LEMBRAI-VOS: A GUERRA DO PARAGUAI

LEMBRAI-VOS: A GUERRA DO PARAGUAI

Olá, seja bem vindo a mais um capítulo de Fabula Orbi, onde contamos a história da história. Novo por aqui? Confira nossos textos anteriores!

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ERAM OUTROS TEMPOS…

Embora a violência seja um problema endêmico que desde muito flagela os sulamericanos, no âmbito externo a situação é diametralmente oposta, isto é, a paz é o contexto normal das relações entre os atores. A região vem avançando solidamente em direção a uma verdadeira comunidade de segurança, configuração política em que o padrão de interação entre os Estados é ditado por meios pacíficos, de modo que o uso da força é sequer considerado como opção.

Mas nem sempre foi assim.

A América do Sul já foi sacudida por muitos conflitos violentos, quase todos com origem no processo de independência de seus países, que gerou diversos embates por fronteiras. Uma das áreas estratégicas mais importantes do continente devido ao seu uso comercial e potencial hídrico e energético, a Bacia do Prata, foi palco para muitos confrontos sulamericanos, incluindo o maior deles: a Guerra do Paraguai.

O conflito durou 6 anos — de 1864 a 1870 — e encerrou quase 440 mil vidas, o que lhe atribuiu a posição de 2ª guerra mais letal do mundo no período entre 1815 (fim das guerras napoleônicas) e 1914 (começo da I Guerra Mundial), ficando atrás somente da Guerra de Secessão nos Estados Unidos. Numa escala crescente, os números aproximados de causalidades por nação foram de pouco mais de 3 mil uruguaios, 28 mil argentinos, 100 mil brasileiros e incríveis 300 mil paraguaios, o que à época representava cerca de 60% da população paraguaia.

Sua causa emergiu como a resultante do intrincado contexto político da época, que conjugava e confrontava diversas forças nacionais. Tanto o Uruguai, quanto a Argentina passaram por guerras civis entre grupos que continuaram polarizando a política doméstica mesmo após o término das hostilidades — federalistas contra unitários neste e blancos contra colorados naquele. Aproveitando-se dessas rivalidades, outros países patrocinavam aqueles grupos que estivessem mais dispostos a colaborar com seus interesses na região, e, assim, o Brasil tratou de se aliar ao partido Unitarista e ao partido Colorado, ao passo que o Paraguai se aliou ao partido Federalista e ao partido Blanco.

Solano sabia que era necessário poder contar com a força para conseguir fazer valer seus interesses, principalmente quando o status quo era desfavorável. Então, desde o começo de seu mandato em 1862, emplacou um massivo programa de militarização, que lhe rendeu o maior exército da América do Sul após 2 anos — quando a guerra começou, o Paraguai tinha um exército de 64 mil homens prontos para combater, enquanto o Brasil tinha 18 mil e a Argentina, 8 mil.

Além dos objetivos de ordem pragmática, o “presidente vitalício” também tinha suas ambições idealistas. A maior delas nunca chegou a ser oficialmente uma doutrina de estado, até porque soaria os alarmes de toda a região, mas internamente havia o desejo de expandir as fronteiras do país às expensas dos vizinhos até o Oceano Atlântico e constituir um novo país, el Gran Paraguay. A expansão englobaria o Rio Grande do Sul, as províncias de Corrientes e Entre Ríos e todo o Uruguai.

Projeto expansionista de Solano López – Elaboração própria

OU SOBE OU DESCE

No ano em que a guerra eclodiu, as relações entre os países envolvidos já estavam bastante tensionadas devido a uma série de embargos e retaliações alfandegárias, sobretudo no que diz respeito ao fluxo comercial na bacia do Prata, que é compartilhada pelos 4 países.

Foi exatamente contra uma dessas medidas, considerada “abusiva” pelo governo brasileiro, que o Brasil buscou apoio do antigo presidente colorado, Venâncio Flores, até então exilado na Argentina, governada por seu amigo Bartolomeu Mitre, do partido Unitário, a quem anos antes ajudara a ser eleito. Em setembro de 1864, brasileiros e colorados deram um golpe de estado no Uruguai e derrubaram o governo blanco, mesmo sob ameaça expressa de Solano López.

López, então, se viu encurralado de inimigos comandando os países vizinhos e temeu que no futuro fosse o próximo a ser derrubado. Se fosse para entrar em combate, o momento mais propício era aquele, dado a ampla superioridade numérica de seu exército, e, de fato, foi a opção que tomou. Dois meses após o golpe no Uruguai, ele cumpriu sua ameaça e desferiu o primeiro ataque ao capturar o presidente da província de Mato Grosso — que veio a falecer no cárcere — para então invadir o Brasil por lá, ocupando minas de metais preciosos.

A partir de então tem início a 1ª fase da guerra, em que o tempo era a chave da estratégia paraguaia. A invasão ao Mato Grosso consistia numa distração para forçar o deslocamento e a dispersão da escassa força brasileira, afinal, o Paraguai tinha mais do que o suficiente para abrir duas frentes, enquanto que o objetivo real era 1) atacar e ocupar tanto quanto possível do Rio Grande do Sul e estabelecer uma zona de profundidade estratégica ou buffer zone para amortecer os ataques vindos do Brasil e 2) invadir o Uruguai para depor o governo colorado, eliminar seus partidários e assumir o controle de todo o país junto com os blancos.

Para tanto, era preciso atravessar o território argentino, que por sua vez implicava envolvê-la no conflito. Todavia, a Argentina — governada por unitários, aliados brasileiros, lembra? — tinha declarado neutralidade, negando qualquer assistência a qualquer um dos lados. Assim, Solano se vê sem alternativas, a não ser entrar à força, jogando os argentinos contra si. Apesar de parecer ter sido uma atitude temerária ou mesmo irresponsável, havia a expectativa de que as províncias governadas por federalistas se rebelassem, paralisando o contra-ataque argentino.

No decorrer dos primeiros meses o rolo compressor paraguaio foi tomando uma cidade após a outra em marcha ao Uruguai, para o desespero dos Aliados, mas então, ao chegar em Corrientes, no coração do Prata, a guerra mudou suas características, o que gerou um ponto de virada. Por ser uma região toda entrecortada por rios, nenhuma força terrestre avança sem apoio naval, a guerra, logo, se deslocaria para a água. Entra em cena a Armada Nacional.

Dom Pedro II era descendente direto da família real portuguesa, e, portanto, parte da linhagem de governantes responsável por montar o primeiro império ultramarino da história, e que agora governava um país com milhares de quilômetros de costa. O peso da tradição, da expertise e da necessidade prática fizeram com que a marinha brasileira figurasse entre as mais fortes do planeta naquela época, chegando a fazer frente às principais frotas europeias.

Em junho de 1865, na Batalha do Riachuelo, a Armada aniquila a marinha paraguaia e estanca a invasão. A partir desse impasse, o Brasil consegue tempo para mobilizar recursos e principalmente, pessoas.

A nação chamou seus filhos à luta e foi atendida pelos Voluntários da Pátria.

A Batalha do Riachuelo foi um ponto de virada a favor dos Aliados – Wikimedia Commons

VOLUNTÁRIOS (nem tanto) 
DA PÁTRIA (nem tanto)

Através do programa de recrutamento Voluntários da Pátria, o governo imperial arregimentou sua força militar no seio civil da sociedade. De início funcionava basicamente na base do apelo, e foi bem sucedido até certo ponto, pois o furor da sociedade em expulsar os agressores levou multidões às fileiras marciais.

Contudo, à medida que as notícias dos horrores do front chegavam, o ímpeto geral foi esmaecendo. A guerra se revelava um verdadeiro moedouro de homens, de modo que a bravura dos voluntários não foi o suficiente para poupá-los: dos 51 batalhões enviados, retornaram 14. Quanto mais a guerra se alastrava, mais o apoio popular sucumbia, chegando ao ponto de provocar grande oposição, já no estágio final.

Por isso que ao longo da campanha, o imperador teve de prover incentivos mais contundentes do que patriotismo apenas. Prêmios em dinheiro, lotes de terra, cargos públicos, patentes e títulos nobiliárquicos foram prometidos aos voluntários, caso retornassem, e do contrário, se não retornassem, sua família estaria devidamente amparada por uma bela pensão. Ainda assim, quanto mais a guerra avançava, mais difícil era atrair as pessoas, afinal as promessas perdem seus encantos frente à morte certa.

O que fazer, então? Aí está a “vantagem” de um governo autoritário. Se as pessoas não se voluntariam, você voluntariza elas. O imperador decretou cotas de voluntariado para cada província, que deveriam ser cumpridas de uma forma ou de outra. Entretanto, algo tão radical poderia gerar o risco de rebeliões internas, que é tudo o que um beligerante não precisa. O que fazer então? Nesse momento a pátria lembra que tem mais gente dividindo o território com seus cidadãos.

O governo passou a pagar indenização àqueles que oferecessem seus escravizados à causa, enquanto que para o oferecido era prometida a alforria quando retornasse. Portanto, para os cidadãos de bens, surgiu uma oportunidade de escapar da possibilidade de ser convocado à força, simplesmente trocando sua presença ali por um cativo. A estratégia foi um sucesso e também o sangue negro passou a fluir pelos pântanos platinos.

Quando a guerra acabou, uma outra luta esperava pelos voluntários, dessa vez em solo nacional: seus direitos prometidos. Graças à guerra o Estado se enfiara numa enorme crise econômica e mal conseguia arcar com seus gastos regulares, problema que se somava à ineficiência burocrática — muitos processos permaneciam anos parados — e à corrupção — que desviava o dinheiro para pessoas que não tinham direito. Quanto aos negros, estes voltaram aos grilhões, presos assim que retornaram, ainda de uniforme.

A história oficial — aquela contada pelo Estado, majoritariamente presente no currículo escolar — retoma os Voluntários da Pátria em seu melhor esplendor, no início da guerra, mas tende a deixar a sua continuação nefasta debaixo do tapete, limitada ao ambiente acadêmico.

Charge retratando a desilusão do soldado negro – Angelo Agostini, 1870

MALDITA GUERRA

Para a desgraça de Solano López, seu exército travou no meio do caminho e não conseguiu atingir o Uruguai, enquanto que seus aliados argentinos não foram ao seu socorro, pelo contrário, se uniram contra a agressão sofrida. Na 2ª fase da guerra, os Aliados conseguem isolar as forças invasoras e lançam sua contraofensiva diretamente ao território paraguaio sob o comando de Duque de Caxias — que substituiu Bartolomeu Mitre, comandante da 1ª fase.

As fortalezas fluviais do Paraguai foram caindo uma por uma mediante a sangrentas batalhas anfíbias. A principal delas, a Fortaleza de Humaitá, precisou ser cercada durante meses antes de ser tomada, para finalmente liberar o caminho rumo à tomada da capital Assunção.

Entretanto, Caxias não queria correr riscos, e decidiu lidar com o resto do exército paraguaio em vez de disparar para Assunção. Ao longo do mês de dezembro de 1868, ocorre a célebre Dezembrada, uma série acachapante de vitórias sobre o que restava das forças paraguaias, garantindo a vitória militar completa.

Quando as forças brasileiras chegaram à Assunção (argentinos e uruguaios haviam se retirado do front antes da invasão) Solano López havia fugido para as cordilheiras interioranas do país. Dom Pedro II não queria negociar, apenas a cabeça do inimigo lhe serviria. A 3ª fase se estende por 14 longos meses de caçada ao ditador em fuga, deixando um rastro de destruição por todo o país, devido à cooptação da população civil pelas forças leais a López, não antes sem Caxias entregar o comando do exército por não ver mais sentido naquilo. Quem assumiu foi o Conde D’Eu, marido da princesa Isabel.

Primeiro de março de 1870, Solano é capturado e posteriormente morto, ao tentar atacar um oficial brasileiro, dando fim à guerra.

Durante muito tempo a história da Guerra do Paraguai seguiu um modelo descritivo focado no aspecto militar das grandes batalhas e nos eventos oficiais, sem prestar muita atenção à conjuntura política ou à dimensão social do conflito, até que a partir de 1960, surge o primeiro movimento de revisão histórica, que busca enquadrar a guerra na dinâmica das disputas interestatais sistêmicas. Nessa narrativa, a Inglaterra aparece como principal catalisadora do conflito devido a interesses particulares, como venda de armas e empréstimo, além da destruição do Paraguai, suposta ameaça a suas ambições na região.

É possível que o leitor tenha tido contato com essa versão ainda na escola, pois ela vigorou até os anos 90. A partir de então, uma nova revisão afastou a hipótese da culpa inglesa, ao investigar a fundo sua relação com os sulamericanos e constatar que o Paraguai jamais conseguiria ameaçar em algum grau a hegemonia inglesa na região. Na verdade, o país era um ótimo cliente da Inglaterra, pois estava contraindo empréstimos crescentes para financiar seu projeto “desenvolvimentista”. Além do mais, a paralisação do comércio no Prata, ponto comercial mais ativo do continente, causou prejuízos gigantescos aos comerciantes ingleses.

Não só a causa externa da guerra foi refutada, como a nova historiografia lança luz à dinâmica política regional, conferindo uma causa endógena ao conflito, além de recuperar elementos sociais importantes, presentes, sobretudo, na história dos voluntários.

Hoje, a memória da Guerra do Paraguai pode estar tão distante da sociedade a ponto de não despertar paixões e debates, mas o trauma gerado naquela geração de brasileiros foi o suficiente para empurrar o Brasil em direção a uma tradição pacifista. Sendo o 3º maior país do mundo em número de fronteiras, dividimos o continente com 10 vizinhos e há mais de 150 anos não entramos mais em confronto militar com algum deles, nem temos território em litígio e há décadas o país é um dos líderes mundiais em desarmamento e não-proliferação nuclear. 

Se fosse possível falar em subconsciente coletivo, certamente encontraríamos o legado dessa experiência como uma marca profunda, capaz de influenciar a nossa identidade e em como nos relacionamos enquanto nação.

As rivalidades não são necessariamente postas de lado, mas são administradas de forma madura

Referências Bibliográficas

RODRIGUES, Marcelo S. Guerra do Paraguai: Os caminhos da memória entre a comemoração e o esquecimento. Universidade de São Paulo. São Paulo, 2009.

KOHLER, Guilherme. Guerra do Paraguai: o maior conflito sul-americano. Politize!, 26/09/2019. Disponível em: <https://www.politize.com.br/guerra-do-paraguai/>

DGP Mundo. A guerra do Paraguai. Youtube, 15/06/2018. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=B8HC7b_g9Z8>

Buenas Ideias. A GUERRA DO PARAGUAI | EDUARDO BUENO. Youtube, 10/01/2018. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=a4NRoFCtFFM>

Nerdologia. História da Guerra do Paraguai | Nerdologia. Youtube, 10/03/2018. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=F1cS5Fnvfyo>

Iago Dalfior

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