TERRA DE NINGUÉM

TERRA DE NINGUÉM

Terra de Ninguém é uma coprodução entre a Bósnia, Bélgica, Grã-Bretanha, Itália e Eslovênia. Dirigido por Danis Tanovic, o filme tem como retrato a Guerra da Bósnia e usa do humor e da sátira como uma forma de crítica ao acontecimento internacional. Durante este período, dois soldados — um bósnio e um sérvio — acabam reclusos em uma trincheira entre as linhas, e o fato de serem inimigos torna a convivência letal, até perceberem haver um sobrevivente bósnio com eles, e que seu corpo está sobre uma mina que explodirá a qualquer movimento brusco. Com isso, é necessária a intermediação da ONU, mas esta enfrentou obstáculos absurdos que geraram atordoamento e desconsolo aos envolvidos.

O que foi a Guerra da Bósnia? A Guerra da Bósnia (1992-1995), tem origens étnicas na Bósnia e Herzegovina, antiga república da Iugoslávia que compreendia uma população formada por bósnios (muçulmanos bósnios), sérvios e croatas. Fundada em 1943, durante a Segunda Guerra Mundial, a República Federal Socialista da Iugoslávia era uma federação composta por seis repúblicas: Bósnia-Herzegovina, Croácia, Eslovênia, Sérvia, Montenegro e Macedônia. Após 1945, com o fim da Guerra, a república foi governada pelo marechal Josip Tito, e até então existia uma convivência coesa entre católicos, muçulmanos e cidadãos ortodoxos, visto que Tito regeu duras penalidades ao separatismo e ao nacionalismo étnico (SREBRENICA, 2008).

As fronteiras históricas da Iugoslávia de 1919 a 1992.

Fonte: Encyclopædia Britannica, Inc

Entretanto, o conflito étnico sempre esteve presente, mas era controlado pelo governante. Com a morte de Tito em 1980, o separatismo cresceu rapidamente e o país começou a se desintegrar etnicamente, e, além disso, ocorreu um declínio econômico que ampliou a insatisfação com o sistema político vigente. Em 1986, Slobodan Milosevic emergiu ao poder como um “pára-raios” do nacionalismo, criando conflitos entre os sérvios, croatas e bósnios muçulmanos. Utilizando-se de antigos rancores, Milosevic estimulou sentimentos nacionalistas extremos ao incitar a necessidade de uma “Grande Sérvia”, um país constituído de apenas sérvios. (BORGENPROEJCT, 2018)

Após a desintegração da Iugoslávia, líderes que se utilizavam do etnonacionalismo chegaram ao poder em toda a região

Fonte: srebrenica.org.uk

Em 1991, Croácia, Eslovênia e Macedônia declararam sua independência. Emergiu, como consequência, uma guerra na Croácia, onde o exército iugoslavo dominado pelos sérvios apoiou os separatistas sérvios em confrontos brutais com o exército croata. Na Bósnia, até a década de 1970, os muçulmanos denotavam o maior grupo étnico da população. Contudo, os sérvios e croatas imigraram de forma intensiva nas décadas seguintes e, de acordo com um censo de 1991, a população da Bósnia era de cerca de 4 milhões de pessoas, 44% bósnios, 31% sérvios e 17% croatas. No final de 1990, ocorreram eleições que resultaram em uma divisão do governo por uma coalizão entre os partidos que correspondiam às três etnias, liderados pelo bósnio Alija Izetbegovic. Com fortes tensões, tanto dentro como fora do país, o líder sérvio-bósnio Radovan Karadozic e seu Partido Democrático Sérvio se desassociaram do governo e estabeleceram sua própria Assembleia Nacional Sérvia. Deste modo, em 1992, após uma votação de referendo, o presidente Izetbegovic proclamou a independência da Bósnia. (HISTORY, 2009)

Após os Estados Unidos e a Comunidade Europeia terem reconhecido a independência da Bósnia, o Partido Democrata Sérvio, que desejava a criação de uma “Grande Sérvia”, bombardeou Sarajevo, capital da Bósnia.  Sinalizava aqui o começo de uma guerra marcada pela limpeza étnica, por milhões de deslocados e mortos. A comunidade internacional, em destaque a ONU, fizeram pouco para evitar as atrocidades sistemáticas durante a Guerra da Bósnia, algo pouco falado e que é destaque no filme Terra de Ninguém.

Sobre o massacre de Srebrenica, que foi acompanhado pelo mundo todo e teve como consequências uma maior intervenção da comunidade internacional: 

No verão de 1995, três cidades no leste da Bósnia – Srebrenica, Zepa e Gorazde – permaneceram sob o controle do governo da Bósnia. A ONU declarou esses enclaves “refúgios seguros” em 1993, a serem desarmados e protegidos pelas forças internacionais de manutenção da paz. Em 11 de julho de 1995, no entanto, as forças sérvias da Bósnia avançaram sobre Srebrenica, esmagando um batalhão de forças de manutenção da paz holandesas estacionado lá. Posteriormente, as forças sérvias separaram os civis bósnios em Srebrenica, colocando as mulheres e meninas nos ônibus e enviando-as para o território controlado pela Bósnia. Algumas das mulheres foram estupradas ou abusadas sexualmente, enquanto os homens e meninos que ficaram para trás foram mortos imediatamente ou levados de ônibus para locais de assassinato em massa. As estimativas dos bósnios mortos pelas forças sérvias em Srebrenica variam de cerca de 7.000 a mais de 8.000 (HISTORY, 2008).

Menos de um mês após o massacre, as forças sérvias dominaram uma vila na Bósnia, “Zepa”, e bombardearam um mercado lotado em Sarajevo. Com isso, a ONU interveio com mais intensidade, incluindocom bloqueios e sanções comerciais. Em consequência, Milosevic concordou em entrar em negociações em 1995. As negociações de paz foram intermediadas pelos EUA e resultaram na criação de uma Bósnia Federativa dividida entre croata-bósnia e uma república sérvia. (HISTORY, 2008).

É nesse contexto que o filme No Man’s Land (Terra de Ninguém) de 2001, incorpora seu enredo. Logo no começo do filme, alguns soldados croatas se perdem em meio da névoa no campo de batalha e, ao decidirem esperar a névoa se dissipar, percebem que estão a poucos metros das tropas sérvias. A maioria dos soldados croatas são mortos, Ciki cai em uma trincheira e, por enquanto, é o único sobrevivente. Na trincheira sérvia, é ordenado que dois soldados inspecionam a trincheira da bósnia, mas sua presença não é notada e os sérvios decidem colocar o corpo de um dos amigos de Ciki em cima de uma mina acionada, como forma de emboscada. 

Prestes a ser descoberto, Ciki consegue se armar e disparar contra os soldados. Um dos sérvios morre, e o outro, Nino, é ferido, mas por algum motivo não é morto por seu inimigo. Ciki tenta fazer com que Nino, despido e com uma blusa branca representando um símbolo de “pacificação”, envie uma mensagem de cessar-fogo aos sérvios. Entretanto, Nino não é identificado e os fogos continuam. Nesse momento, quando ambos os soldados se escondem no mesmo espaço para se protegerem do bombardeiro, acontece um diálogo extremamente interessante:

Pararam

Claro. Vocês nunca param.

E vocês? Por acaso param?

Não podem comparar. Não fomos nós que começamos a guerra.

E fomos nós?

Não, o Khmer Vermelho (tom irônico)

Vocês só sabem guerrear.

Nós?

Não, são pacifistas. A “Grande Sérvia”, vai até o Pacífico. Pare com isso! O mundo inteiro pensa como eu.  

Que mundo? só o seu! Mostram nossas cidades incendiadas e dizem que são suas. 

Não é meu lado que está atirando!

Vocês são santos! Não deixam nem os mortos em paz!

Não é a mesma coisa?

E pôr minas sob os mortos (referência ao amigo), pilhar, matar, estuprar é o que?

De quem está falando?

De vocês!

Nunca vi nada disso que está dizendo…

Eu vi. Vi minha cidade ser incendiada. 

Também não incendiaram as nossas? Quem matou nossa gente? 

O diálogo termina quando percebem que cada um tem sua própria percepção sobre quem começou a guerra, e que seria inútil qualquer diálogo sobre isso. Ao longo do filme, até tentam, mas nenhuma tranquilidade é alcançada. Seus ideais e ideologias são mais fortes do que o fato de estarem presos em uma trincheira. O amigo de Nino, que está sobre uma mina, não estava realmente morto e com isso ambos tentam sinalizar um cessar-fogo. Por fim, a trincheira sérvia reconhece Nino e decide chamar os soldados da ONU para intermediar a retirada de ambos, para que ninguém saia ferido dali. Porém, mal sabiam que a situação iria piorar com a vinda dos capacetes azuis. 

A decisão dos líderes da ONU é de não intervir naquela situação. Os soldados que foram até a trincheira ficaram abismados, principalmente após saberem que havia um soldado em cima de uma mina, e que era necessário chamar um esquadrão anti-bomba. Mesmo com a notícia, os líderes decidem retirar os capacetes azuis, até que a mídia demonstra estar ciente do acontecimento. Durante o filme, há uma rápida fala sobre Ruanda, que nos faz lembrar da omissão da comunidade internacional e das consequências dessa decisão. O mesmo aconteceu com a Bósnia e as consequências foram terríveis, quando a ajuda veio, milhões já haviam morrido, milhares de mulheres foram estupradas e tantos outros deslocados. Como observado por um relatório do Human Rights Watch:

Relatamos o manuseio incorreto da crise pela força de paz da ONU na Bósnia, UNPROFOR / UNPF – desde as decisões covardes de seus comandantes de campo antes da queda de Srebrenica, até sua aparente supressão e destruição de evidências de abusos massivos dos direitos humanos imediatamente após a queda da “área segura”. Também relatamos sobre o “extravio” pelo Ministério da Defesa holandês de uma lista crucial de homens e meninos bósnios desaparecidos e a destruição de uma fita de vídeo mostrando soldados sérvios bósnios envolvidos em execuções extrajudiciais enquanto as tropas holandesas da ONU observavam. (Human Rights Watch Outubro 1995 vol. 7, No. 13)

Por fim, o filme é uma obra ficcional com duras sátiras de uma realidade não muito distante. Sem dar muitos spoilers do filme, no meio para o final uma das repórteres que estava perto da trincheira onde Nino e Ciki se encontravam, disse sobre a ONU: 

– Ninguém é neutro diante da morte. Não fazer nada para impedir é uma escolha. Não é ser neutro.

Ana Clara Bueno

Estudante de Relações Internacionais pela UFG. Apaixonada por Direitos Humanos, Segurança internacional e Política Externa. Mescla todas suas paixões com produções cinematográficas. Futura ativista dos Direitos dos Animais.

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