A UNIÃO AFRICANA E O DESENVOLVIMENTO CONTINENTAL

A UNIÃO AFRICANA E O DESENVOLVIMENTO CONTINENTAL

Secretário-Geral da AfCFTA (à esq.) Sua Excelência Wamkele Mene cumprimenta o Presidente do Níger, Sua Excelência Mahamadou Issoufou em outubro de 2022 no 10º Encontro do Conselho de Ministros do AfCFTA

INTRODUÇÃO

Dentre as diversas Instituições Internacionais (IIs) que estão presentes no mundo hoje, destacam-se aquelas que visam a integração regional de seus membros. Neste caso, há diversos exemplos de sucesso variado entre elas: União Europeia (UE), Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN), Mercosul, entre outras. Entretanto, não se discute muito a relevância da União Africana (UA) para o processo de integração continental da África. Neste artigo, se discorrerá sobre o desenvolvimento da UA como uma instituição promotora da integração regional, com destaque para a integração econômica propiciada pela instituição.

O PAN-AFRICANISMO

Antes de adentrarmos na Organização da Unidade Africana (OUA) e posteriormente na União Africana, é importante frisar o elemento ideológico basilar para a formação da UA (e que já estava relativamente presente na OUA): o pan-africanismo. O conceito de pan-africanismo existe há mais de um século, embora sua definição seja diferente através do tempo. Inicialmente, pan-africanismo referia-se à diáspora africana e como os povos de origem da África juntavam-se para enfrentar, como um só povo, o racismo que sofriam – neste período o movimento era essencialmente não-estatal, limitando-se ao nível individual. Entretanto, hoje o conceito expandiu-se e compreende independência coletiva[1] e o novo regionalismo africano (MKANDAWIRE, 2011).

A PREDECESSORA – A ORGANIZAÇÃO DA UNIDADE AFRICANA

A União Africana e todo o processo de integração regional propiciado por ela não proveio do acaso – na realidade, foram décadas de trabalho árduo dentro da estrutura da Organização da Unidade Africana (OUA), predecessora da UA. A OUA é a antiga “instituição guarda-chuva” da África, uma vez que era a principal Instituição Internacional e, sob sua alçada, havia uma estrutura burocrática diversa. Ela tinha sido estabelecida em maio de 1963 na capital etíope, Adis Abeba. A Carta fundadora da OUA havia sido um dos maiores símbolos do pan-africanismo no século XX, pois através dela se proclamaram os valores e objetivos comuns entre os membros da nova instituição, que, em especial, no seu artigo II e III destacavam: a promoção da unidade e solidariedade dos Estados africanos, melhora das condições de vida da população, defesa da integridade territorial, soberania e independência, fim do colonialismo, cooperação diplomática, educacional, científica e securitária, assim como cooperação econômica (OSARO; OLANREWAJU, 2012, p. 41-43). Embora todo o sucesso supracitado, a Organização da Unidade Africana:

[…] nunca teve a capacidade para resolver as grandes guerras na África durante seu período de existência. De fato, não havia um exército permanente. Era vista como um cachorro que poderia latir, mas não poderia morder. Além do mais, a OUA nunca se desenvolveu para se tornar uma união econômica como outras organizações regionais, assim como a União Europeia. Talvez este foi o motivo para a iniciativa de alguns líderes africanos fazerem campanha para transformá-la na União Africana, que emergiria em 2002, dez anos depois.

(OSARO; OLANREWAJU, 2012, p. 44)[2].

Encontro em Nairóbi entre Sua Excelência Dr. William Ruto, Presidente do Quênia e Sua Excelência Moussa Faki Mahamat, presidente da Comissão da União Africana (UA, 2023)

A ASCENSÃO DA UNIÃO AFRICANA

Fortemente inspirados em colocar em prática o pan-africanismo e em consertar os erros da OUA, líderes africanos começaram a idealizar uma nova instituição internacional “guarda-chuva” para a África. Ainda em julho de 1999, na capital da Argélia e durante a 35º sessão da Conferência Ordinária dos Chefes de Estado e de Governo da OUA, foi-se debatida a ideia de se criar a nova instituição. Logo mais, em setembro do mesmo ano, em Sirte, na Líbia, decidiu-se de vez pela criação da UA.  Foi nela na qual a Declaração de Sirte foi assinada e divulgada ao público, documento que estabelece a criação da União Africana. Entretanto, sua Carta Constitutiva só foi assinada na Cúpula de Lomé em 2000. No ano de 2001 ela entrou em vigor e em 2002 a União Africana foi lançada oficialmente (HAFFNER; VIANA, 2013, p. 71).

O INÍCIO DA INTEGRAÇÃO ECONÔMICA AFRICANA

Em aspecto econômico, tanto na época da OUA (1963-2002) quanto na época da UA (2002-) compartilhou-se espaço com outras instituições internacionais menores, de caráter regional e econômico. Na segunda parte do século XX, destacou-se várias dessas IIs africanas regionais com o objetivo de promoção da economia e comércio intrabloco. Entre elas, estavam:

União Aduaneira e Econômica da África Central – Congo, Gabão, Camarões e República Centro-Africana;

Comunidade da África do Leste – Quênia, Tanzânia, Uganda

Comunidade Econômica da África do Oeste – Costa do Marfim, Burkina-Faso, Mali, Mauritânia, Níger e Senegal.

Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental – Benin, Cabo Verde, Costa do Marfim, Burkina-Faso, Guiné, Guiné-Bissau, Gâmbia, Gana, Libéria, Mali, Mauritânia, Níger, Nigéria, Senegal, Serra Leoa, Togo e São Tomé e Príncipe.

Grupamento Econômico dos Grandes Lagos – Ruanda, Burundi e República Democrática do Congo.

União do Rio Mano – Serra Leoa e Libéria.

São diversos os agrupamentos econômicos presentes na África da 2º metade do século XX, no período pós-independências. Nota-se que a maioria das instituições supracitadas priorizam a integração entre nações com proximidade territorial e afinidades geohistóricas. Essas primeiras formas de integrar economicamente o continente africano iniciaram-se em caráter regional ou sub-regional. Todas essas IIs tinham, em geral, buscado o desenvolvimento industrial com o intuito de desvincular as economias regionais das economias das antigas metrópoles. Os principais meios de desenvolvimento econômico regional nessa época foram: adoção de tarifas externas comuns para os membros dos blocos, usualmente essas tarifas eram mais altas para se proteger os bens industriais produzidos intrabloco; e o estabelecimento de políticas internacionais para o desenvolvimento econômico (ALTEMANI, 1986, p. 100-101).

Para se chegar no nível de integração econômica que se vê hoje dentro da União Africana, os países da África passaram décadas ensaiando processos de integração regional para fortalecerem suas economias. Vide o Plano Lagos de Ação para o Desenvolvimento Econômico da África, do ano de 1980, ainda sob a alçada da Organização da Unidade Africana. Posteriormente, o Tratado de Abuja do ano de 1991, previa o estabelecimento dessas Comunidades Econômicas Regionais Africanas (RECs, na sigla em inglês). Posteriormente, a Área de Livre Comércio Continental Africana (AfCFTA) foi estabelecida e essas RECs constituíram parte do AfCFTA (FOFACK; MOLD, 2021).

A ZONA DE LIVRE COMÉRCIO AFRICANA (AfCFTA)

A Área de Livre Comércio Continental Africana foi estabelecida em março de 2018 por 54 países do continente. Pela primeira vez, o processo de integração econômica da África não teve como seu principal motor a integração regional, e sim continental. Isso possibilitou e continua a possibilitar a transformação da economia africana e a integração do continente à economia global (FOFACK; MOLD, 2021, p. 1). Em fevereiro de 2023, 54 dos 55 países membros da União Africana tinham assinado o AfCFTA – a única exceção até o momento era a Eritreia (ECA, 2023, p. 13). Agora, em relação às ratificações, até fevereiro de 2023, 46 dos 55 países, ou seja, em torno de 85% dos países ratificaram o acordo. Destaca-se que os países que ratificaram o AfCFTA representam 94% do PIB africano, assim como 88% da população e 94% do comércio continental (ECA, 2023, p. 13).

O acordo de livre comércio através de todo o continente africano serve para contrapor uma tendência de declínio da parcela do comércio africano em relação ao comércio mundial. Na década de 1970, o comércio africano representava 4,5% do comércio global. Em 2020 este número caiu para menos de 3%. O comércio intrarregional (dentro da África, no caso) permanece baixo, em torno de 18% de todo o comércio que os países africanos fazem[3]. Além do mais, 45 das 55 nações da região são altamente dependentes de commodities. Destaca-se os fatores que colaboram para manter o atraso do desenvolvimento econômico africano, entre eles: “os desafios estruturais relacionados com a falta de valor agregado nas exportações de commodities, percepção de estagnação do setor manufatureiro, e o crescimento desproporcional de serviços de baixo valor agregado” (FOFACK; MOLD, 2021, p. 2)

Presidente da África do Sul Jacob Zuma no encontro de Paz e Segurança, antecedendo a 30º Sessão Ordinária da Assembleia de Chefes de Estado e Governo da União Africana (UA), em 27 de janeiro de 2018. Foto de KOPANO TLAPE, GCIS.

Em geral, o padrão econômico da África resume-se na região importando bens industriais, manufaturados, de alto valor agregado, enquanto exportam bens de baixo valor agregado, commodities. Com exceção da Tunísia, todos os países da África destacam-se por possuírem vantagens comparativas para a exportação destes bens de baixo valor agregado, enquanto possuem baixas vantagens comparativas para a exportação de bens manufaturados. Fora a Tunísia, um estudo empírico destacou que todos os demais países africanos têm a possibilidade de diversificação das suas pautas comerciais pela implementação do AfCFTA (GEDA; YIMER, 2022, p. 28)

A Área de Livre Comércio Continental Africana é conhecida como a maior área de livre comércio de todo o mundo, e tem como objetivo separar a economia africana das suas barreiras coloniais que tanto sofreu ao longo do século XIX e século XX. A AfCFTA tem potencial para melhorar a competitividade dos produtos africanos, intensificar o processo de industrialização continental, assim como aumentar tanto o comércio intra-África quanto o comércio além-continente. Destaca-se que, com a implementação do AfCFTA, o continente africano ganha com o aumento do seu poder de barganha no cenário internacional, melhora o seu crescimento econômico sustentável assim como intensifica o relacionamento das cadeias regionais de valor africanas com as cadeias globais de valor (FOFACK, 2020, p. 28).

Em relação ao fluxo de investimento externo direto (IED) e o IED em estoque no continente africano, infelizmente ainda é uma região que possui pouco do direcionamento do investimento estrangeiro global. Entretanto, com o avançar das negociações do AfCFTA e sua implementação, é fato que logo investidores do mundo cogitarão investir recursos financeiros cada vez mais no continente. Estudos recentes comprovam que o AfCFTA possui oportunidades para o setor agrícola, ao aprofundar as cadeias de valor agrícola e novas oportunidades de investimento agrícolas através do novo acordo de livre comércio (MORGAN; FARRIS; JOHNSON, 2022, p. 20).

Por fim, há pesquisas científicas que acreditam que, embora a implementação da Área de Livre Comércio Continental Africana possa ser proveitosa para os países do continente, alguns a consideram um passo menor do que aparenta ser. Isto se dá pois já haviam vários acordos regionais econômicos em atividade na África com o mesmo intuito de liberalização comercial. Estes pesquisadores consideram que a evolução posterior do AfCFTA para o nível de um mercado comum ou união econômica poderia levar a África para um estágio de maiores ganhos econômicos, com a vantagem de melhorar o movimento de fatores de produção, capital e trabalho pelo continente e potencializar os ganhos econômicos compartilhados para os países do bloco (PASARA; DIKO, 2020, p. 10).

Caso tenha ficado interessado no conteúdo deste artigo, recomendamos fortemente a leitura de artigos similares aqui no Dois Níveis. Já publicamos uma entrevista com o Embaixador da Etiópia, país onde se localizava-se a sede da OUA e localiza-se, atualmente, a sede da União Africana. Recentemente publicamos um artigo sobre a resposta da União Africana a golpes de Estado no continente. Também temos diversos artigos sobre o continente africano que podem ser consultados clicando aqui.

Dois Níveis

IMAGENS

Imagem destacada – Secretário-Geral da AfCFTA (à esq.) Sua Excelência Wamkele Mene cumprimenta o Presidente do Níger, Sua Excelência Mahamadou Issoufou em outubro de 2022 no 10º Encontro do Conselho de Ministros do AfCFTA. União Africana, 2022.

Foto 2 – Encontro em Nairóbi entre Sua Excelência Dr. William Ruto, Presidente do Quênia e Sua Excelência Moussa Faki Mahamat, presidente da Comissão da União Africana. União Africana, 2023.

Foto 3 – Presidente da África do Sul Jacob Zuma no encontro de Paz e Segurança, antecedendo a 30º Sessão Ordinária da Assembleia de Chefes de Estado e Governo da União Africana (UA), em 27 de janeiro de 2018. Foto de KOPANO TLAPE, GCIS. União Africana, 2017.

BIBLIOGRAFIA

ALTEMANI, Henrique. Os Organismos de Integração Econômica Regional na África. Revista do Centro de Estudos Africanos da USP, 1986, p. 96-112.

ECA. AfCFTA: What you need to know – Frequently Asked Questions & Answers. United Nations. Economic Comission for Africa (ECA). African Trade Policy Center. Adis Abeba: v. 1, março de 2023.

FOFACK, Hyppolyte. Making the AfCFTA work for the ‘The Africa We Want’. Africa Growth Initiative at Brookings. Working Paper, dezembro de 2020.

FOFACK, Hyppolyte; MOLD, Andrew. The AfCFTA and African trade: An Introduction to the special issue. Journal of African Trade: Paris, Atlantis Press, v. 8, n.º 2, 2021, p. 1-11.

GEDA, Alemayehu; YIMER, Addis. The Trade Effects of the African Continental Free Trade Area: An Empirical Analysis. The World Economy, novembro de 2022.

HAFFNER, Jacqueline; VIANA, Genivone. União Africana (U.A.): Desafios e Oportunidades da Integração. Revista Conjuntura Astral, v. 4, n.º 20, out-nov de 2013, p. 69-94.

MKANDAWIRE, Thandika. Rethinking Pan-Africanism, Nationalism and the New Regionalism. Em: MOYO, Sam; YEROS, Paris. Reclaiming the Nation: The Return of the National Question in Africa, Asia and Latin America. Nova Iorque: Pluto Press, 2011. P. 31-53.

MORGAN, Stephen; FARRIS, Jarrad; JOHNSON, Michael. Foreign Direct Investment in Africa: Recent Trends Leading up to the African Continental Free Trade Area (AfCFTA). Economic Research Service, U.S. Deparment of Agriculture. Boletim de Informação Econômica número 242, outubro de 2022.

OSARO, Victor; OLANREWAJU, Michael. Na Assessmnent of the transformation of the Organization of African Unity (O.A.U.) to the African Union (A.U.), 1963-2007. Journal of the Historical Society of Nigeria. V. 21, p. 41-69, 2012.

PASARA, Michael; DIKO, Nolutho. The Effects of AfCFTA on Food Security Sustainability: An Analysis of the Cereals Trade in the SADC Region. Sustainability, MDPI, 2020.


[1] Independência coletiva aqui não é usado como sinônimo de independência política. No original, utiliza-se o termo “collective self-reliance”, e não “independence”. Isso significa que o conceito aqui utilizado significa algo como “autonomia” ou mesmo “não-dependência” de agentes externos.

[2] No original: However, the O.A.U never had the capacity to resolve major wars in Africa throughout its period of existence. Indeed, it had no standing army. Little wonder, it was described as a bull dog that could only bark, but could not bite. Besides, the O.A.U never developed to become an economic union like other regional organizations, such as the European Union. Perhaps, this informed the initiative of some African leaders to campaign for it to be transformed to the African Union that emerged in 2002, ten years ago. (OSARO; OLANREWAJU, 2012, p. 44)

[3] Embora este número possa estar subrepresentado, uma vez que os autores utilizam a expressão “comércio formal”, já que precisa-se notar a natureza do comércio africano internacional: muito desde comércio se dá de maneira informal, ou seja, são números que não são contabilizados nos cálculos governamentais (FOFACK; MOLD, 2021, p. 2).

Gustavo Milhomem

Graduado em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Goiás. Idealizador do Dois Níveis.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *