Khmer Vermelho: o regime do medo e da morte

Khmer Vermelho: o regime do medo e da morte

Durante os anos de 1975 a 1979, sob o regime do Khmer Vermelho, a população do Camboja foi submetida a execução em massa, fome, doenças e trabalho forçado. Cerca de 2 milhões de pessoas, isto é, um quarto dos cambojanos morreram torturados, incluindo crianças e idosos. As graves violações cometidas durante este momento obscuro da história do país configuram-se como genocídio. Apesar disso, nenhum dos envolvidos foram responsabilizados pelos sofrimentos gerados. O presente artigo busca, portanto, discorrer sobre os antecedentes históricos que tornaram possível a instalação de um regime comunista totalitário no Camboja, bem como a política genocida que o caracteriza, a sua queda e as tentativas fracassadas de punir uma geração de torturadores profissionais que surgiu naquele período.

Antecedentes do regime

Entre uma das nações economicamente mais pobres da Ásia está o Camboja. Localizado no sudeste do continente, entre o Laos, Vietnã e Tailândia, o referido país tem uma população atual estimada em 16, 72 milhões de pessoas (THE WORLD BANK, 2020). Foi inicialmente, entre os séculos IX e XV, o centro do Império Khmer. Após 400 anos de declínio, o Camboja veio a se tornar colônia francesa de 1863 a 1953, quando conquistou sua independência. Nas duas décadas seguintes, foi governado por Norodom Sihanouk, mantendo-se, até então, neutro em relação à ocupação do Vietnã durante a Guerra Fria. Entretanto, a tentativa do presidente estadunidense, Richard Nixon, de destruir as bases vietnamitas no Camboja em 1969, conhecida como “Operação Café da Manhã”, resultou no lançamento de cerca de 540.000 toneladas de bombas B52 até 1973, estando na ocasião sob invasão dos Estados Unidos (MARTINS, CASTRO, 2006).

Figura 1: Mapa do Camboja

Com o apoio dos Estados Unidos e dos sul-vietnamitas, em março de 1970, o general Lon Nol toma o poder através de um golpe militar. O interesse estadunidense por trás dessa cooperação era obter um aliado político contrário ao comunismo e fazer frente à Guerra do Vietnã. Todavia, durante 1970 e 1975, uma crescente oposição ao governo de Nol fez surgir grupos rebeldes buscando tomar o controle político do país. Dentre eles destaca-se o Khmer Vermelho, o Partido Comunista do Camboja, apoiado pelo Vietnã do Norte e potências comunistas. Opôs-se fortemente ao apoio dado aos Estados Unidos no conflito entre os países vizinhos e, em 1975, passou a controlar totalmente Phnom Penh, a capital (LUFTGLASS, 2004).

Khmer Vermelho no poder

À frente do Khmer Vermelho estava Pol Pot, o irmão número um. Foi ele quem articulou a invasão a Phnom Penh, instaurando a República Democrática de Kampuchea. Sob a promessa de “devolver o Camboja ao ‘Ano Zero’, implantou sua visão de sociedade comunista, coletiva e rural, que não admitiria nenhuma ligação ao regime passado. Imediatamente, foi ordenado a todos os cambojanos evacuarem a capital e várias outras cidades devido à ameaça de bombardeamento estadunidense. Cerca de dois milhões de pessoas foram expulsas de suas casas e separadas de suas famílias. Sem poder retornarem, foram reassentadas em comunas populares e submetidas a trabalhos forçados para garantir sua subsistência. Dava-se início à tentativa brutal de transformar o Camboja em um enorme campo de trabalho compulsório (LUFTGLASS, 2004; MARTINS, CASTRO, 2006; MIRANDA, 2014). 

Figura 2: Pol Pot.

De modo a cortar qualquer laço que prendesse o Camboja ao passado, todos os cidadãos vinculados ao governo de Lon Non, políticos ou funcionários, bem como oficiais das forças armadas tiveram suas vidas ceifadas ao serem identificados. Com base nesse critério, os cambojanos foram divididos entre o “povo novo” e o “povo velho”. Os primeiros eram pessoas consideradas suspeitas, entre elas estrangeiros, intelectuais e opositores do regime. Eles eram vigiados o tempo inteiro, desempenhavam os trabalhos mais árduos e em regiões propensas a epidemias e risco de morte, além de receberem menores porções de comida. O “povo velho”, apesar de sofrer tanto quanto os outros, tinham a possibilidade de permanecer em suas vilas de origem. Em contrapartida, os membros do Khmer Vermelho, apoiadores do regime, membros das forças armadas e seus familiares desfrutavam de um alto padrão social e econômico, além de cargos privilegiados (MARTINS, CASTRO, 2006; MIRANDA, 2014).

Pol Pot tornou o Camboja no regime mais fechado do mundo. Rompeu relações diplomáticas com todos os países, exceto com a China, expulsou os estrangeiros, sobretudo jornalistas e repórteres, encerrou todos os voos comerciais e fechou as fronteiras do país a fim de isolá-lo das influências externas. Esse distanciamento permitir-lhe-ia consolidar sua política de pureza social e política comunista, eliminando todos os inimigos externos e, acima de tudo, os internos.

“Inimigos’ eram eliminados. Pol Pot via dois tipos de inimigos – os externos e os internos. Os inimigos externos opunham-se ao socialismo no estilo Khmer Vermelho; incluíam ‘imperialistas’ e ‘fascistas’ como os Estados Unidos, e ‘revisionistas’ e ‘hegemonistas’ como a União Soviética e o Vietnã. Os inimigos internos eram aqueles considerados desleais. (POWER, 2004, p. 149 apud MIRANDA, 2014, p. 30). 

Antes do regime completar quatro anos, um terço da população já havia sido dizimada. Além da fome e do esgotamento físico e mental a que foram sujeitos, milhares de cambojanos foram torturados e executados em mais de 150 prisões destinadas a eliminar os inimigos internos. A mais letal delas foi Tuol Sleng (S-21) ou Auschwitz do Camboja, como é conhecida — atualmente um museu. Das 16.000 a 20.000 pessoas que passaram por lá, a depender das estimativas, apenas sete sobreviveram. Sob o comando de Duch, o líder da prisão, essas pessoas foram submetidas a interrogatórios, “choques elétricos, espancamentos severos, remoção das unhas, submersão em água, queimaduras de cigarro, agulhamento, asfixia, suspensão e consumo forçado de dejetos humanos.” (LUFTGLASS, 2004, p. 901, tradução nossa). Tudo foi sistematicamente documentado, fotografado e mantido pelos guardas, provas significativas para qualquer julgamento criminal (LUFTGLASS, 2004; MARTINS, CASTRO, 2006).

“Como nas prisões nazistas, foram feitos registros de todas as pessoas que passaram por lá. Cada uma delas era catalogada e fotografada minutos antes de morrer. Em algumas fotos é possível sentir o que cada uma delas estava passando naquele momento.” (MARTINS, CASTRO, 2006).  

Os poucos relatos de pessoas que conseguiram fugir do Camboja não tiveram nenhum efeito sobre a comunidade internacional na época. Isto porque, as grandes potências ignoraram a possibilidade de um genocídio estar em curso no país. Israel foi o primeiro a levar a questão à ONU por meio do embaixador Chaim Herzog, que apontou a questão do autogenocídio do povo khmer (MIRANDA, 2014).

Figura 3: Museu do Genocídio Tuol Sleng.

A queda

 Os esforços de Pol Pot para controlar totalmente o território e a população do Camboja encontraram resistência no final de 1978, quando tropas do Vietnã invadiram Phnom Penh, após sofrer diversas incursões do Khmer Vermelho. Com o apoio da União Soviética e ajuda de cambojanos insurgentes, os vietnamitas depuseram o regime em 7 de janeiro de 1979. Os líderes do partido fugiram para o oeste e por mais dez anos ficaram no comando da região fronteiriça com a Tailândia, ajudados pela China (MARTINS, CASTRO, 2006; MIRANDA, 2014).

A partir de então, um novo governo foi instalado pelos vietnamitas, o qual não foi reconhecido pelos Estados Unidos e pela China. Com isso, o Camboja passou a ter dois governos, o de Pol Pot e o recém-empossado. Ao longo dos anos 80, não houve mudanças significativas na política cambojana. O Khmer Vermelho permaneceu espalhando o terror nas áreas que controlavam e buscando derrubar o novo governo. Durante esse período, pouco se avançou em investigar o genocídio devido às barreiras colocadas pelas duas potências supracitadas, mesmo com todas as evidências e consequências desse período obscuro (MIRANDA, 2014).

Após a retirada das tropas vietnamitas do Camboja em 1989, a instabilidade política permaneceu. A fim de se evitar a eclosão de uma nova guerra civil, as facções políticas do país assinaram um tratado de desarmamento promovido pela Organização das Nações Unidas (ONU) e concordaram em aceitar uma Autoridade Provisória das Nações Unidas. Até 1996, cerca de 4000 soldados remanescentes do Khmer Vermelho deixaram suas patentes. Pol Pot foi levado a julgamento em 1977 e condenado à prisão perpétua, porém, morreu no ano seguinte, sem nunca ter sido preso. Outros líderes pediram desculpas pelos seus atos em 1998, e no ano seguinte a maioria dos membros já havia rendido-se ou sido capturados, encerrando oficialmente o regime. Apesar disso, a maior parte dos líderes permanecem livres ou se escondem sob identidades falsas.

Tentativas de responsabilização

Após quase duas décadas de total desinteresse da comunidade internacional em punir as atrocidades cometidas durante o regime do Khmer Vermelho, em 1997, o governo do Camboja solicitou ao Secretário-Geral das Nações Unidas ajuda internacional para julgar, perante seus tribunais internos, os envolvidos nas atrocidades cometidas (MARTINS, CASTRO, 2006; LUFTGLASS, 2004). Naquele mesmo ano, a Assembleia Geral adotou uma resolução que solicitava a criação de um grupo de especialistas, destinado à: “(1) avaliar as evidências existentes e determinar a natureza dos crimes cometidos; (2) avaliar a viabilidade de trazer líderes do Khmer Vermelho à justiça; e (3) explorar opções de julgamentos em tribunais internacionais ou nacionais.” (LUFTGLASS, 2004, p. 899, tradução nossa).

Como resultado, o relatório apresentado em 1998 pelo grupo propôs a criação de um tribunal internacional ad hoc para apurar os crimes cometidos. Tal recomendação foi veementemente rejeitada pelo governo do Camboja, alegando que se fosse instalado, as nações estrangeiras interfeririam na soberania do país. A frente do país, o primeiro-ministro Hun Sen solicitou o envio de juízes e oficiais estrangeiros para ajudar a criar uma lei nacional e um tribunal nacional especial que se encarregasse de tal questão. Apesar das tentativas de tratativas entre as Nações Unidas e o governo cambojano, não chegou-se a nenhuma conclusão (MARTINS, CASTRO, 2006).     

Um avanço nas negociações ocorreu em abril de 2000. Na ocasião, os Estados Unidos buscaram intermediar um acordo para o estabelecimento de um tribunal misto, ou seja, incluiria juízes e promotores cambojanos e estrangeiros. Entretanto, o reconhecimento das deficiências dessa proposta por ambos os países, levaram-os a concordar com um um projeto de Memorando de Entendimento (MoU), o qual exigia maioria absoluta de juízes cambojanos, cujas decisões teriam que ser previamente consentidas por um juiz internacional. A ONU, porém, encerrou as negociações por dar preferência a um tribunal que estivesse preponderantemente sob o controle internacional (LAMBOURNE, 2008). 

A forte pressão dos Estados Unidos e de outros países resultou na retomada das conversas entre as Nações Unidas e o governo cambojano em 2003. Junto a uma equipe de negociações enviada pela ONU, autoridades cambojanas anunciaram, em 17 de março, que haviam chegado a um projeto de acordo para um tribunal híbrido, cujos arranjos de financiamento e estruturação demoraram mais dois anos para serem definidos. Nas palavras do primeiro-ministro Hun Sen: 

“Chegamos a um projeto de acordo de cooperação no qual as Nações Unidas ajudarão o Camboja nos procedimentos de um tribunal especial.” (LUFTGLASS, 2004, p. 915, tradução nossa)

A aprovação da “Lei sobre a criação das Câmaras Extraordinárias nos Tribunais do Camboja para o julgamento dos crimes cometidos durante o período do Kampuchea Democrático” ocorreu em novembro de 2005 pelo rei Norodom Sihanouk, com o apoio da ONU. No ano seguinte, os juízes e promotores foram nomeados. A expectativa era que os julgamentos das Câmaras Extraordinárias nos Tribunais do Camboja (ECCC na sigla em inglês) começassem em 2008, porém, até aquele momento havia se dado início apenas as audiências preliminares. Duch, por exemplo, não compareceu ao tribunal. (LUFTGLASS, 2004; LAMBOURNE, 2008; PERSSON, 2008; MIRANDA, 2014). 

Como o objetivo de levar justiça para as vítimas e sobreviventes; reconciliação; verdade e exercício da lei (PERSSON, 2008), o Tribunal Penal Internacional Ad Hoc instalado no Camboja foi, na verdade, ineficaz e incapaz de atender a todas as expectativas do povo cambojano, tendo em vista que entre os milhares de perpetradores do regime, apenas os últimos cinco líderes do Khmer Vermelho ainda vivos foram julgados em virtude da demora em ser estabelecido. Embora seja evidente que o ECCC possua limitações para satisfazer plenamente as necessidades de justiça dos nacionais e da comunidade internacional, foi fundamental, conforme aponta Miranda (2014), para coletar as provas do genocídio e impedir que esse período tenebroso da história do país fosse apagado da memória coletiva.


REFERÊNCIAS

LAMBOURNE, Wendy. The Khmer Rouge Tribunal: Justice for Genocide in Cambodia?. In: LAW AND SOCIETY ASSOCIATION AUSTRALIA AND NEW ZEALAND (LSAANZ) CONFERENCE 2008 ‘W(H)ITHER HUMAN RIGHTS’, 2008, Sydney. Anais. Sydney: Law and Society Association of Australia and New Zealand Inc, 2008, p. 1-11.

LUFTGLASS, Scott. Crossroads in Cambodia: The United Nation’s responsibility to withdraw involvement from the establishment of a Cambodian Tribunal to prosecute the Khmer Rouge. Virginia Law Review, Charlottesville, v. 90, n. 3, p. 893-964, 2004. Disponível em: <https://www.jstor.org/stable/3202401>. Acesso em: 3 dez. 21.

MARTINS, Rui Décio; CASTRO, Kátia Shimizu de. A ONU e o processos contra o Khmer Vermelho no Camboja. Revista da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, São Bernardo do Campo, v. 12, p. 417-433, ago. 2006. Disponível em: <https://revistas.direitosbc.br/index.php/fdsbc/article/view/318/222>. Acesso em: 02 dez. 2021.

MIRANDA, Fernando Silveira Melo Plentz. Genocídio no Camboja, a Instalação de um Tribunal Penal Internacional Inócuo e a Preservação da Memória. Direito, Justiça e Cidadania, [s.l], v. 5, n. 1, 2014. Disponível em: <http://docs.uninove.br/arte/fac/publicacoes_pdf/direito/v5_n1_2014/Fernando.pdf>. Acesso em: 4 dez. 21.

PERSSON, Fredrik. The Khmer Rouge Tribunal: searching for justice and truth in cambodia. Huddinge: Södertörn University College, 2008. 79 p. Disponível em: https://www.diva-portal.org/smash/get/diva2:224061/FULLTEXT01.pdf. Acesso em: 10 dez. 21.

THE WORLD BANK. Population Cambodia. 2020. Disponível em: <https://data.worldbank.org/indicator/SP.POP.TOTL?locations=KH>. Acesso em: 1 dez. 2021.

Giovana Machado

Formada em Relações Internacionais na Universidade Estadual Paulista (UNESP). Tem interesse em Direitos Humanos e Segurança Internacional.

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