O esquecido caso de Genocídio armênio

O esquecido caso de Genocídio armênio

Fonte: Shutterstock

Diversos genocídios ocorreram desde o início dos tempos, porém poucos deles tiveram grande repercussão ou foram temas de discussões. Até o século XX, o mundo era estritamente eurocêntrico, e não era dada a devida importância ao que ocorria fora da Europa, especialmente no que diz respeito ao que sua população cometia com os outros povos não-europeus. Nesse período, além das vítimas do tão conhecido Holocausto nazista, muitas etnias, minorias e outros grupos sociais sofreram perseguição. Entre eles, uma grande minoria armênia – composta por cerca de 2.600.000 pessoas -, vivendo no final do século XIX na área oriental do Império Otomano, foi alvo de violências sistemáticas que culminaram em uma tentativa de genocídio entre 1914-1918. Provavelmente centenas de milhares morreram durante este período e os sobreviventes precisaram se refugiar em países vizinhos.

Quem são os Armênios?

Os Armênios são um grupo étnico-linguístico que historicamente habitou a região do Cáucaso. O Cristianismo é uma característica profundamente enraizada na história e cultura armênia, sendo a primeira nação a adotar o cristianismo como religião oficial, no ano de 301 d.C. Como será observado, a identidade cristã influenciou muito a cultura armênia, diferenciando-a da maioria de suas comunidades vizinhas . 

  Em meados do século XVI, parte do local onde viviam foi dividido entre o Império Otomano e o Império Safávida [1]. Consequentemente, essa comunidade ficou dividida em diferentes reinos, embora a sua maioria vivesse sob o domínio turco-otomano.

Contextualização histórica

Sabendo que o Império Otomano era um reino multinacional que incorporou vários grupos étnicos, incluindo os armênios, é importante destacar que os indivíduos que compunham esse grupo minoritário eram tratados como cidadãos de segunda classe. Enquanto lhes foram concedidas algumas liberdades, como a capacidade de praticar o Cristianismo – mesmo que a religião predominante do Império fosse o Islã -, eles foram confrontados com impostos extras e leis discriminatórias que se estendem à sua participação no sistema de justiça, no governo e em seus direitos civis e de propriedade. O tratamento que sofriam era o custo que precisavam pagar para manter suas práticas religiosas e conservar um senso de comunidade (COHAN, 2005). 

Apesar de serem tratados como cidadãos inferiores, os armênios viviam em relativa paz durante o período em que o Império Otomano estava forte e em expansão. Todavia, entre os séculos XVIII e XIX, houve um crescimento da exploração e intolerância contra minorias à medida que a estrutura administrativa, financeira e militar do domínio turco entrava em decadência. O enfraquecimento do império ocorreu em virtude da corrupção e de desafios externos que provocaram a perda de territórios para o Império Russo e Reino Unido (HOVANNISIAN, 2007). 

Além disso, a quebra da ordem foi fomentada pela incapacidade dos otomanos em modernizarem-se e em competirem com o crescente sistema capitalista no Ocidente. A partir da expansão do modelo estatal moderno, a ideia de constitucionalismo percorreu a Europa e tornou-se popular dentre alguns setores da população otomana. Assim, alguns armênios começaram a exigir mais direitos, como proteção contra a corrupção de funcionários do governo e tributação arbitrária (HOVANNISIAN, 2007). 

Ainda convém ressaltar que o Império Russo teve um importante papel nesse contexto, uma vez que, tendo conquistado a parte Leste das províncias armênias, tornaram-se um centro cultural desta comunidade. Ao saberem das atrocidades ocorridas no território turco, os armênios russos se tornaram cada vez mais interessados em apoiar os membros do grupo que viviam sob o Império Otomano em sua busca por direitos humanos. Dessa forma, o Império Russo se viu favorável à inclusão da cláusula no Tratado de Berlim que previa mais direitos para os armênios otomanos, incluindo práticas fiscais justas, proteções contra ataques e o direito de dar testemunho em tribunais otomanos (COHAN, 2005). 

No entanto, apesar dos esforços russos, essas garantias não foram cumpridas. Como represália, o Sultão turco-otomano Abdulhamid II organizou o primeiro genocídio armênio realizado entre os anos de 1894 e 1896, resultando na morte estimada de 300 mil armênios (COHAN, 2005). Isso porque, desde a Guerra Russo-Turca de 1877-78, o Império Turco-otomano via os russos como inimigos e ao perceber que estavam tentando interferir em sua política doméstica, em relação a esse grupo minoritário, reforçaram os ataques e a violência contra os armênios (COHAN, 2005).

O cenário político-econômico ao fundo do conflito contra a minoria cristã estava cercado de gastos extravagantes, tributações ainda mais opressivas e aumento da quantidade de impostos. Ou seja, as despesas excessivas da elite governante levaram o império à falência em 1870, e a sobretaxação da população era o último recurso para tentar reerguer a economia do reino, mas o resultado pretendido não foi alcançado (HOVANNISIAN, 2007).

Em paralelo à queda do Império Otomano, a coalização dos Jovens Turcos estava ganhando poder e relevância na conjuntura local através da aliança com armênios, árabes, gregos, judeus e curdos que habitavam a região. Dessa maneira, a associação entre os Jovens Turcos e os diversos grupos que viviam dentro do Império contra a administração do Sultão gerou uma onda de esperança, em especial aos turcos, de que uma nova era de tolerância e garantia de direitos estava se aproximando. No entanto, embora inicialmente os Jovens Turcos estivessem preocupados em reformar o Império a fim de salvá-lo, posteriormente procuraram refazer os restos do desmoronado reino em um Estado centralizado, moderno e nacional, similar às potências europeias (RAE, 2002). 

Em 1906, houve a criação do Comitê para a União e o Progresso (CUP), um partido político que atraiu a maioria dos Jovens Turcos e conseguiu derrubar o Sultão de seu trono em 1908. No ano seguinte, o Império adquiriu um governo constitucional, no qual todos os seus cidadãos possuiam direitos iguais. Dessa forma, os armênios otomanos tinham grandes esperanças de que a nova constituição os protegessem do tipo de violência que suportaram sob o comando do Abdulhamid II (COHAN, 2005).

O grande empecilho para que o desejo da comunidade armênia se tornasse realidade estava diretamente atrelado ao fato de que o partido político que havia tomado o poder era pautado por uma vertente chauvinista do nacionalismo turco e tinha a intenção de construir um Estado nacional turco racionalizado e homogêneo. Isso porque, para que fosse  construído o referido Estado homogêneo a partir dos restos de um império multinacional, o povo armênio precisou sofrer um trágico impacto (RAE, 2002).

A campanha de genocídio

Oficialmente, o genocídio contra a população armênia se iniciou entre os dias 24 e 25 de abril de 1915, quando centenas de líderes políticos, financeiros e intelectuais armênios foram detidos em Constantinopla, deportados para a cidade de Anatólia e assassinados (ASTOURIAN, 1990). Uma vez que esses guias da comunidade armênia foram mortos, o plano de genocídio foi colocado em movimento: muitos homens foram rapidamente executados e – usando novas tecnologias, como o telégrafo e as ferrovias – os chefes do CUP enviaram ordens aos líderes das províncias para reunir mulheres e crianças e carregá-los em trens com destino ao Deserto Sírio ou conduzi-los em marchas forçadas para o deserto. Embarcando com poucos suprimentos, mulheres e crianças tinham pouca esperança de sobrevivência. Dessa forma, os comandantes do CUP aproveitaram o momento em que os olhos da comunidade internacional estavam voltados para os eventos relacionados à Primeira Guerra Mundial para apagar a presença armênia do território turco-otomano (COHAN, 2005). 

É estimado que entre 800 mil e 1,5 milhões de armênios tenham sido deportados e mortos e milhares tenham sido “turquificados”, tornando-se parte da nova identidade nacional da República da Turquia que emergiu após a Primeira Grande Guerra. Isso ocorreu em virtude de que, em meio a construção de uma nação homogênea, a presença de uma minoria cristã era percebida como uma ameaça a seus objetivos. Isto é, de certa maneira, a nova administração utilizava a perseguição desta população minoritária para fortalecer sua própria legitimidade frágil, ao mesmo tempo em que procuravam marcar os limites do Estado turco (AHARON, 2020).

Durante os anos de 1914 a 1918, existiram mecanismos legais que permitiram que a CUP confiscasse propriedades da minoria, incluindo suas riquezas comerciais e pertences. Assim, foi possível criar uma estrutura legal para alcançar dois objetivos: primeiramente expulsar os armênios, abrindo a oportunidade para o genocídio, e repatriar milhares de refugiados muçulmanos que fugiram durante a Guerra dos Bálcãs em 1912 e 1913 às cidades e propriedades anteriormente armênias na região leste de Anatólia (AHARON, 2020).

Existiram na história europeia outros eventos traumáticos similares, tais quais as expulsões pelos franceses dos Huguenotes e pelos espanhóis dos judeus de seus territórios nacionais. Em ambos os governos buscavam destruir a identidade coletiva da minoria e causar grande sofrimento ao grupo-alvo no processo. No entanto, o que diferencia esses dois casos da tentativa de eliminação dos armênios foi que estes não tinham a intenção de destruir fisicamente todos os membros da comunidade que perseguiam. Por outro lado, dentre suas semelhanças, têm-se a visão do grupo minoritário como uma ameaça para a identidade coletiva nacional (RAE, 2002).

Considerações finais

Em face ao que foi mencionado, entende-se que a tentativa de criação de um Estado homogêneo turco gerou uma tragédia para a história do Leste Europeu. Ainda convém notar que o caso de genocídio perpetrado pelo Império Turco-Otomano aos armênios é um exemplo de massacre que não só foi esquecido pela comunidade internacional, mas cujas vítimas não receberam nenhum amparo após terem sofrido tentativa de extermínio, o que traz consequências a essa comunidade até os dias atuais. 

Por fim, faz-se necessário ressaltar que, embora o termo genocídio apenas tenha sido criado na década de 1940, existe um certo consenso dentro das intituições internacionais e dentre vários estudiosos do tema sobre o enquadramento do que os armenios sofreram nessa definição. Contudo, por outro lado, o governo turco ainda nega ativamente o seu envolvimento com esse evento traumático. Dentre uma série de ações adotadas para combater o reconhecimento e a educação sobre o genocídio armênio, as autoridades turcas aprovaram uma lei em 2004 conhecida como Artigo 305, que a torna uma ofensa criminal, punível com até 10 anos de prisão, a realização de discussões sobre o genocídio armênio. Todavia, essa ação da Turquia torna a sua posição, no mínimo, suspeita por não deixar que sua população pronuncie-se sobre um acontecimento que também fez parte de sua história e da sua construção como nação.

Notas

[1] Uma dinastia xiita iraniana.

Referências

AHAROM, Eldad Ben. The 1915 Armenian Genocide: A Very Short History. In: AHAROM, Eldad Ben. How Do We Remember The Armenian Genocide And The Holocaust?: A Global View of an Integrated Memory of Perpetrators, Victims and Third — Party Countries. Peace Research Institute Frankfurt: Frankfurt, 2020. cap. 5, p. 11-12.

ASTOURIAN, Stephan. The Armenian Genocide: An Interpretation. The History Teacher, v. 23, n. 2, 1990, p. 111-160.

COHAN, Sara. A Brief History of the Armenian Genocide. Social Education: Washington, v. 69, n. 6, p. 333–337, Outubro 2005. Disponível em: http://www.ignaciodarnaude.com/espiritualismo/Armenian%20genocide,Brief%20history.pdf. Acesso em: 04 dez. 2021.

HOVANNISIAN, Richard G. The Armenian Genocide in Perspective. 10 ed. Transaction Publishers: London, 2007.

RAE, Heather. State Identities and the Homogenization of Peoples. Cambridge University Press: Cambridge, 2002.

Isadora Ferreira Marinho

Estudante de Relações Internacionais na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Possui interesse nas áreas de Direito Internacional Público e Política Internacional.

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