ESPECIAL COPA DO MUNDO: MUITO MAIS QUE FUTEBOL

ESPECIAL COPA DO MUNDO: MUITO MAIS QUE FUTEBOL

Foto: Reprodução/FIFA

A Copa do Mundo da Federação Internacional de Futebol Associado (FIFA)  é uma competição internacional de futebol e considerada um dos maiores eventos esportivos do planeta. A cada 4 anos, bilhões de pessoas assistem aos jogos realizados, seja de maneira presencial ou virtual. A Copa, como é carinhosamente chamada pelos seus espectadores regulares, se tornou um fenômeno de publicidade, arrecadação e visibilidade. Mas não é de hoje:  o primeiro evento aconteceu em 1930 e está diretamente relacionado ao surgimento da FIFA e sua atuação e importância na popularização e profissionalização do futebol. Para que a competição finalmente acontecesse foram muitos anos de tentativas de organização, sendo que a Federação foi fundada em 1904. 

Com isso, é com muito prazer que o Dois Níveis abre o Especial Copa do Mundo com um mergulho da história do evento tão importante e marcante para a história do esporte. Mas mais do que isso, a Copa do Mundo é um símbolo de reunião entre povos, nacionalidades e, por que não, políticas. Com o aporte financeiro envolvido na operação, as 4 linhas dos jogos do esporte mais popular do planeta se tornaram atrativas para os Estados, de forma esportiva, financeira e política. O presente artigo pretende apresentar a Copa do Mundo como competição e o Especial como um todo se debruçará sobre os aspectos mais subliminares da aclamada competição, a qual em 2022 é sediada pelo Catar.

A HISTÓRIA DA COPA DO MUNDO

Os primeiros países que aderiram à FIFA foram Bélgica, Dinamarca, França, Holanda, Espanha, Suécia e Suíça. Porém, a partir dos esforços de Jules Rimet – presidente da Fifa por mais de 30 anos –, principalmente na década de 1920, após o sucesso da competição de futebol dos Jogos Olímpicos de 1924 e 1928, as negociações para a criação da “Copa do Mundo” se intensificaram. 

Assim, em 1928 aconteceu a reunião com a decisão final de organizar o primeiro Mundial. Nela, foi acordado o básico do campeonato: o evento seria realizado a cada 4 anos, com um troféu produzido pela FIFA, seria aberto a nações de todos os continentes e, caso necessário, eliminatórias seriam organizadas para determinar os participantes finais. Porém, apenas em 1929 houve a definição da sede, o que gerou intensos debates. Diversas nações se candidataram para sediar a Copa de 1930, mas a decisão foi atribuída a múltiplos fatores (NEVES; CFRB; [s.D]).

O Uruguai, primeiro país sede, além de já ter ganhado duas vezes as Olimpíadas na época, havia se comprometido a pagar as despesas de todos os participantes e a construir um novo estádio. Com isso, a primeira Copa do Mundo estava organizada, e contou com 13 participantes, sendo eles: Bélgica, Iugoslávia, Romênia, França, EUA, México, Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai, Peru e Uruguai. É importante ressaltar que a FIFA, por motivos políticos, esperava afastar a influência do Comitê Olímpico Internacional (COI) ao levar a competição para a América do Sul. A decisão não agradou os europeus, que decidiram boicotar a Copa do Mundo. Foi aqui que a articulação do presidente Jules Rimet fez com que o campeonato não fracassasse (Idem).

Diversas Copas se sucederam, sendo que não foram poucas às vezes que o contexto político se atrelou ao que acontecia dentro de campo.

Um selo impresso na Hungria mostra Jules Rimet com o troféu que posteriormente seria nomeado em sua homenagem, em reconhecimento por sua importância na organização da primeira Copa do Mundo (Foto: Olga Popova/Shuttershock).

A COPA DO MUNDO E AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

Com isso, desde o momento de sua criação, é notável que a Copa e o futebol, de uma forma geral, têm uma correlação com a política de cada país e com o cenário mundial. O caráter social e cultural do esporte contribui para instigar o nacionalismo e a atratividade à juventude, como por exemplo, na propaganda militar. Após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), a partir da ascensão de regimes autoritários e nacionalistas, o interesse no esporte pelos governos teve um aumento significativo. De acordo com Eric Hobsbawn (1991), a partir desse evento na história, notou-se uma intensificação do sentimento nacionalista para além das áreas tradicionais deste debate. 

A partir disso, o autor do livro “Sport and International Relations”, Trevor Taylor (1986), entende o esporte não apenas como uma atividade transacional, e sim como um notável instrumento de política governamental. Como exemplo, nota-se o futebol como um substituto inofensivo da guerra, uma maneira de diplomacia. Na Copa do Mundo, os países podem mostrar suas habilidades por meios não militares. Um caso conhecido que evidencia isso é a rivalidade entre Argentina e Inglaterra devido à Guerra das Malvinas, que ultrapassou o caráter militar com o duelo na final da Copa do Mundo de 1986, com a vitória da Argentina. Declarações de jogadores, políticos e ações de torcedores, como os torcedores argentinos queimando a bandeira da Inglaterra em um jogo anterior, demonstravam claramente o clima bélico que era transferido das Malvinas para o Estádio Azteca. A “vingança” buscada pelos argentinos ocorreu na vitória por 2×1, com a famosa “Mano de Dios” de Maradona, um gol de mão que selou a satisfação argentina em eliminar aqueles que os venceram no conflito de 4 anos antes (CORDEIRO; OLIVEIRA; CAPRARO, 2019).

“A gente dizia publicamente antes da partida que não se devia misturar as coisas, mas era mentira. Aquela era uma final, um jogo que representava demais para a gente. Tratava-se mesmo de ganhar de um país todo, não só de um time de futebol (…). Mataram muitos meninos argentinos na guerra. Nos mataram como passarinhos. E esta era uma maneira de recuperar algo das Malvinas. Antes do jogo a gente despistou, mas nem por um caralho (sic) este seria apenas mais um jogo.”

Diego Maradona, em trecho de sua autobiografia (TORRAGA, 2021).

A Copa de 1934, organizada na Itália fascista de Benito Mussolini, ganhou notoriedade posterior pela influência do líder fascista autoritário na manipulação de resultados e ameaças pela vitória da Squadra Azzurra – como a seleção italiana é conhecida –, a qual inevitavelmente foi campeã naquele ano. Em 1938, prestes ao estopim da Segunda Guerra Mundial, uma foto oficial do time da Alemanha, que havia acabado de anexar a Áustria, demonstra a saudação nazista feita por todos os jogadores perfilados para a execução do hino nacional (PIMENTEL, 2018). 

No caso do Brasil, em 1962 o governo brasileiro, na figura de Tancredo Neves, autorizado por João Goulart, negociou com a FIFA para que Garrincha, expulso na semifinal, ainda jogasse a final sem suspensão. E, para muitos, o principal motivo para que o pedido tenha sido aceito foi para dificultar uma possível vitória da Tchecoslováquia, à época um país comunista em meio ao contexto de uma Guerra Fria. Posteriormente, é possível notar como a ditadura militar utilizou a imagem e a identidade da seleção brasileira para angariar mobilização pelo regime, ressaltando como a forte relação entre futebol e política era notada pelos militares (BARRETO, 2019).

Na edição de 2022, um conflito que promete ter gatilhos notáveis políticos é a partida entre Inglaterra e País de Gales pela Copa do Mundo. Em uma das corriqueiras coincidências irônicas do destino, os dois países caíram no mesmo grupo de enfrentamento na fase inicial da Copa do Catar. Com isso, o nacionalismo e até mesmo separatismo galeses, os quais vêm se fortalecendo nos últimos anos entraram no jogo extracampo do futebol. O vídeo oficial do País de Gales para a Copa do Mundo mesclou imagens de protestos contra a nomeação do então príncipe Charles como Príncipe de Wales em 1969 com trechos exaltação da identidade nacional galesa por imagens, cartazes e a música “Yma o Hyd”, considerada um canto de afirmação e legado cultural  galês. O vídeo é basicamente um recorte de como o futebol pode se posicionar no campo ideológico de um país (COPA ALÉM DA COPA, 2022).

A identidade galesa em contraponto com a cultura inglesa, sob o Reino Unido, entrou novamente em papel de destaque recentemente. A nomeação do atual príncipe herdeiro William ao posto anteriormente ocupado por seu pai, agora Rei Charles III, levantou questionamentos se já não é hora de devolver o posto a um galês de origem, já que o último a deter o título foi morto pelo Rei Edward I em 1282. Desde então, o título foi passado ao filho mais velho do monarca britânico. Novamente, acontecimentos do futebol se mesclaram com o mundo extracampo, identitário e cultural: William, agora príncipe de Gales e presidente de honra da Federação Inglesa de Futebol, declarou torcida à Inglaterra e até entregou, de maneira simbólica, kits de jogo para os atletas convocados para a Seleção Inglesa (AFP, 2022). 

É claro que isso levantou a contradição de um inglês ocupar o cargo real destinado ao País de Gales, inflamado pelo fato de que os dois países serão adversários diretos na Copa do Mundo, fato que definitivamente não ajuda a popularidade de William em Gales. O acadêmico de Segurança Internacional, Richard Wyn Jones (2022), um do principais teóricos da Escola Galesa – ou de Aberystwyth – republicou em seu Twitter a foto oficial de William na ação dos uniformes ingleses com a legenda “Não o meu Princípe…”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir dos fatores vistos acima é notável que a Copa do Mundo da FIFA envolve muito mais aspectos do que “apenas futebol”. Do ponto de vista político, os grandes eventos esportivos são vistos como oportunidades de fortalecer – ou não – a imagem de um país e, em consequência, a popularidade de seus líderes. Porém, tendo em vista a escolha para a sede da Copa do presente ano, a FIFA, em carta às seleções participantes, pediu foco no futebol e não na política (VERENICZ, 2022). Mas é impossível compreender o esporte sem levar em consideração o contexto que ele está inserido. O futebol não existe em uma bolha a par da sociedade, pelo contrário, ele existe em meio a um mundo político e tem implicações importantes dentro desse contexto. 

A própria escolha do Catar como sede da Copa do Mundo do presente ano foi envolta em críticas, investigações e suspeitas de favorecimento da FIFA ao Catar em práticas de corrupção. O Catar, acusado de sportwashing, lida com denúncias de ONGs e ativistas apontam violações de leis trabalhistas, não cumprimento dos ideais da Declaração Universal dos Direitos Humanos, como, por exemplo, leis que criminalizam relações homossexuais no Catar. Assim, a Federação enviou uma carta a todas as seleções que disputarão a competição recomendando que os times se concentrem no torneio e não levem “todas as batalhas ideológicas ou políticas que existem” para o campo. 

Essa diferenciação solicitada em carta pela FIFA, tendo em vista tudo que já foi aqui colocado, parece ser quase impossível de ser feita. Se, desde a criação da competição, a política está intrinsecamente ligada ao futebol, é difícil separá-la agora, com questões tão fundamentais (HOFMAN, 2017). E afinal, Copa é Copa sem política? 

Não, não é. E é por isso que o Especial Copa do Mundo dos Dois Níveis vai se mergulhar sobre alguns dos pormenores existentes e fazer parte da tentativa de deixar claro que, como os fãs de futebol constantemente dizem, “é muito mais que um jogo”. 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGENCE FRANCE-PRESSE (AFP). William, o príncipe de Gales, torce pela Inglaterra, e não pelo país de Gales na Copa. G1. 2022. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2022/11/16/william-o-principe-de-gales-torce-para-a-inglaterra-e-nao-pelo-pais-de-gales-na-copa.ghtml. Acesso em 17 novembro 2022.


BARRETO, Túlio Velho. Em tempos de copa do mundo, futebol e política contribuíram para a construção de nossa identidade nacional. In: Coletiva – Política e Cidadania. 2018. Disponível em https://www.coletiva.org/politica-e-cidadania-n1-em-tempos-de-copa-do-mundo-futebo-e-politica-por-tulio-velho-barreto. ISSN 2179-1287.


CENTRO DE REFERÊNCIA DO FUTEBOL BRASILEIRO. Copa do Mundo de 1930. Museu do Futebol. [s.d]. Disponível em: https://museudofutebol.org.br/crfb/eventos/528788/. Acesso em 17 de novembro 2022.


CNN BRASIL. Entenda por que o Uruguai ostenta quatro estrelas mesmo tendo duas Copas. 2022. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/esporte/entenda-por-que-o-uruguai-tem-quatro-estrelas-duas-copas-olimpiadas/#:~:text=Os%20principais%20motivos%20para%20a,Uruguaia%20de%20Futebol%20(AUF). Acesso em 17 de novembro de 2022.


COPA ALÉM DA COPA. “Gales volta a uma Copa do Mundo após 64 anos, o maior hiato entre duas participações da história […]”. 2022. Twitter: @copalaemdacopa. Disponível em: https://twitter.com/copaalemdacopa/status/1590329362007539712?s=20&t=fZSq1rCVmup6dXZoXzdOyg. Acesso em 17 de novembro de 2022.


CORDEIRO, Weslei da Mota; OLIVEIRA, Jonathan Rocha de; CAPRARO, André Mendes. Argentina e Inglaterra: adversários para além das quatro linhas? O uso midiático da guerra das ilhas malvinas na copa do mundo de 1986. II Seminário Internacional Interdisciplinar de Estudos sobre Futebol e Sociedade, [s. l.], 2019. Disponível em: https://siseve.apps.uepg.br/storage//siiefs2019/docs/03-002.pdf. Acesso em: 18 de novembro de 2022.


HOFMAN, Gustavo. A complicada e hipócrita relação entre futebol e política na Copa. ESPN. 2017. Disponível em: https://www.espn.com.br/blogs/gustavohofman/700850_a-complicada-e-hipocrita-relacao-entre-futebol-e-politica-na-copa. Acesso em 10 de novembro de 2022.


NEVES, Daniel. Copa do Mundo. Brasil Escola. [s.D] Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/educacao-fisica/copa-mundo.htm. Acesso em 10 novembro 2022.


PIMENTEL, Samuel. Curiosidades da Copa do Mundo: quando política e futebol se misturam. Jornal O Povo. 2018. Disponível em: https://www.opovo.com.br/esportes/futebol/copadomundo/2018/05/curiosidades-da-copa-do-mundo-quando-politica-e-futebol-se-misturam.html. Acesso em: 18 novembro de 2022.


RODRIGUES, Mariana. O poder institucional da FIFA como um ator não estatal na política internacional. Faculdade de Economia, Universidade de Coimbra, 2015. Disponível em: https://estudogeral.uc.pt/bitstream/10316/30120/1/O%20Poder%20Institucional%20da%20FIFA%20na%20Politica%20Internacional.pdf. Acesso em: 18 novembro de 2022.


TORRAGA, Tales. 35 anos hoje: veja 5 histórias sobre o épico Argentina x Inglaterra de 1986. Uol Esporte. 2021. Disponível em: https://www.uol.com.br/esporte/colunas/tales-torraga/2021/06/22/35-anos-hoje-veja-5-historias-sobre-o-epico-argentina-x-inglaterra-de-1986.htm. Acesso em: 18 de novembro de 2022.


VERENICZ, Marina. Copa do Mundo: Em carta às seleções, Fifa pede foco no futebol e não na política. Carta Capital. 2022. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/mundo/copa-do-mundo-em-carta-as-selecoes-fifa-pede-foco-no-futebol-e-nao-na-politica/. Acesso em 18 de novembro de 2022.


WYN JONES, Richard. “Not my prince…”. 15 Nov. 2022. Twitter: @RWynJones. Disponível em: https://twitter.com/RWynJones/status/1592476211246432257?s=20&t=fZSq1rCVmup6dXZoXzdOyg. Acesso em 17 de novembro de 2022.

*Artigo escrito em conjunto por:

Mateus Rodrigues Ramos
Natural de Catalão (GO) e graduando em Relações Internacionais pela UFG. Sou interessado por Conflitos Internacionais, temas históricos, diversidade cultural e estudo de idiomas. Apaixonado por futebol, games e cultura pop em geral, estou sempre disposto a questionar e aprender.

Maya Fernandes Freitas

Nascida e criada em São Paulo e graduanda em Ciências Econômicas pela UFSCar. Tudo que envolve o entendimento de problemas sociais e como superá-los me interessa. Além disso, apaixonada por literatura e esportes.

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