINT e DE WAAL. 2008, p. 6, tradução nossa)

Imagem 1 – Mapa do Sudão

Fonte: BBC[1]

Para entender melhor o conflito em Darfur é necessário antes analisar a própria ideia de construção do Sudão dentro do processo de colonização dos estados africanos. O país é majoritariamente dominado por uma elite árabe, o que não ocorre em Darfur que é composto por diferentes etnias. De acordo com Van Ardenne-Van Der Hoeven, Agnes et al. (2006), há, aproximadamente, 80 grupos étnicos na região.

CONTEXTUALIZAÇÃO

O Sudão se tornou independente em 1956, antes disso pertencia ao Reino Unido e ao Egito e era conhecido como Sudão Anglo-Egípcio. Durante o período de administração colonial, a preocupação principal dos britânicos era com a capital, Cartum. Enquanto isso, Darfur foi negligenciada e a estrutura administrativa dependia apenas dos nativos.[2] (SCHNEIDER, 2008).

Segundo Braga (2016), esse sistema de administração nativo possibilitava que líderes tribais controlassem a região. Estes, por sua vez, eram responsáveis pela segurança, administração e pela resolução de disputas judiciais. Com a imposição desse sistema, a dominância dos fur foi afetada e isso, juntamente com o descaso do centro político sudanês, foi um dos primeiros passos para o desiquilíbrio no local.

Em 1916, Darfur foi anexada ao domínio anglo-egípcio (1898-1956). Todavia, os britânicos logo notaram que a província tinha pouco a contribuir na reconstrução do Sudão. A região não possuía recursos exploráveis, contava apenas com uma agricultura de subsistência e pobres pastores. […]O crescente progresso obtido na educação e na saúde, assim como os planos de desenvolvimento introduzidos pelas autoridades britânicas na região de Cartum e no resto do país, jamais se estenderam a Darfur. (MOTHCI, Daniela Espidula. 2005, p. 20)

Vale ressaltar, que mesmo após o processo de descolonização a situação não mudou. As províncias do leste e do sul, juntamente com Darfur, continuaram com acesso restrito aos recursos políticos e econômicos do Estado. (BRAGA, 2016) Dado tal pressuposto, com a escassez de alimentos, causada pela crise hídrica, a problemática na região se tornou cada vez mais crítica. “A seca e o processo de desertificação levaram grupos pastoris nômades a migrarem para outras regiões, entrando em choque com seus habitantes, que tinham como principal atividade econômica a agricultura.” (BRAGA, 2016, p. 2)

A proposta de islamização do Sudão

O período de colonização britânica, no sudão, fundamentou a criação do princípio de dominação do norte sobre o sul. Os descendentes de migrantes árabes se tornaram sedentários e ocuparam as zonas urbanas, com isso, passaram a compreender “uma elite letrada e educada, que ao longo dos 50 anos de domínio britânico, tornou-se uma classe sofisticada e de governantes, reforçando o desprezo pelo povo rústico e iletrado do oeste, do leste e do sul.” (MOTHCI, 2005, p. 20)

A elite no poder buscou a todo custo impor suas ideologias sob todo território sudanês, bem como a língua e a cultura árabe e o primeiro passo para isso ocorreu em 1985 quando Omar Hassan Al-Bashir fomentou um golpe de Estado, o terceiro na história do Sudão. Mothci (2005, p. 22) destaca que “as leis islâmicas limitaram as liberdades fundamentais de muitos grupos no país, abrindo caminho para uma “uma guerra civil entre árabes-muçulmanos e negros.” E na raiz dessa guerra estava a distinção construída de forma ideológica entre árabes e africanos, colocando um grupo como superior ao outro.

A configuração atual da crise em Darfur, região ocidental do Sudão, possui raízes históricas no passado de descaso do centro político colonial. […] Recentemente, porém, encontra-se atrelada ao processo de descolonização iniciado em meados do século XX, particularmente com a edificação de um “projeto nacional” para a construção de um Estado Islâmico no Sudão independente. O projeto se embasa na alegada superioridade das tribos árabes ribeirinhas do Norte do Sudão, que viviam às margens do Nilo e se constituíram na elite política nacional ao controlar o cerne histórico do poder administrativo, Cartum. (BRAGA, Camila. 2016, p. 1, grifos nosso)

Essa lógica de organização política gerou descontentamento entre as partes negligenciadas tanto no sul quanto em Darfur. “De 1999 a 2000, Darfur foi a região mais pobre da parte norte do Sudão; as taxas de pobreza em Darfur do Sul, Darfur do Norte e Darfur Ocidental foram 41%, 50% e 51%, respectivamente.” (BASHAR GADO, 2013, p. 130, tradução nossa) Ademais, atualmente, a região lida com uma extensa desertificação o que dificulta ainda mais o acesso a água e alimentos.

A CONSTRUÇÃO DO CONFLITO

Como já foi citado anteriormente, Darfur significa “terra dos fur”, nome do maior grupo étnico que ocupa um terço de território. Os fur são de origem africana, juntamente com os Massalit, que compreendem a segunda maior tribo local. Dentro desse contexto, há diversas outras tribos de origem africana em Darfur e a maioria delas são sedentárias compostas por fazendeiros, criadores de gado.[3] Enquanto as demais tribos, que ocupam o sul de Darfur, são nômades, cujo os representantes são os Baqqaras, que reivindicam suas origens árabes, ignorando seus antecedentes africanos. (MOTHCI. 2005)

A maioria étnica de Darfur passou a ser denominada pelo governo como tribos africanas ou “‘zurga”, que significa, “negros” para os Árabes. (VAN ARDENNE-VAN DER HOEVEN, et al. 2006, tradução nossa) O termo Zurga foi criado justamente como forma de diferenciação étnica. Segundo Braga (2016), a atual distinção entre Árabes e Negros Africanos é continuamente explorada pelo Governo Sudanês, principalmente, ao armar milícias árabes para invadirem territórios sob o controle de tribos “Negro-Africanas”.

A militarização começou durante o governo de Omar Hassan Al-Bashir[4], em 1989, primeiro com a criação da Força de Defesa Popular (PDF – sigla em Inglês), depois com o armamento dos árabes nômades do sul de Darfur, os Baqqara, que utilizaram da vantagem bélica para invadir territórios das tribos vizinhas, iniciando, assim, um verdadeiro massacre na região. (MOTHCI, 2005) Foi diante desse cenário, que se iniciou uma insurreição em 2003, uma guerra civil, que se delonga até os dias atuais entre pausas e tratados de paz mal sucedidos.

Os insurgentes, “rebeldes”, criaram o Movimento Armado de Libertação do Sudão (MALS) e promoveram um ataque inesperado ao governo central, matando 195 governantes. (MOTHCI. 2005) Durante a ocasião, o governo tentou negociar a paz com os rebeldes sob a promessa de promover políticas de desenvolvimento para Darfur. Porém, “a trégua foi rompida quando milícias árabes assassinaram uma respeitada liderança dos rebeldes” (MOTHCI. 2005, p. 23) O MALS, apoiado pelo Movimento pela Justiça e Igualdade (MJI), ambos de Darfur, passaram a organizar diversos ataques contra o governo do Sudão. Em resposta aos ataques, o governo iniciou uma campanha agressiva contra os insurgentes no país. De acordo com Braga (2016):

O governo lançou sua campanha de contra insurgência, colocando em prática uma tática militar conhecida como ‘processo de vasculhamento’ (combing process), que implica a destruição total e completa de vilarejos rurais, frequentemente ateando fogo nos mesmos, empreendendo ataques tanto aéreos quanto por terra. Como resultado dessa campanha brutal, que, mais tarde, a administração dos EUA classificou como genocídio, milhares de homens, mulheres, crianças foram massacradas e víveres destruído. (BRAGA, Camila. 2016, p. 2)

Mais uma vez a temática étnica foi explorada. Ou seja, o governo se aproveitou dos ataques contra ele para construir a ideia de que o que as “tribos negras” queriam destruir a raça árabe existente em Darfur. Com isso, ele recebeu o apoio necessário para colocar em prática sua ofensiva contra o grupo através da atuação de sua principal milícia, as Janjaweeds, composta pelos Baqqaras (já citados aqui como o grupo étnico árabe de Darfur). Para Braga (2016), o uso das milícias para lidar com a questão em Darfur foi uma estratégia do governo para poder caracterizar o conflito como tribal e, assim, não chamar atenção da comunidade internacional.

Quando em preparação para o Acordo de Paz Abrangente de janeiro de 2005 o governo ordenou que as milícias árabes parassem seus ataques contra o sul do Sudão, os Janjaweed mudaram suas atividades para o norte e começaram a atacar os Masalit, os Fur e os Zaghawa, perseguindo assim seus própria agenda de ganhar mais terras e poder em Darfur. O governo apoiou os Janjaweed porque a oposição política estava ganhando terreno entre a população indígena africana. ((VAN ARDENNE-VAN DER HOEVEN, et al. 2006, p. 13, tradução nossa, grifos nosso)

De acordo com Braga (2016, p. 3), “entre 2003 e 2006, o conflito armado em Darfur provocou a morte por violência direta, fome ou doença, de aproximadamente 350.000 pessoas e um fluxo de 2 milhões de deslocados internos e refugiados.” Evidentemente, o confronto chamou atenção da comunidade internacional. Em 2009, as diversas falhas nas tentativas de selar um acordo de paz na região levou o Tribunal Penal Internacional (TPI) emitir, pela primeira vez na história, uma ordem de prisão contra um presidente em exercício. Cartum (Capital do Sudão) rejeitou a decisão da Corte e ainda declarou que em represália iria expulsar 13 organizações que estavam realizando assistência humanitária e dissolver duas ONGs nacionais que atuavam em Darfur. (BRAGA, 2016)

SITUAÇÃO ATUAL

Já se passaram 17 anos desde a insurreição de 2003 e nada mudou para população de Darfur. Um relatório da ONG Anistia Internacional de 2017/18 revelou que:

Não houve progresso evidente com relação ao processo de paz ou aos mecanismos para enfrentar as causas e consequências do conflito de Darfur. Ocorreram pelo menos 87 incidentes de homicídios ilegais de civis, inclusive de deslocados internos (PDIs), principalmente por parte da milícia pró-governo, e houve relatos de saques, estupros e prisões arbitrárias generalizados em Darfur. (Anistia Internacional – Informe 2017/18, p. 233, grifos nosso)[5]

Protestos generalizados iniciados no final de 2018 conseguiram derrubar o ditador que estava no poder desde 1989. Com a queda de Al-Bashir, o Sudão passou a ser governado por uma administração civil-militar, eleições democráticas foram previstas para 2022. (GEDES, 2020) Entretanto, mesmo com a queda de Al-Bashir seu legado continuou forte e as milícias nômades, Janjaweed, continuam atuando de forma brutal em Darfur. Em julho de 2020, 60 civis foram mortos por milicianos árabes, na aldeia Masteri no estado de Darfur Ocidental. (NYT, 2020)

CONCLUSÃO

A percepção do senso comum que possuímos dos conflitos na África geralmente parte do pressuposto de que estes surgiram motivados pela distribuição territorial dos estados durante a colonização. Mais especificamente, alimenta-se a ideia de que o fato de tribos naturalmente rivais terem ficados juntas é a causa das guerras na região. Entretanto, o que ocorre na realidade não é necessariamente isso. O processo de colonização dos países da África foi marcado por uma intensa segregação racial e étnica. Diante disso, no período colonial, os grandes impérios não estavam preocupados em respeitar a cultura dos povos que anteriormente habitavam os locais explorados e criaram, assim, intensas divisões sociais.

O que ocorreu no Sudão, ocorreu também em Ruanda e em diversos outros territórios africanos. Ou seja, durante o regime colonial aqueles grupos que foram considerados mais organizados, ou com maior capacidade administrativa, foram colocados no poder para ajudar na administração das colônias. No Sudão a escolha foi a elite árabe, que ao tomar o poder passou a reproduzir esse sentimento de superioridade em relação aos demais grupos étnicos e isso, somado as mudança na dinâmica administrativa, foi um dos principais responsáveis pelo conflito que assola a região até hoje.

No caso de Ruanda, segundo De Mendonça (2017, p. 306), “O governo belga chegou mesmo a enviar cientistas para tirarem as medidas da população, os quais concluíram que os tutsis teriam uma compleição física naturalmente aristocrática.” Mediante tal fato, a maioria Hutu foi segregada, durante todo período de colonização Belga e o resultado foi um dos piores genocídios do século XX, no qual hutus exterminaram Tutsi. O saldo de mortes, em apenas 100 dias, foi de 800 mil vítimas.[6]

Diante disso, é importante ressaltar aqui que a peça chave dos conflitos em Darfur não é necessariamente as “rixas” entre as diversas tribos, mas a  hierarquização entre os grupos baseada na distinção racial e cultural. Destaca-se que, “no passado, os diversos grupos étnicos resolviam seus conflitos por terras e água em tradicionais conferências de chefes, nas quais as decisões eram veementemente respeitadas.” (MOTCHI. 2005, p. 21)

NOTAS

[1] Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/noticias/story/2006/09/060904_sudaouniaoafricana_ale>

[2] “Durante o meio século de domínio colonial no Sudão os britânicos instituíram o sistema de Native Admnistration ou Indirect Rule, como faziam em suas colônias normalmente.” (SCHNEIDER, 2008, p. 39-40)

[3] BASHAR GADO, Zuhair M. Conflict Resolution and Reconciliation in Sudan: Inter-Tribal Reconciliation Conferences in South Darfur State up to 2009. 2013. Tese de Doutorado. University of Bradford.

[4] “O Al-Bashir e seu governo árabe abriram profundas feridas no seio da sociedade sudanesa. As leis islâmicas e o regime ditatorial impõem muitas limitações a liberdades fundamentais no país, gerando um forte descontentamento de habitantes africanos da região sul do país. Uma guerra civil entre árabes-muçulmanos e negros se inicia.” (MOTHCI, 2005, p. 22)

[5] Disponível em: < https://anistia.org.br/wp-content/uploads/2018/02/informe2017-18-online1.pdf>

[6] Para entender melhor o Genocídio de Ruanda indico seguinte artigo de nosso site, escrito pela Talita Soares – UMA TEMPORADA DE FACÕES E OS GENOCIDAS RUANDESES – Acesso em: < https://www.doisniveis.com/2n-literario/uma-temporada-de-facoes-e-os-genocidas-ruandeses/>

BIBLIOGRAFIA

ANISTIA INTERNACIONAL, Informe 2017/18: o estado dos direitos humanos no mundo. 2018. Disponível em:< https://anistia.org.br/wp-content/uploads/2018/02/informe2017-18-online1.pdf> Acesso em: 17 jan. 21

BASHAR GADO, Zuhair M. Conflict Resolution and Reconciliation in Sudan: Inter-Tribal Reconciliation Conferences in South Darfur State up to 2009. 2013. Tese de Doutorado. University of Bradford. Disponível em: < https://bradscholars.brad.ac.uk/handle/10454/6335> Acesso em: 17 jan. 21

BRAGA, Camila. O conflito armado em Darfur – Sudão. Série conflitos internacionais, V3, n5 pp 1-8, 2016. Disponível em: <https://www.marilia.unesp.br/Home/Extensao/observatoriodeconflitosinternacionais/o-conflito-armado-em-darfur—sudao.pdf> Acesso em: 16 jan. 21

DE MENDONÇA, Marina Gusmão. O genocídio em Ruanda e a inércia da comunidade internacional. Revista Hades, v. 1, n. 1, p. 1-28, 2017. Disponível em: < https://periodicos.unifesp.br/index.php/hades/article/view/7961> Acesso em: 17 jan. 21

FLINT, Julie; DE WAAL, Alex. Darfur: A new history of a long war. Zed Books Ltd., 2008.

GEDES. O Conflito no Sudão: o caso de Darfur. 2020. Disponível em: < https://gedes-unesp.org/o-conflito-no-sudao-o-caso-de-darfur/> Acesso em: 17 jan. 21

MOTHCI, Daniela Espindula. Crise em Darfur: Um caso de Intervenção Humanitária

NYT. The Dictator Who Waged War on Darfur Is Gone, but the Killing Goes On. 2020. Disponível em: < https://www.nytimes.com/2020/07/30/world/middleeast/darfur-sudan.html> Acesso em: 17 jan. 21

SCHNEIDER, Luíza Galiazzi. As causas políticas do conflito no Sudão: Determinantes estruturais e estratégicos. 2008. Disponível em: <https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/16012/%20000685618.pdf?sequence=1> Acesso em: 16 jan. 21.

VAN ARDENNE-VAN DER HOEVEN, Agnes et al. (Ed.). Explaining Darfur: Four Lectures on the Ongoing Genocide. Amsterdam University Press, 2006.

Anna Clara Oliveira

Estudante do 7ºperíodo de Relações Internacionais na Universidade Federal de Goiás e pesquisadora no programa de iniciação científica sobre milícias brasileiras, crime organizado transnacional e assemblages globais da segurança.

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