Quanto vale a mulher brasileira nos valores da sociedade portuguesa?

Quanto vale a mulher brasileira nos valores da sociedade portuguesa?

É de amplo conhecimento que os Direitos Humanos são inerentes a qualquer indivíduo e que a Igualdade de Gênero entre homens e mulheres não é mais um assunto a ser questionado, mas sim uma meta a ser alcançada. Por um lado, esses direitos são assegurados no papel, como na Declaração Universal dos Direitos Humanos e nas leis de diversos Estados. Por outro, a realidade no dia a dia é bem mais difícil para as mulheres brasileiras que vivem em Portugal e são vítimas de xenofobia, machismo, racismo e discurso de ódio. 

A vivência de muitas 

A maioria das mulheres se desloca para o outro lado do oceano em busca de melhores salários, segurança, oportunidade de estudo e uma melhor qualidade de vida em geral. Algumas estão acompanhadas de suas famílias, outras migram por conta própria para arriscar uma nova vida. Quando chegam para viver e construir novos laços, percebem que é uma ilusão pensar que por se tratar de um país europeu – mais desenvolvido e “civilizado” no imaginário coletivo-, não existiria preconceito e discriminação contra mulheres. É verdade que existir como mulher na sociedade brasileira pode ser difícil e que existir  como uma portuguesa em Portugal também é, mas ser mulher brasileira em uma sociedade estrangeira que te estigmatiza apenas pela sua origem é uma tarefa duplamente difícil.

Muitos são os relatos de brasileiras que já passaram por algum constrangimento em Portugal, seja em maior ou menor grau de agressividade. Um olhar de julgamento, uma ofensa disfarçada de piada, um xingamento explícito ou até mesmo agressão e violação de seus corpos: 

Na nossa vida, o preconceito é rotineiro. Você está num bar, por exemplo, e diz que é brasileira, a pessoa começa a tomar algumas intimidades e faz observações do que a mulher brasileira representa em Portugal, que está com o corpo disponível para sexo”. – Ellen Theodoro, 41 anos1.

“Eu cheguei em Portugal adolescente e cursei o último ano do segundo grau lá. No primeiro dia de aula, um colega virou pra mim e perguntou o que eu estava fazendo na escola, porque lugar de brasileira era na rua, se prostituindo. E isso num tom de “piada”” – Anônimo2

Os dados do SEF3 (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras de Portugal) em 2021 demonstraram que os brasileiros são a principal comunidade estrangeira no país, representando 29,3% do total. Já os dados do Gabinete de Estratégia e Estudos4, ligado ao Ministério da Economia, demonstraram que em 2020 residiam 81.320 homens e 102.673 mulheres brasileiras em Portugal, ou seja, a comunidade feminina representa pouco mais de 55% dos brasileiros em Portugal.No entanto, o mesmo órgão público que divulga essas estatísticas também já foi acusado de violência contra estrangeiros. O caso mais recente aconteceu em outubro de 2022, quando uma brasileira denunciou um inspetor da imigração do Aeroporto de Lisboa por agressão sexual; felizmente o caso foi analisado e providências foram tomadas5. Ainda assim, é difícil imaginar que talvez esse seja o último caso de abuso de autoridade e violência que estrangeiras possam sofrer.

“Eu trabalho com estética e há pouco tempo ouvi o certo comentário de uma cliente, após eu terminar um procedimento “ao menos para isso vocês brasileiras servem. Além de virem roubar nossos maridos, servem para cuidar de nós e nos deixarem mais bonitas”” – Anônimo

De acordo com o Relatório da Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial de Portugal6, em 2021 foram feitas 408 queixas ligadas a descriminação contra estrangeiros, destas, 109 eram de brasileiros, o que representa 26,7%. Ainda, dentre as 109 queixas, 45,9% eram de pessoas do sexo feminino. Um número alarmante se considerarmos que muitos casos de violência não são registrados ou não chegam ao conhecimento público. Alguns motivos para isso acontecer são: 

  • Falta de confiança nos órgãos públicos e medo de retaliações;
  • Pessoas que estão em situação irregular no país temem que ao procurar as autoridades portuguesas podem agravar a situação legal;
  • Ausência de provas ou desconhecimento da identidade do agressor;
  • Desconhecimento de como e onde podem efetuar denúncias; 

Segundo dados do diagnóstico feito pelo projeto #MigraMyths7 em 2021 da Casa do Brasil de Lisboa, a discriminação e discurso de ódio é majoritariamente vivida pelas redes sociais 32,4%, seguido de 20,9% nos serviços públicos portugueses. Ainda, dos 122 entrevistados da pesquisa, 75,4% afirmaram já ter sofrido algum tipo de discriminação, destes apenas 13,6% denunciaram.

O silêncio diante da violência não é uma opção e toda e qualquer mulher, independente de sua nacionalidade, não deve se sentir sozinha. Por isso, temas como a Igualdade de Gênero e discriminação precisam ser debatidos, alertados e instruídos, da forma mais eficaz possível para combater qualquer tipo de violência. 

A origem da violência

A origem desses atos violentos tem raízes ainda coloniais, mesmo após a independência do Brasil em 1822  e o fim da escravatura em 1888. É perceptível que parte da sociedade portuguesa ainda tem um olhar para brasileiros e brasileiras como um povo inferior, menos letrado e por isso passível de ofensas. 

O imaginário coletivo que ronda a imagem da mulher brasileira em Portugal também é repleto de estereótipos e preconceitos, normalmente relacionados a hipersexualização do corpo, a passividade e a ignorância. Segundo a Doutora em Sociologia Mariana Selister Gomes (2013)8, não é tão antiga a construção do pensamento que brasileiras nos anos noventa migravam para Portugal para trabalhar como profissionais do sexo e que consequentemente acabavam por se casar com portugueses, nascendo daí o mito de que “vêm para cá roubar nossos maridos”. Ainda que, nos últimos anos, essa crença tenha perdido força, os corpos femininos ainda não são respeitados de igual maneira como são os corpos masculinos. 

A objetificação do corpo é uma realidade dada e podemos entender objetificação aqui  como “Quando objetificadas, as mulheres são tratadas como corpos – e, em particular, como corpos que existem para o uso e prazer dos outros”9. São vistas como passíveis de agressão verbal e física porque não são percebidas como um ser humano de igual dignidade se comparadas a uma mulher portuguesa ou a um homem, por exemplo. É importante citar que a vivência de uma mulher brasileira branca e negra também são diferentes, porque além da misoginia há o racismo, seja ele velado ou explícito. 

“Sou negra e passei por racismo no metrô. Haviam várias pessoas (portugueses, pessoas brancas), o vagão estava cheio, e a funcionária do metrô pediu só o meu passe para verificar. Eu fiquei com muita raiva e segurei o choro.” – Anônimo

Diante do exposto, não podemos nos calar e precisamos nos movimentar contra toda e qualquer forma de discriminação, a fim de alcançar a Igualdade de Gênero na prática. Lutemos para que nenhuma mulher brasileira ou portuguesa seja mais constrangida nas ruas, em casa, no trabalho ou onde estiver. 

Iniciativas para combater o preconceito: 

A Igualdade de Gênero, enquanto um direito básico, não diz respeito apenas a um país ou uma sociedade específica, mas faz parte de uma iniciativa global. É por isso que faz parte da Agenda 2030 das Nações Unidas e é o Objetivo 5 entre as 17 metas globais de Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. A Agenda surgiu em 2015 e conta com metas ambiciosas a serem alcançadas até 2030 nas esferas sociais, econômicas, ambientais e de segurança pelos países que fazem parte da Organização. 

Apesar de Portugal ser considerado um país com um alto nível de igualdade se comparado aos outros países do mundo, ocupando a 16º posição no Índice de Igualdade de Gênero Europeu 202010, ainda é um país que não a promove na totalidade, como por exemplo entre mulheres portuguesas e brasileiras. As centenas de relatos, manchetes de jornais e postagens em redes sociais não negam a importância do combate a essa realidade. 

Segundo o Relatório Nacional Sobre a Implementação da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável de Portugal11, o país atualmente se compromete de forma mais assídua nos Objetivos 4, 5, 9, 10, 13 e 14 (Educação de Qualidade, Igualdade de Gênero, Indústria, Inovação e Estrutura, Reduzir as Desigualdades, Ação Climática, Proteger a Vida Marinha). Mesmo assim, para quem vive o dia a dia em Portugal, ainda é difícil sentir os efeitos práticos desse comprometimento, principalmente em relação à inclusão e acolhimento de mulheres estrangeiras que vivem no país. 

Referências bibliográficas

  1. Depoimento retirado da reportagem ”Mulheres brasileiras são as maiores vítimas de crimes de ódio em Portugal”. Correio Brasiliense, 2022. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2022/08/5029287-mulheres-brasileiras-sao-as-maiores-vitimas-de-crimes-de-odio-em-portugal.html. Acesso em 14 fev. 2023
  1. Todos os depoimentos anônimos foram retirados do Instagram @BrasileirasNaoSeCalam responsável por divulgar relatos anônimos de brasileiras no exterior. Acesso em 14 fev. 2023
  1. Relatório de Imigração, Fronteiras e Asilo, 2022 p. 31. Disponível em:  https://sefstat.sef.pt/Docs/Rifa2021.pdf. Acesso em 14 fev. 2023
  1. Relatório População Estrangeira Residente em Portugal – Brasil. p. 2. Disponível em: https://www.gee.gov.pt/pt/lista-publicacoes/estatisticas-de-imigrantes-em-portugal-por-nacionalidade/paises/Brasil/4017-populacao-estrangeira-com-estatuto-legal-de-residente-em-portugal-brasil/file. Acesso em 15 fev. 2023
  1. Reportagem “Brasileira acusa iinspetor da imigração de Portugal de agressão sexual.’  O Globo. Disponível em: https://oglobo.globo.com/blogs/portugal-giro/post/2022/10/brasileira-denuncia-que-foi-violada-por-inspetor-da-imigracao-de-portugal.ghtml. Acesso em 15 fev. 2023
  1. Relatório Anual 2021: Igualdade e não discriminação em razão da origem racial e étnica, cor, nacionalidade, ascendência e território de origem. Disponível em: https://www.cicdr.pt/documents/57891/574449/Relatório+Anual+2021+-+CICDR.pdf/30d474c4-a771-4c23-b8ea-436d3cc971e6. Acesso em 14 fev. 2023 
  1. Diagnóstico realizado pelo projeto #MigraMyths – Desmistificando a Imigração 2a Edição. Disponível em: https://casadobrasildelisboa.pt/discurso-de-odio-e-imigracao-em-portugal-diagnostico-do-projeto-migramyths-desmistificando-a-imigracao-2a-edicao/. Acesso em 15 fev. 2023
  1. O imaginário social <Mulher Brasileira> em Portugal: uma análise da construção de saberes, das relações de poder e dos modos de subjetivação. 2013. Disponível em: https://repositorio.iscte-iul.pt/bitstream/10071/6077/1/GOMES_Mariana_-_TESE_DOUTORAMENTO_DEFINITIVA.pdf. Acesso em 15 fev. 2023
  1. Definição de FREDRICKSON, B. L.; ROBERTS, T. A. Objectification Theory: Toward Understanding Women’s Lived Experiences and Mental Health Risks. Psychology of Women Quarterly,  173–206, 1997.Acesso em 14 fev. 2023 
  1. Índice de Igualdade de Género 2020. Disponível em:  https://www.google.com/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=&ved=2ahUKEwij9pjon9f8AhU6TKQEHYn9BLkQFnoECAgQAw&url=https%3A%2F%2Feige.europa.eu%2Fsites%2Fdefault%2Ffiles%2Fdocuments%2Fmhag20015pta_002.pdf&usg=AOvVaw2h26zWwOoNn98W3W_mA7rg. Acesso em 15 fev. 2023
  1. Relatório Nacional Sobre a Implementação da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável de Portugal. Disponível em:  https://sustainabledevelopment.un.org/content/documents/14966Portugal(Portuguese)2.pdf. Acesso em 15 fev. 2023

Juliana Brito

Graduanda em Relações Internacionais na PUC Minas com mobilidade internacional na Universidade de Lisboa. Tem interesse em Segurança Internacional, Direitos Humanos e debates de gênero em RI.

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