A UCRÂNIA E O HOLODOMOR

A UCRÂNIA E O HOLODOMOR

Durante o século XX o mundo assistiu muitos exemplos do crime de genocídio, sendo o holocausto nazista o exemplo mais famoso e até hoje bem-marcado na memória coletiva. Na atualidade, a Alemanha enquanto nação busca manter vivo o debate sobre o acontecimento que mancha sua história recente através de inúmeras ações governamentais tais como a manutenção de um memorial aos judeus mortos da Europa dentro do museu do holocausto em Berlim[1]. Apesar disso, existiram outros extermínios em massa que não recebem a mesma atenção historiográfica ou mesmo ações de reparação por parte dos perpetradores.

Entre  1932 a 1933 a Ucrânia, na época parte do bloco soviético, teve sua população submetida a um período de fome prolongado sob o governo de Joseph Stalin (1924-1953). Tal acontecimento histórico foi batizado pelos ucranianos de Holodomor, significando “morte pela fome” (ZONTA e ROCHA, 2021). Atualemnte, ainda há debates acerca da cifra exata de mortos e uma polêmica entre historiadores quanto à intencionalidade do governo soviético nas causas da grande fome ucraniana, fator que qualificaria ou desqualificaria o acontecimento traumático como genocídio.

As evidências do genocídio

No início da década de 1930, o governo de Stalin promoveu a coletivização forçada das terras de agricultores por toda a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), impactando principalmente a Ucrânia, um dos países com maior cobertura rural do bloco. O objetivo era aumentar a produção de grãos para que a URSS conseguisse alimentar o Exército Vermelho e manter seu aspecto militar forte perante o mundo. Contudo, os camponeses ucranianos tiveram dificuldade em bater as metas impostas pelos Planos Quinquenais econômicos de Stalin e, eventualmente, se revoltaram contra a situação (ZONTA e ROCHA, 2021).

Em resposta, o governo soviético promoveu a repressão sistemática de quaisquer camponeses que se opusessem à coletivização forçada e tentassem ficar com parte da produção de alimentos para si. As punições incluíam deportações para os gulags (campos de prisão e trabalho forçado da URSS) e pena de morte. Por mais que tenham sido informados de que a colheita ucraniana não seria o suficiente para atender as necessidades da população local no inverno, mesmo em distritos onde ela foi mais farta, o Politburo soviético decidiu seguir com a coleta total da produção agrícola. E, ainda assim, a Ucrânia só conseguiu atender a 39% da meta imposta pelo governo central soviético (RIBEIRO, 2010).

Assim, sob o argumento de que os fazendeiros ucranianos estariam propositalmente sabotando a produção de grãos e criando uma contra revolução ao comunismo soviético, Stalin impôs medidas que deliberadamente tornaram ainda mais difícil o acesso dos ucranianos a alimentos e institucionalizou a perseguição aos ditos contrarrevolucionários. Em dezembro de 1932 foi instituída a proibição de importação de alimentos aos distritos desobedientes, bem como uma resolução oficial do governo soviético institucionalizando a perseguição aos fazendeiros ucranianos “reacionários”:

“[Ao] extermínio dos sabotadores da colecta, nomeadamente dos que, com o seu cartão do Partido no bolso, enganam o governo, criam obstáculos às instruções do Partido […] Para esses inimigos, uma repressão implacável – dez anos de campo de concentração ou a pena de morte” (RIBEIRO, 2010, p. 16) 

De acordo com a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio de 1948, as causas do crime de genocídio passam por elementos mentais e físicos, dentre os quais neste último se incluem “submeter intencionalmente o grupo a condição de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial” (NAÇÕES UNIDAS, 2022). Tendo isso em vista, o historiador português Luís de Matos Ribeiro (2010) argumenta que tanto a coletivização forçada quanto documentos descobertos dos arquivos soviéticos na década de 1980 reforçam a intencionalidade de Stalin em agravar ainda mais a fome generalizada que já assolava a Ucrânia. Fator esse, que demonstra a artificialidade e a intenção do governo soviético em causar dano à população ucraniana.

O negacionismo do genocídio

Para além da negação oficial do governo soviético até a gestão de Mikhail Gorbachev nos anos 1980, existem hoje grupos políticos ao redor do globo que negam a existência do  Holodomor. Tais grupos não tentam provar que a fome generalizada na Ucrânia em si não aconteceu, o que se argumenta é que a tragédia humanitária foi consequência somente de causas naturais e que o governo soviético não foi o agente causador ou mesmo intensificador da fome ucraniana. Portanto, a negação é a de que o crime de genocídio tenha ocorrido, já que é preciso ter a intenção de extermínio de um grupo para que mortes em massa sejam qualificadas como tal, segundo a Convenção para a Prevenção do Crime de Genocídio (NAÇÕES UNIDAS, 2022). 

Em um artigo escrito para a versão brasileira do jornal russo Pravda no aniversário de cem anos da Revolução Russa, o historiador Jones Manoel (2017) expõe os principais argumentos dos grupos políticos que negam a intencionalidade do governo soviético em causar o dito Holodomor. Jones diz que a origem da narrativa do genocídio ucraniano não vem de provas materiais tais como relatórios de agências de inteligência estrangeiras, fotos, relatos, e investigação jornalística, mas sim dos interesses da máquina de propaganda nazista em causar descrédito ao socialismo soviético, interesses que, segundo o historiador, foram e ainda são reforçados por liberais e conservadores até hoje.

Jones também diz que os relatórios de colheita da URSS de 1933 – o ano em que a fome atingiu o seu ápice, segundo os defensores da hipótese de genocídio – mostram que a produção foi, na realidade, maior do que nunca, ainda que as circunstâncias climáticas estivessem desfavoráveis à agricultura. Ele fecha sua contra-agumentação dizendo que a alegação de redução populacional de 1926 a 1939 utilizado pelos apologistas da hipótese de genocídio desconsidera o fator de migração do campo para a cidade que esteve presente na URSS à época.

A luta pelo reconhecimento da memória ucraniana

Em meio ao debate historiográfico sobre a qualificação da grande fome ucraniana enquanto genocídio ou não está a própria população da Ucrânia. Em seu artigo “O Holodomor e a Memória da Fome dos Ucranianos”, o historiador Paulo Augusto Tamanini (2019) faz um estudo sobre a importância de relatos orais e da memória coletiva na escrita da história, citando o caso do coletivo ucraniano com o Holodomor, a luta pelo reconhecimento da grande fome de 1932-33 enquanto genocídio.

Tamanini diz que a pouca repercussão do acontecimento no Ocidente demonstra silêncio e omissão. Sobre eles, o autor disserta: “se antes, configurava-se uma forma de precaução arbitrária, atualmente, conformam certa invisibilidade, preterição e indiferenças chanceladas e cumpliciadas por todos os que não reconhecem o Holodomor como uma extrema violência” (TAMANINI, 2019, p. 163). Até hoje os ucranianos e seus descendentes migrantes em outros países, inclusive o Brasil, procuram manter viva a memória do ocorrido através de fotos, museus, memoriais, relatos etc.   

Conclusão

O debate acerca da grande fome de 1932-1933 e dos aspectos humanitários e legais que rondam tal evento histórico – incluindo-se aí o reconhecimento do acontecimento enquanto genocídio – ainda permanece, e, ainda por cima, permeado por argumentação político-ideológica de todos os lados da discussão. No âmbito interno da Ucrânia, por exemplo, há um forte movimento de incentivo à lembrança constante da tragédia chamada de holodomor por parte do governo. Há, inclusive, um site mantido por embaixadas do país europeu ao redor do globo com fontes e outros links úteis sobre o acontecimento[2].

Sendo assim, sob a luz das atuais relações bilaterais Ucrânia-Rússia, que ainda carregam muitos imbróglios do passado, em grande parte, responsáveis pelas relações conflituosas entre ambos os países, a discussão do holodomor ainda carece de desenvolvimentos importantes nos debates historiográficos globais.

Referências Bibliográficas:

BERLIN. Holocaust Memorial. Berlin, 2022. Disponível em: <https://www.berlin.de/en/attractions-and-sights/3560249-3104052-memorial-to-the-murdered-jews-of-europe.en.html>. Acesso em: 05 mar 2022.

MANOEL, Jones. A “grande fome” na Ucrânia (Holodomor): um dos maiores mitos do século XX. Pravda, 2017. Disponível em: <https://port.pravda.ru/mundo/44306-grande_fome/>. Acesso em: 05 mar 2022. 

NAÇÕES UNIDAS. Genocide. Nações Unidas, 2022. Disponível em: <https://www.un.org/en/genocideprevention/genocide.shtml>. Acesso em: 05 mar 2022.

RIBEIRO, Luís Matos. Holodomor: o Genocídio Ucraniano. Associação Internacional de Estudos Ibero-Eslavos, v. 2, 2010.

TAMANINI, Paulo Augusto. O Holodomor e a Memória da fome dos Ucranianos (1931-1933): Os ressentimentos na história. Projeto História, São Paulo, v. 64, pp.154-184, Jan-Abr 2019.

ZONTA, Ana Carolina; ROCHA, Helena Souza. O Reconhecimento do Holodomor como Genocídio. Revista Direito UTP, v. 2, n. 2, Jul-Dez 2021.


[1] https://www.berlin.de/en/attractions-and-sights/3560249-3104052-memorial-to-the-murdered-jews-of-europe.en.html

[2] https://brazil.mfa.gov.ua/pt/sobre-ucrania/holodomor-genocidio-ucraniano-pela-fome

Letícia Martins Lima

Internacionalista em formação pela Universidade Federal de Goiás, gosta da área geral de Relações Internacionais, mas tem interesse mais específico nas áreas de Política Internacional e Diplomacia.

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