RÚSSIA E UCRÂNIA: ORIGENS DOS CONFLITOS E NOVAS TENSÕES

RÚSSIA E UCRÂNIA: ORIGENS DOS CONFLITOS E NOVAS TENSÕES

Com o crescente número de militares russos na fronteira com a Ucrânia, os Ministérios de Relações Exteriores da Alemanha e da França – países que integram o “Grupo de Contato Trilateral sobre a Ucrânia” – emitiram uma nota conjunta no dia 04 de abril sobre a situação na região, afirmando que:

“[…] Estão preocupadas com o crescente número de violações do cessar-fogo no leste da Ucrânia, que ocorrem depois que a situação havia se estabilizado desde julho de 2020. Estamos monitorando de perto a situação e, em particular, os movimentos de tropas russas, e conclamamos todas as partes a mostrarem moderação e trabalharem para a imediata redução das tensões.” (GERMAN FEDERAL FOREIGN OFFICE, 2021, tradução minha)[1].

No entanto, para que seja compreendida a motivação das atuais tensões no Leste-Europeu, primeiro é necessário entender o que é a Crimeia e qual é o contexto histórico da região, como surgiram esses conflitos e, por fim, qual é a importância e quais as consequências dessas tensões.

Mapa mostrando a localização da Ucrânia no mapa e os países que fazem fronteira e destacado em roxo, ao sul do país, a Crimeia.
Localização geográfica da Crimeia. Fonte: (FOLHA DE SÃO PAULO, 2014).

A CRIMEIA E SUA HISTÓRIA

A península da Crimeia é uma região que historicamente sofreu com invasões e anexações de diversos impérios e, consequentemente, sempre foi habitada por inúmeros povos de diversos Estados-nações do mundo.

Sua história começa no Rus de Kiev (ou Rússia de Quieve), que foi o primeiro Estado Eslávico e que deu origem a três países que existem hoje em dia: a Rússia – cujo nome tem origem no Rus de Kiev –, a Ucrânia – cuja capital é Kiev – e, também, deu origem a Bielorrússia. Portanto, considerando o aspecto histórico, tanto a Rússia quanto a Ucrânia, e ainda a Bielorrússia, têm relações com a região.

Após ser conquistada pelos mongóis, essa confederação eslava, que existiu até o início do século XIII, desmembrou-se e já no século XV foi estabelecida como o Canato da Crimeia[2], que em 1475 tornou-se um protetorado do Império Otomano. No entanto, após uma série de inúmeras guerras, em 1783 o Canato da Crimeia foi anexado ao imenso Império Russo. Neste mesmo ano, a Frota do Mar Negro é criada pela imperatriz Catarina, A Grande, que estabelece a base da frota na cidade de Sevastopol (GLOBAL SECURITY, 2016).

A UNIÃO SOVIÉTICA E A CRIMEIA

Com a criação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) em 1922, a Crimeia foi incluída ao bloco, e assim foi formada a República Autônoma Socialista Soviética da Crimeia (RASSC) sob responsabilidade da República Socialista Federativa Soviética da Rússia (RSFCS).

A população tártara da Crimeia – que era uma maioria étnica da região –, com a invasão alemã na Grande Guerra Patriótica[3], foi acusada por Stalin de ter apoiado o exército nazista e, portanto, foi expulsa da Crimeia, o que gerou uma grande imigração russa para a região.

Esse é o ponto crucial para compreender a história, pois é justamente nesse período soviético da Crimeia que os conflitos e tensões modernas estão embasados. Isso se dá por causa da decisão do Soviete Supremo, que, em 19 de fevereiro de 1954, transferiu a responsabilidade sobre a República Autônoma Socialista Soviética da Crimeia da Rússia Soviética para a República Socialista Soviética da Ucrânia (CURTIS, 1998; PEREIRA, 2016; TRONENKO, 2016).

Como afirma o ex-embaixador da Ucrânia no Brasil, Rostyslav Tronenko (2016):

“O Decreto apontou que, dada a generalidade da economia, proximidade territorial e vínculos estreitos econômicos e culturais entre a Crimeia e a Ucrânia, esta região seria transmitida para composição da RSS da Ucrânia.” (TRONENKO, 2016, p. 13).

Ainda que essa transferência fosse apenas um “gesto político simbólico” e não realmente uma transferência de soberania, “[…] essas medidas teriam consequências de longo alcance quatro décadas depois, quando a União Soviética se dissolvesse.” (HIPOLD, 2015, p. 5, tradução minha)[4].

VAMOS SER AMIGOS?

Em 12 de fevereiro de 1991, a Ucrânia cede o status de autonomia para a Crimeia e, em 29 de abril de 1992, essa autonomia é estendida. Na prática, a Crimeia tornou-se um Estado soberano, mas que continuaria em território ucraniano. No entanto, em maio de 1992, o parlamento russo declarou que a transferência feita em 1954 por Nikita Khrushchov foi ilegal; esse foi um momento tenso na relação entre os dois países. Porém, em 1994, com o “Memorando de Budapeste”, a Ucrânia abriu mão de seu arsenal nuclear em troca de sua segurança e, portanto, a Rússia passou a respeitar o domínio da Ucrânia sobre a região (HIPOLD, 2015).

Em 1997, no “Tratado de Cooperação e Amizade” a Rússia afirma a inviolabilidade das fronteiras ucranianas e, no mesmo ano, no “Tratado de Partição sobre a Frota do Mar Negro” a Ucrânia concorda em manter bases militares russas em Sevastopol por 20 anos, ou seja, até 2017. Entretanto, esta data foi estendida em 2010 pelo “Pacto de Kharkiv”, no qual, a partir da assinatura, a presença de militares russos na Crimeia valeria por mais 25 anos, ou seja, até 2042 (HIPOLD, 2015; PEREIRA, 2016).

MAS, COMO SURGIRAM OS CONFLITOS ATUAIS?

As recentes tensões na Ucrânia podem ser chamadas de “conflitos congelados”, ou seja, são questões históricas que nunca foram devidamente resolvidas e que estavam apenas aguardando para serem “descongeladas”.

Todas essas questões começaram a “descongelar” quando Viktor Yanukovitch – que já havia sido presidente da Ucrânia em 2004, mas foi forçado a renunciar seu cargo por causa da “Revolução Laranja”[5] –, ganhou as eleições de 2010. Com essa vitória, o político ucraniano “promoveu uma política de não alinhamento à nenhuma das potências que disputam a influência sobre a Ucrânia” (AMAL, 2017), isto é, nem União Europeia (UE), nem Rússia. No entanto, em 21 de novembro de 2013, Yanukovitch recusou a assinatura do Acordo de Associação com a UE e, então, iniciou-se uma série de protestos conhecida como Euromaidan (AMAL, 2017).

EUROMAIDAN

O movimento Euromaidan, que teve origem no Twitter – no mesmo dia do cancelamento do Acordo de Associação – e cuja história é contada no documentário da Netflix, Winter on Fire: Ukraine’s Fight for Freedom (Inverno em chamas: a luta da Ucrânia por liberdade), foi uma série de protestos que aconteceram na principal praça de Kiev, a Praça Maidan (AMAL, 2017; MEI e SAINT-PIERRE, 2020).

Com a escalada causada pelo movimento, a Alemanha, a Rússia, a Polônia e a França tentaram mediar o conflito, até que em 21 de fevereiro um governo provisório foi estabelecido até a ocorrência das eleições em maio. Entretanto, com a crescente ameaça, o presidente Yanukovitch foge para Moscovo e, em abril de 2014, milícias armadas pró-Rússia, dos Oblasts[6] de Donetsk e Lugansk – região conhecida como Donbass –, afirmando que houve um golpe de Estado, autodeclaram-se independentes de Kiev e iniciam a Guerra de Donbass – que dura até hoje (AMAL, 2017).

Placa com a frase “Faça sua escolha!” em russo com alguns desenhos que influenciam o leitor sobre qual lado escolher.
Placa com a frase «Сделай свой выбор!», em português “Faça sua escolha!”, em referência ao referendo de 11 de maio de 2014 sobre a autodeclaração de dependência de Donetsk e Lugansk. Fonte: (LE PARISIEN, 2014).
Mapa da região de Donbass.
Localização geográfica dos Oblasts de Donetsk e Lugansk, que formam a região de Donbass. Fonte: (THE INTERPRETER, 2021).

Em 1º de março de 2014, a Duma[7] aprovou um pedido do Kremlin[8] para intervenção militar no país. No dia 16, um plebiscito é realizado na Crimeia – já ocupada pelos russos – e a população é favorável à anexação russa – com 90% dos votos sendo pró-anexação. O processo foi concluído oficialmente com a assinatura do Tratado de Adesão da Crimeia e de Sevastopol à Federação Russa em 1º de janeiro de 2015 (AMAL, 2017; MEI e SAINT-PIERRE, 2020).

Como analisado por Mei e Saint-Pierre (2020) do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES), no Dossiê de Conflitos Contemporâneos:

“Apesar de, constantemente, o governo russo negar o envolvimento no conflito, e de não apoiar oficialmente um processo de adesão das repúblicas separatistas à Federação Russa, como foi o caso da Crimeia, há evidência de envolvimento de forças russas na região.” (MEI e SAINT-PIERRE, 2020, p. 60).

AS NOVAS TENSÕES

As novas tensões surgiram após Moscovo militarizar ainda mais a fronteira e, principalmente, por não responder quais são as intenções de tal militarização. Como deixou bem claro o Ministro de Relações Exteriores da Rússia, em resposta a um jornalista no último dia 13. Sergey Lavrov disse o seguinte:

“Em relação à declaração da Ministra da Defesa alemã sobre a suposta obrigação da Rússia de explicar suas ações em seu próprio território e os objetivos do desdobramento e exercícios de treinamento das forças armadas, bem como seu pedido para que não mantenham esses fatos em segredo, eu gostaria de dizer o seguinte: gostaríamos que fosse respeitado o direito da Federação Russa de realizar qualquer evento que ela queira em seu próprio território.” (RUSSIAN MINISTRY OF FOREIGN AFFAIRS, 2021, tradução minha)[9].

Portanto, enquanto os objetivos de tal militarização forem secretos, a comunidade internacional deverá ficar receosa sobre as intenções da Rússia para com essa presença militar na fronteira com a Ucrânia, pois qualquer evento adverso na região pode ser entendido como uma tentativa de invasão e, portanto, uma crise diplomática muito grave pode ser instaurada. Não só entre a Rússia e a Ucrânia, mas também com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e seus países-membros, já que, em reunião no último dia 13, a Organização reafirmou “o apoio inabalável […] à soberania e integridade territorial da Ucrânia. [E] expressaram preocupação com o aumento militar da Rússia na Ucrânia e nos arredores […].” (NORTH ATLANTIC TREATY ORGANIZATION, 2021, tradução e adaptação minha)[10].

Por isso, enquanto este assunto, bem como as pendências históricas dos países, não forem resolvidas por vias diplomáticas, tanto a Ucrânia quanto a Rússia enfrentarão muitas tensões entre si.

NOTAS

[1] “We reaffirm our support for the sovereignty and territorial integrity of Ukraine within its internationally recognised borders. As mediators in the Normandy format, France and Germany are continuing their efforts to see the Minsk agreements implemented in full, and regular negotiations are being held to that end.” (GERMAN FEDERAL FOREIGN OFFICE, 2021, trecho original).

[2] Canato é uma região liderada por um Khan (Cã).

[3] Termo utilizado pelas ex-repúblicas soviéticas para descrever os conflitos entre a União Soviética e a Alemanha Nazista.

[4] “[…] these measures would have far-reaching consequences four decades later when the Soviet Union dissolved.” (HIPOLD, 2015, p. 5, trecho original).

[5] A Revolução Laranja foi uma das revoluções que integram as chamadas “Revoluções Coloridas”. Essas revoluções, são, por definição, financiadas pelos Estados Unidos e por Estados Europeus em ex-Estados Soviéticos.

[6] Nome dado às divisões administrativas dos ex-Estados soviéticos.

[7] A Assembleia Legislativa russa.

[8] Do russo «Кремль», que significa “fortaleza”, refere-se ao Kremlin de Moscovo, sede do governo russo.

[9] “Regarding the German Defence Minister’s statement on Russia’s alleged obligation to explain its actions on its own territory and the objectives of its armed forces’ training deployment and exercises, as well as her request that we do not keep these facts secret, I would like to say the following: we would like the Russian Federation’s right to hold any event it wants on its own territory to be respected.” (RUSSIAN MINISTRY OF FOREIGN AFFAIRS, 2021, trecho original).

[10] “Allies reaffirmed NATO’s unwavering support for Ukraine’s sovereignty and territorial integrity. They expressed concern over Russia’s military build-up in and around Ukraine, as well as the ongoing ceasefire violations in eastern Ukraine by Russian-backed militants.” (NORTH ATLANTIC TREATY ORGANIZATION, 2021, trecho original).

REFERÊNCIAS

AMAL, Victor Wolfgang Kegel. A intervenção russa na guerra da Ucrânia (2014): raízes históricas do novo dilema geopolítico europeu. XXIX Simpósio Nacional de História: Brasília, 2017. Disponível em: <http://www.snh2017.anpuh.org/resources/anais/54/1502670667_ARQUIVO_Artigo.Victor.ANPUH.pdf>. Acesso em: 14 abr. 2021.

CURTIS, Gleen. Russia: a country study. Washington, DC: Federal Research Division of the Library of Congress, 1998. ed. 1. Disponível em: <https://web.archive.org/web/20070927230631/http://www.shsu.edu/~his_ncp/Kievan.html>. Acesso em: 13 abr. 2021.

FOLHA DE SÃO PAULO. Entenda por que Ucrânia e Rússia brigam pelo controle da Crimeia. 2014. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2014/03/1422015-entenda-porque-ucrania-e-russia-brigam-pelo-controle-da-crimeia.shtml>. Acesso em: 14 abr. 2021.

GERMAN FEDERAL FOREIGN OFFICE. Joint Statement by the spokespersons for the Ministry of Foreign Affairs of France and the German Federal Foreign Office on the situation in Ukraine. 2021. Disponível em: <https://www.auswaertiges-amt.de/en/newsroom/news/-/2452298>. Acesso em: 14 abr. 2021.

GLOBAL SECURITY. Black Sea Fleet. 2016. Disponível em: <https://www.globalsecurity.org/military/world/russia/mf-black.htm>. Acesso em: 14 abr. 2021.

HIPOLD, Peter. Ukraine, Crimea and New International Law: Balancing International Law with Arguments Drawn from History. Chinese Journal of International Law, Edimburgo, v. 14, n. 2, p. 237-270, jun. 2015. Disponível em: <https://doi.org/10.1093/chinesejil/jmv011>. Acesso em: 13 abr. 2021.

LE PARISIEN. Référendum ce dimanche en Ukraine : le coup de force des séparatistes. 2014. Disponível em: <https://www.leparisien.fr/international/referendum-en-ukraine-le-coup-de-force-des-separatistes-10-05-2014-3830207.php>. Acesso em: 14 abr. 2021.

KRAMER, Mark. Wilson Center. Why Did Russia Give Away Crimea Sixty Years Ago?. 2014. Disponível em: <https://www.wilsoncenter.org/publication/why-did-russia-give-away-crimea-sixty-years-ago>. Acesso em: 14 abr. 2021.

MEI, Eduardo; SAINT-PIERRE, Héctor Luis. Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES). Dossiê de Conflitos Contemporâneos. Observatório de Conflitos, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 55-60, jun./set. 2020. Disponível em: <https://gedes-unesp.org/wp-content/uploads/2020/10/COMPLETO-Observat%C3%B3rio-de-Confltos_-Dossi%C3%AA-de-Conflitos-Cont..-v.1-n.-1-2020.pdf#page=58>. Acesso em: 14 abr. 2021.

NORTH ATLANTIC TREATY ORGANIZATION. NATO-Ukraine Commission addresses security situation in and around Ukraine. 2021. Disponível em: <https://www.nato.int/cps/en/natolive/news_183015.htm?selectedLocale=en>. Acesso em: 14 abr. 2021.

PEREIRA, Heider Tardelli Nunes. O conflito entre a autodeterminação dos povos e a integridade territorial dos estados nos casos de secessão: Um estudo sobre a Crimeia. 2016. Disponível em: <https://repositorio.ufpe.br/bitstream/123456789/21257/4/Monografia%20-%20Heider%20Tardelli%20Nunes%20Pereira.pdf>. Acesso em: 14 abr. 2021.

RUSSIAN MINISTRY OF FOREIGN AFFAIRS. Foreign Minister Sergey Lavrov’s statement and answers to media questions at a joint news conference following talks with Foreign Minister of the Islamic Republic of Iran Mohammad Javad Zarif, Tehran, April 13, 2021. 2021. Disponível em: <https://www.mid.ru/en/web/guest/adernoe-nerasprostranenie/-/asset_publisher/JrcRGi5UdnBO/content/id/4682255>. Acesso em: 14 abr. 2021.

THE INTERPRETER. Lowy Institute. The Donbass conflict: Waiting for escalation. 2021. Disponível em: <https://www.lowyinstitute.org/the-interpreter/donbass-conflict-waiting-escalation>. Acesso em: 14 abr. 2021.

TRONENKO, Rostyslav. Ucrânia: luta pelo direito de escolher seu destino, pela sua soberania e integridade territorial. Universitas Relações Internacionais, Brasília, v. 14, n. 1, p. 103-115, jan./jul. 2016. Disponível em: <https://www.publicacoesacademicas.uniceub.br/relacoesinternacionais/article/view/4116/3079>. Acesso em: 13 abr. 2021.

Jorge Willian Ferreira Gonçalves

Graduando em Relações Internacionais pela UFG. Membro do Grupo de Estudos sobre a Rússia (PRORUS/UFSC) e pesquisador voluntário na Cátedra Sérgio Vieira de Mello (CSVM/UFG). Tenho interesse nas relações Brasil-Rússia e a política externa russa no âmbito da Organização para Cooperação de Xangai e os BRICS.

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