OCIDENTE COR-DE-ROSA: COMO OS DIREITOS LGBTQIA+ SE TORNARAM FERRAMENTAS DE ESTADO

OCIDENTE COR-DE-ROSA: COMO OS DIREITOS LGBTQIA+ SE TORNARAM FERRAMENTAS DE ESTADO

NA CAPA: “Liberação queer, não capitalismo arco-íris”.

Na segunda semana deste Especial Dois Níveis, este artigo pretende abordar como a liberalização dos direitos da comunidade LGBTQIA+, sobretudo nos países denominados Ocidentais, vem sido utilizada como uma ferramenta de controle do Estado. Uma das maiores vitórias do movimento nas últimas décadas foi a inclusão das políticas de gênero e sexualidade na agenda da modernidade, o que facilitou a descriminalização da homossexualidade, o reconhecimento dos direitos a casamento e adoção, e o acesso a cirurgias de mudança de gênero. Este foi um ganho incomparável, mas não alcançou a todos: ao mesmo tempo em que permite a integração de um determinado recorte da comunidade, também possibilita a crescente associação entre Ocidente, modernidade e direitos LGBTQIA+ e permite, desta forma, que a liberalização passe a ser utilizada como uma maneira de justificar o controle imperialista sobre populações marginalizadas e “atrasadas”. Neste texto, serão abordados alguns dos principais conceitos relacionados a este fenômeno e como este deve ser superado para a verdadeira emancipação internacional de gênero e sexualidade.

RECORTES NAS IDENTIDADES LGBTQIA+

No texto anterior deste especial, discutimos um pouco sobre a diferença entre as perspectivas queer e LGBT de liberalização legal e social de direitos de gênero e sexualidade. Um ponto chave para entender esta distinção é a noção de que a normatividade permanece nos movimentos liderados por um recorte populacional de maioria branca, cisgênero, de classe alta e – relevante para este ensaio – pertencente à Europa ou aos Estados Unidos. Neste aspecto, é possível introduzir o conceito de homonormatividade, termo cunhado por Lisa Duggan para referir-se a um movimento liberal que deixa de contestar as políticas heteronormativas[1] dominantes e se foca na inserção desmobilizada e consumista do público gay à sociedade (OLIVEIRA, 2019). Identidades que não se encaixam nestes padrões, por não afirmarem a noção branca e cisgênero de sexualidade, não são reconhecidas por estas políticas.

Isto leva, por sua vez, ao reforço da marginalização de povos queer não-brancos e de classe baixa (OLIVEIRA, 2019). Fugir da heteronormatividade, afinal, não é visto como um privilégio para todos: como afirma Gilles Kleitz, “o pobre não pode ser queer, porque identidades sexuais são vistas como um desafortunado resultado do desenvolvimento Ocidental e estão conectados ao ser rico e privilegiado. O pobre apenas se reproduz.” (apud. RAO, 2020, p. 140). Mais do que isto – pertencer à comunidade LGBT passa a ser diretamente associado com o Ocidente, denominação um tanto arbitrária que representa os poderes globais herdeiros das concepções europeias de civilização e modernidade. Para o sociólogo Aníbal Quijano, a continuidade as formas coloniais de dominação (colonialidade) manifesta-se na hierarquização da diferença cultural em termos de raça e gênero (PEREIRA, 2015). A Teoria Queer, neste aspecto, dialoga com esta noção quando aponta para o uso do LGBT em uma forma contemporânea de dominação na qual, uma vez que as culturas estrangeiras são vistas como ameaças por não se conformarem com seus ideais, se tornam irredimíveis e devem ser corrigidas através de intervenção, seja interna ou externamente (WEBER, 2016).

HOMONACIONALISMO, PINKWASHING E OUTROS –ISMOS

Teóricos queer, portanto, possuem alguns conceitos-chave que permitem a melhor compreensão do fenômeno. Homonacionalismo, por instância, é um termo cunhado por Jasbir Puar (2007) para denotar como a soma de peças como nacionalismo e homonormatividade resulta na propagação de um Estado aliado a determinado tipo de homossexualidade que exige da população gay um posicionamento de defesa dos interesses nacionais. Inicialmente inserido no contexto estadunidense, o termo hoje também se estende ao âmbito global (WINER & BOLZENDAHL, 2021) – e resulta na estigmatização de populações “desviantes”, permitindo que se justifique posições racistas, anti-imigração e imperialistas a povos vistos como homofóbicos.

Pinkwashing ou Lavagem Rosa, por sua vez, foi apresentado por Sarah Schulman (nov. 2011) como uma manifestação concreta de homonacionalismo: ocorre no aso específico da utilização da estratégia deliberada do governo israelense de apresentar uma imagem liberal e pró-LGBTQIA+ como forma de cobrir a violência contra o povo palestino, apresentado como homofóbico. Dez anos depois de sua criação, o termo está mais relevante que nunca no contexto da mais recente crise entre Israel e Palestina. Também passa a ser frequentemente utilizado para apontar a ‘privatização’ do mês e das Marchas do Orgulho (POPA & SANDAL, 2019) por parte de companhias que oferecem seu apoio somente em junho, uma vez que a comunidade gay (em geral branca e de classe alta) é entendida como uma importante fonte de capital, mas não se deve arriscar a completa desvinculação de consumidores conservadores.

Similarmente, Weber (2016) aborda a construção do “homossexual perverso” no âmbito das migrações não desejadas e do terrorismo em oposição ao “homossexual normal” patriótico, que é aquele que recebe os direitos por ser capaz de manter o status quo civilizacional. Rao (2015) faz amplo uso do conceito de homocapitalismo para conectar os direitos LGBT, no contexto das Instituições Financeiras Internacionais (IFIs), aos binários de “civilizado” e “não civilizado” – e, desta forma, demonstrar sua ação na Uganda e na Índia contribuiu para as condições que levaram ao crescimento da homofobia. Por fim, Rahman (2014), apresenta o homocolonialismo para explicar precisamente como a triangulação dos direitos queer e da homofobia Islâmica é utilizada para invocar um “excepcionalismo” Ocidental.

A LIBERALIZAÇÃO BINÁRIA E O USO DE HARD E SOFT POWER LGBTQ+

Os binários se manifestam nas Relações Internacionais de diversas formas: nacional e externo, Ocidente e não-Ocidente, desenvolvido e subdesenvolvido, público e privado. No âmbito do que acabamos de analisar, este binário ocorre quando a homofobia se torna um problema do outro:  eles, os tradicionais não civilizados que não respeitam os direitos humanos, contra nós, os modernos e compreensivos guardiões da liberdade e da democracia. De maneira geral, esta justaposição (hierárquica e racializada) é vista precisamente quando se contrapõe o “Ocidente” ao Oriente Médio, África e Europa Oriental (BAKER, 2016).

Em Bosia (2015), a homofobia estatal tem sido uma aliada do projeto Ocidental desde que os britânicos propagaram leis que criminalizavam a sodomia em seu império e, hoje continuam a ser quando, no outro lado da moeda, estas leis permanecem nas antigas colônias como uma forma de resistir à associação contemporânea entre imperialismo a liberalização LGBT. Ferramentas como homonacionalismo e pinkwashing são utilizadas para desviar a atenção da retórica de exclusão contra outros grupos marginalizados, dentre os quais migrantes e mulçumanos (ARMSTRONG, jun. 2018) ao mesmo tempo em que a “ameaça gay ocidental” se torna uma ferramenta de repressão legal e social para a grupos étnicos e interesses comerciais estrangeiros em países como Rússia e Uganda. Mas não só nestes que a homofobia estatal ainda existe: na França, o governo abraça igualdade de casamento para homens gays e lésbica ao mesmo tempo em que negam a estes casais qualquer direito de procriação que não seja adoção, em um modelo que ainda segue a heteronormatividade dos direitos reprodutivos (BOSIA, 2015).

Direitos LGBTQIA+, portanto, são utilizados como fonte de hard e soft power ao mesmo tempo em que cresce o abismo entre populações do lado “certo” ou “errado” da questão; seja na política global ou nas populações internas de imigrantes e pessoas não normativas. Nos Estados Unidos, direitos são adquiridos ao mesmo tempo em que o país é responsável por intervenções militares na Síria e no Afeganistão – e, paradoxalmente (mas nem tanto), se alia a nações violentamente homofóbicas como a Arábia Saudita. Em Israel, Tel Aviv é apresentada como a capital gay do Oriente Médio ao mesmo tempo em que o país coloniza a Palestina. Nas IFIs, a população LGBTQIA+ – e seu poder de compra – se torna uma preocupação tão somente enquanto representa perdas de investimento em países como a Índia, cuja descriminalização da homossexualidade 2018 ocorre em parte devido a pressões de negócios internacionais (MARLOW & TRIVEDI, set. 2018). Na Europa, ainda, a associação do Eurovision com o LGBTQ+ é utilizada para aprofundar a conexão de identidade europeia e igualdade de gânero e sexualidade ao passo em que fortalece divisão entre a União e a Rússia (BAKER, 2016).

DO TOPO À BASE E DA BASE PARA O TOPO

Em suma, o Estado se beneficia do imperialismo e do capitalismo à custa das sexualidades não-normativas e das incontáveis vidas de populações (queer) que, por pertencerem a nações consideradas “homofóbicas”, não são vistas como merecedoras dos mesmos níveis de ajuda que recebem aqueles em países ocidentalizados. Está claro que a estratégia estatocêntrica Ocidental da luta por direitos LGBT não é o suficiente para garantir que os direitos alcancem a todos – que uma abordagem do topo à base não é plenamente capaz de fornecer o que a base necessita.

Como comenta Pereira (2015), “quando viajam, as teorias enfrentam uma estrutura conceitual, política e ética de gestão das esferas do social forjada na Europa nos primeiros séculos de colonização.” (p. 414-415). Neste sentido, a “queerização” da luta por direitos em muito se aproxima das ênfases decoloniais e anti-capitalistas ao defender que é preciso abrir-se a experiências e vivências locais que não necessariamente se encaixam com os preceitos ocidentais. Uma abordagem da base para o topo, principalmente no contexto internacional, se torna essencial para a resistência das populações marginalizadas: é o que ocorre no caso da organização curda Hêvi LGBTI na Turquia (POPA & SANDAL, 2019), e no Behind the Mask, um movimento sul-africano que adereça a invisibilidade da população queer no continente (CURRIER, 2010).

O Ocidente pode lavar-se de rosa e os direitos LGBTQIA+ podem ser trocados por instrumentalização estatal, mas a população queer deve ter em mente que a emancipação internacional só poderá ocorrer quando todos os membros da comunidade forem contemplados – e todos receberem uma voz.


[1] A premissa normativa de que só há dois gêneros que necessariamente refletem o sexo biológico e que a atração só deve ocorrer pelo sexo oposto (OLIVEIRA, 2019).

OBRAS RECOMENDADAS

Hora Queer/Doutora Drag [Podcast] #107 – Homonacionalismo e pinkwashing: o mal liberal (Exemplo EUA e Israel). Disponível em: https://horaqueer.com/doutora-drag/.

REFERÊCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARMSTRONG, Megan. ‘Pinkwashing’ and Homonationalism in the Radical Right. Center for Analysis of the Radical Right, jun 2018.. Disponível em: https://www.radicalrightanalysis.com/2018/06/27/pinkwashing-and-homonationalism-in-the-radical-right/. Acesso em: 19 jun. 2021.

BAKER, Catherine. The ‘gay Olympics’? The Eurovision Song Contest and the politics of LGBT/European belonging. European Journal of International Relations, vol. 23, n. 1, 2017, p. 97–121.

BOSIA, Michael. To Love or to Loathe. Modernity, homophobia and LGBT rights. In: PICQ, Manuela & THIEL, Markus (org.). Sexualities in World Politics: How LGBTQ claims shape International Relations. Abingdon: Routledge, p. 38-53, 2015.

CURRIER, Ashley. Behind the Mask: Developing LGBTI visibility in Africa. In. Lind, A. (Org.). Development, Sexual Rights and Global Governance. Routledge, p. 173-187, 2010.

MARLOW, IAIN & TRIVEDI, Upmanyu. Pink Dollar’ to Boost India’s Economy After Gay Sex Legalized. Bloomberg, set. 2018. Disponível em: https://www.bloomberg.com/news/articles/2018-09-11/-pink-dollar-to-boost-india-s-economy-after-gay-sex-legalized. Acesso em: 21 jun. 2021.

MINUANO, Carlos. Brasil é o país que mais mata pessoas trans; 175 foram assassinadas em 2020. UOL. Disponível em: https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2021/01/29/brasil-e-o-pais-que-mais-mata-pessoas-trans-175-foram-assassinadas-em-2020.htm?cmpid=copiaecola. Acesso em: 21 jun. 2021.

OLIVEIRA, Flávia B. Por que o queer? Analisando o disciplinamento das identidades LGBT como manutenção do status quo. (Dissertação de Mestrado) Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais – PUC-Rio, 2019.

PEREIRA, Pedro P. G. Queer decolonial: quando as teorias viajam. Contemporânea. v. 5, n. 2 p. 411-437, jul/dez. 2015.

POPA, Bogdan & SANDAL, Hakan. Decolonial Queer Politics and LGBTI+ Activism in Romania and Turkey. Oxford Research Encyclopedia of Politics, 2019. https://doi.org/10.1093/acrefore/9780190228637.013.1282.

PUAR, Jasbir. Terrorist Assemblages: Homonationalism in Queer Times. Durham: Duke University Press, p. 335, 2007.

RAHMAN, Momin. Queer rights and the triangulation of Western exceptionalism. Journal of Human Rights, v. 13, n. 3, p. 274–28, 2014.

RAO, Rahul. Global homocapitalism. Radical Philosophy, v. 194, p. 38–49, 2015.

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SCHULMAN, Sarah. Israel and “pinkwashing”. New York Times, 22 nov. 2011. Disponível em:  http://www.nytimes.com/2011/11/23/opinion/pinkwashing-and-israels-use-of-gays-as-a-messaging-tool.html. Acesso em: 19 jun. 2021.

WEBER, Cynthia. Queer International Relations: Sovereignty, Sexuality and the Will to Knowledge. Oxford: Oxford University Press, p. 72-142, 2016.

WINER, Canton & BOLZENDAHL, Catherine. Conceptualizing homonationalism: (Re-) Formulation, application, and debates of expansion. Sociology Compass, 2021. Disponível em: https://www.academia.edu/45397582/Conceptualizing_homonationalism_Re_Formulation_application_and_debates_of_expansion. Acesso em: 21 jun. 2021.

Larissa Soares

Mestranda em Relações Internacionais pela Universidade de Lisboa. Se interessa por diplomacia, organizações internacionais, estudos subalternos e queer, conflitos sociais e desenvolvimento.

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