É HORA DE VOLTAR ÀS RUAS DE PARIS

É HORA DE VOLTAR ÀS RUAS DE PARIS

Foto: Reprodução / Pixabay

Palco de um dos marcos no avanço da proteção aos direitos humanos, a França atualmente passa pelo teste de fogo. Conhecida também pela organização popular e pela luta por liberdades, a população francesa se vê mais uma vez obrigada a “arregaçar as mangas” e se mobilizar contra o Governo. O que estaria acontecendo com a França? Por que os protestos de franceses estão novamente em pauta após um intervalo de meses, desde os “coletes amarelos”?

Em 27 de agosto de 1789, no âmbito da Revolução Francesa, era adotada pela Assembleia Nacional Constituinte a Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, a qual buscava diminuir as desigualdades de direitos entre dois grandes grupos: a elite (os mais abastados da época, lê-se nobreza e clero) e o povo ou “terceiro estado” (a grande e pequena burguesia, além daqueles que não possuíam nenhuma posse). Sobre o lema: liberdade, igualdade e fraternidade, Ramos (2014, p. 39. Adaptado) afirma que

O impacto da Revolução na época foi imenso: aboliram-se os privilégios, direitos feudais e imunidades de vários grupos sociais da elite francesa, em especial aquele que mantinha privilégios no que se refere à administração e posse de terras

E foi nesse momento que os franceses descobriram uma boa forma de expressar seus descontentamentos: por meio das manifestações nas ruas. Em 12 de julho de 1789, o povo saiu às ruas de Paris protestando contra os altos privilégios da elite. Dois dias depois, os franceses realizaram aquilo que viria a ser o marco da Revolução Francesa, isto é, a tomada da Bastilha, uma prisão quase desativada que era usada como destino dos presos políticos, ou seja, aqueles que se opunham ao rei francês em questão (RAMOS, 2014). Era, portanto, a vontade do povo prevalecendo. No entanto, nos últimos anos, o absolutismo (poder concentrado no Estado) voltou a assombrar a França, porém, nota-se que os franceses não estão permitindo o retrocesso, pois de revolução entendem bem.

Não é de hoje que a insatisfação popular francesa toma conta das ruas de Paris, Lyon, Nice e outras importantes cidades do país. A última grande mobilização foi aquela promovida pelos “coletes amarelos” (do francês, gilets jaunes). O grupo era composto massivamente por pessoas das classes mais baixas, e protestavam contra o aumento do preço do diesel, combustível usado pela maioria dos franceses, especialmente os mais pobres. Na época, Emmanuel Macron alegou alta do preço internacional do combustível, o que era verdade.

Porém, o que mais pesou no bolso dos franceses foi o imposto sobre combustíveis fósseis colocado pelo Palácio do Eliseu (sede do Poder Executivo francês), tentativa essa do Governo de promover o uso de fontes renováveis e sustentáveis. No entanto, tal circunstância não era possível ser adotada pela maior parte da população francesa (BBC, 2018). Entretanto, em 2020 os franceses precisariam voltar às ruas, desta vez, para proteger direitos fundamentais.

Era 17 de novembro de 2020, em meio a segunda onda da Covid-19 na Europa, os deputados franceses analisaram o projeto de lei do presidente francês, Emmanuel Macron, que tratava, no artigo 24, da proibição de filmagens de ações policiais por parte de cidadãos comuns e jornalistas (ASSEMBLEE NATIONALE, 2020). Na íntegra, o artigo menciona a proibição da “filmagem de membros das forças de segurança com a intenção de prejudicar sua integridade física ou mental” (RFI, 2020). Em suma, ao ser aprovado, o cidadão que fosse flagrado registrando uma ação policial, poderia pegar um ano de reclusão e uma multa de 45 mil euros, o equivalente a 280 mil reais (AFP, 2020). A denúncia da oposição ao Governo de Macron é que tal medida restringirá as liberdades individuais, em especial a de expressão. No entanto, o Ministro do Interior francês, Gérald Darmanin, afirmou com veemência que o artigo é necessário para resguardar a segurança dos policiais, citando, por exemplo, o caso de um casal de policiais que foi filmado durante uma manifestação e, após isso, facilmente encontrados por terroristas que acabaram ceifando suas vidas (RFI, 2020).

A normativa denominada “Lei de Segurança Global”, foi alvo de críticas por parte de órgãos de proteção aos direitos humanos como Anistia Internacional, Liga dos Direitos Humanos e os principais sindicatos de jornalistas do país, os quais se manifestaram contra o projeto de lei nas imediações da Assembleia Nacional. As mesmas organizações também denunciavam o Artigo 21, o qual permitia, por parte das forças de segurança, a gravação de vídeos ou registro de imagens de pessoas que estivessem na manifestação (RFI, 2020).

Foto: Reprodução / Twitter @s_assbague

No dia 24 de novembro, a Assembleia Nacional (o equivalente à Câmara dos Deputados no Brasil) aprovou, por 388 votos a favor em face a 104 votos contrários, a polêmica Lei de Segurança Global. A proposta agora se encontra sob apreciação da Câmara Alta, isto é, o Senado francês. No entanto, tal lei será debatida no Senado somente no mês de janeiro de 2021. Ademais, como aponta o Petit Journal (2020), a situação poderia ter sido mais preocupante, visto que em um dos artigos, o qual não foi aprovado pelos deputados franceses, constava que, para cobrir manifestações, os jornalistas precisariam ser credenciados e a impressa participante seria obrigada a borrar o rosto dos policiais que atuavam no combate à “desordem” dos protestos.

A Organização das Nações Unidas (ONU) e a Comissão Europeia também demonstraram preocupação com o caso. Cinco relatores de direitos humanos da ONU [1] pediram ao Governo francês uma revisão profunda do texto em questão. Além do artigo 24, eles criticavam também o artigo 22, o qual permite o uso de drones por parte da polícia para fins de segurança e luta contra o terrorismo, além de usá-los como instrumento de reconhecimento facial. De acordo com os relatores:

Isso terá sérias implicações no direito à privacidade, liberdade de reunião pacífica e liberdade de expressão em França e em qualquer outro país, que se possa inspirar nesta legislação

(apud RFI, 2020.)

Levando tudo isso em consideração, o Governo francês, por meio da Comissão de Direitos Humanos da França, se propôs a reescrever o artigo 24, porém, os relatores da ONU afirmam que isso não é o suficiente, é preciso ter uma revisão profunda do texto (RFI, 2020). A Comissão Europeia também comentou acerca da situação, segundo ela, a possível aprovação da lei dificultaria em muito o trabalho dos jornalistas, além de reduzir as liberdades destes profissionais. (RFI, 2020).

A França é signatária da Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, a qual menciona que “todo homem tem direito à vida, à liberdade e à segurança” (REZEK, 2005, p. 220) e que, dentre outras coisas, o cidadão não deveria ser submetido a prisões arbitrárias, isto é, ser detido sem haver um motivo convincente e razoável para tal. Portanto, até o momento, é questionável, por parte de alguns agentes internacionais como as Comissões e organizações acima citadas, a razoabilidade de tal medida bem como a sua interferência nas liberdades individuais dos cidadãos.

Desta forma, é imprescindível o legado que os franceses deixaram ao mundo em 1789, visto que as relações sociais e políticas se transformaram desde então. E novamente eles saem às ruas buscando manter seus direitos, ensinando,assim, mais uma lição ao mundo: nem sempre o que se conquista é para sempre, pelo contrário, é preciso reafirmar de tempos em tempos os resultados alcançados. No mais, resta aguardar como se dará o desdobramento deste cenário a partir da apreciação da lei pelo Senado francês em janeiro.

NOTAS

[1] Possuem caráter independente, isto é, são apenas representantes do Conselho de Direitos Humanos da ONU, não falam em nome da instituição.

REFERÊNCIAS

AFP. Confrontos em Paris. 2020. (2m10s). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=-KuIjkpZFIw&feature=youtu.be>. Acesso em: 10 dez. 2020.

ASSBAGUE, S. #marchesdeslibertes #StopLoiSecuriteGlobale. 28 nov. 2020. Twitter: @s_assbague. Disponível em: <https://twitter.com/s_assbague/status/1332712410415816704> Acesso em: 18 dez. 2020.

ASSEMBLEE NATIONALE. Proposition de loi nº 3452, 20 octobre 2020. Proposition de loi relative à la sécurité globale. Paris, 20 octobre 2020. Disponível em: <https://www.assemblee-nationale.fr/dyn/15/textes/l15b3452_proposition-loi.pdf>. Acesso em 18 dez. 2020.

COLETES amarelos: o que é o protesto na França, que reuniu 280 mil pessoas contra alta do diesel. BBC, 2018. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/internacional-46249017>. Acesso em: 17 dez. 2020.

COMISSÃO Europeia critica lei francesa que pune filmagem de policiais em ação. RFI, 2020. Disponível em: <https://www.rfi.fr/br/fran%C3%A7a/20201123-comiss%C3%A3o-europeia-critica-lei-na-fran%C3%A7a-que-pune-filmagem-de-policiais-em-a%C3%A7%C3%A3o>. Acesso em: 18 dez. 2020.

MACHADO, I. P. França refuta críticas de relatores da ONU à lei de segurança global. RFI, 2020. Disponível em: <https://www.rfi.fr/pt/fran%C3%A7a/20201204-fran%C3%A7a-refuta-cr%C3%ADticas-de-relatores-da-onu-%C3%A0-lei-de-seguran%C3%A7a-global>. Acesso em: 18 dez. 2020.

NOVA lei de Segurança Global enfrenta oposição de ativistas de direitos humanos na França. RFI, 2020. Disponível em: <https://www.rfi.fr/br/fran%C3%A7a/20201117-nova-lei-de-seguran%C3%A7a-global-enfrenta-oposi%C3%A7%C3%A3o-de-ativistas-de-direitos-humanos-na-fran%C3%A7a>. Acesso em: 18 dez. 2020.

PETIT JOURNAL. Lei de Segurança Global. 2020. (6m13s). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=S-smhhLhM3U>. Acesso em: 10 dez. 2020.

RAMOS, A. C. Curso de Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva, 2014. 630 p.

REZEK, F. Direito Internacional Público: Curso Elementar. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 2005. 415 p.

Thiago Barros

Graduado em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Goiás. Diretor Executivo do Dois Níveis.