Mulheres palestinas: para além do estereótipo

Mulheres palestinas: para além do estereótipo

Você conhece as mulheres palestinas? Se conhece, qual a imagem que você possui delas? Mesmo sem poder ouvir suas respostas acredito que elas estejam baseadas em alguns pré-conceitos que rodeiam o tópico “mulheres/religião/Oriente Médio”. Porque as suas respostas, assim como as da maioria dos brasileiros, são resultado de uma imagem construída durante anos dessas mulheres.

O Ocidente percebe a mulher palestina a partir das marcas e cicatrizes que acredita-se que elas possuem em seus corpos e suas vidas: no imaginário é construída uma mulher subjugada, muçulmana, sem recursos materiais, suja e muitas vezes louca, sendo muito associadas ao terrorismo ou a opressão. Isso, quando essas mulheres não são simplesmente vistas como árabes, parte de um bloco homogêneo que envolve 22 Estados. Essa mulher imaginada é vítima em todos os sentidos, subjugada de todas as formas. A autora Chandra Mohanty escreveu um artigo sobre a criação desse imaginário, no qual ela aponta que acadêmicas ocidentais criam uma “Mulher do Terceiro Mundo” que é totalmente homogênea, sem voz e sem ação política, de forma que mesmo após a independência de seus países, seus corpos e seus discursos continuam colonizados. No caso palestino, não há independência do país e a resistência feminina continua invisível.

Nos próximos parágrafos eu gostaria de te convidar a desconstruir essa imagem..

Em primeiro lugar, vamos colocar os pingos nos i’s: árabe é uma etnia, islã uma religião. É possível ser árabe e não ser muçulmano, assim como o contrário. Os palestinos são a população que vive (e que é descendente) na região da Palestina, existindo palestinos muçulmanos, cristãos, druzos, seculares etc. mas se identificando com a identidade e com a luta palestina. Existe um grande debate sobre a origem do povo palestino, mas o que deve ser colocado em pauta aqui é o motivo pelo qual eles estão lutando: a criação de um Estado Palestino e o direito de retorno estão entre as pautas principais (existe uma discordância interna sobre qual seria a fronteira desse Estado Palestino, alguns aceitam a solução de dois Estados, outros acreditam e israelenses e palestinos podem coexistir em uma mesma fronteira).

Existem mulheres palestinas de diferentes religiões, estados civis, classes sociais e regiões (dentro da Palestina), e cada uma delas possui uma individualidade e uma agência própria. Veja bem, não estou dizendo que nenhuma dessas mulheres é subjugada, ou que dentro do povo palestino não há nenhum tipo de opressão, estou falando que a religião ou a etnia não deveriam ser fatores determinantes para a forma como elas são percebidas socialmente. Todas as mulheres estão inseridas em uma sociedade patriarcal que as subjuga, colocar algumas como livres e outras como restritas com base em estereótipos étnicos e religiosos leva a graves inferências falsas.

Se eu ainda não te convenci, vou falar sobre algumas formas de resistência dessas mulheres

Em primeiro lugar, muitas mulheres palestinas já se envolveram na luta armada, como forma de defender seu povo e chamar atenção para a causa palestina. A segunda Intifada foi uma revolta palestina muito conhecida por ter o envolvimento central de mulheres na sua ação. Leila Khaleed é um grande exemplo disso, mulher que fez parte da Frente Popular para a Libertação da Palestina na década de 70 e até hoje faz parte do Conselho Nacional Palestino. Khaleed, é apenas uma dentre muitas que se envolvem na luta armada, mas essa não é a única forma de resistência.

Sumud é um termo que significa, de forma simplificada, uma resistência pacífica mas não passiva. A partir do momento em que o conflito Israel-Palestina se deslocou para a vida cotidiana, com o exército israelense controlando coisas básicas como o direito de ir e vir e o fornecimento de água nos territórios ocupados, atos cotidianos se tornaram ações de resistência. O sociólogo James C. Scott chama atenção para o fato de locais nos quais as repressões contra formas mais tradicionais de resistência são drásticas, as formas cotidianas de resistência se tornam de grande importância. Esse é o caso palestino, principalmente nos territórios ocupados, se negar a ser revistado em um checkpoint, contar histórias sobre o seu povo ou impedir que um soldado fique no gramado da sua casa ( como fez Ahed Tamimi), se tornam formas importantes de impedir que o poder dominador seja legitimado.

Nesse contexto, a maternidade ganha um enorme significado de luta. Ser mãe palestina significa não apenas constituir uma família, mas também manter o povo palestino vivo. Enquanto continuarem nascendo palestinos a luta armada contra Israel irá se manter e o território não será homogeneamente judeu, isso é uma forma de resistir, de não se deixar ser extinto. A questão da maternidade se tornou tão importante que Israel é um dos países do mundo com mais incentivos financeiros governamentais a maternidade, com mulheres com mais de 7 filhos sendo consideradas heroínas. A primeira-ministra Golda Meir durante o seu mandato deu uma declaração falando que tinha pesadelos todas as noites com bebês palestinos nascendo, mostrando o quanto a demografia palestina se tornou uma questão para o governo israelense. Ainda, a IDF, força de elite do exército de Israel, possuía camisas de formatura em que uma mulher palestina grávida está na mira de uma arma com a legenda “1 shot, 2 kills” (um tiro, duas mortes). Diante desse cenário, a maternidade se torna um lugar de luta, de resistência e de voz da mulher palestina, algo que é reconhecido e as “mães palestinas” são homenageadas constantemente em suas comunidades por terem seus filhos e por entregarem eles à luta.

Existem diferentes formas de resistir e de existir. A pluralidade dessas mulheres, e de tantas outras, devem ser sempre colocadas em pauta. Nesse texto, eu busquei expor algumas formas que as mulheres palestinas ressignificaram lugares que para muitos são considerados de opressão.

REFERÊNCIAS

BARKAY, Rafaela. No woman will be free until all women are free: a look at the israeli-palestinian conflict in a feminist perspective. Revista psicologia política, online. vol.16, n.35, pp. 53-70, 2016.

DAYAN-HERZBRUN, Sonia. As mulheres e a construção do sentimento nacional palestino. Cadernos Pagu, vol. 4, pp. 173-186, 1995.

ENLOE, Cynthia. Bananas, beaches and bases: Making feminist sense of international politics. University of California Press, 2014.

GLUCK, Sherna. Palestinian Women: Gender Politics and Nationalism. Journal of Palestine Studies, vol.24, no.3, pp.5-15, 1995.

GHERMAN, Michel. Entre a Nakba e a Shoá: catástrofes e narrativas nacionais. História, São Paulo, vol. 33, no. 2, pp. 104-121, jul/dez, 2014.

HAMMAMI, Rema. Gender, Nakbe and Nation: Palestinian Women’s Presence and Absence in the Narration of 1948 Memories. Review of women’s studies, vol. 2, pp. 26-39, 2004.

KELMAN, Herbert C. The interdependence of Israeli and Palestinian national identities: The role of the other in existential conflicts. Journal of Social Issues, vol. 55, no. 3, pp. 581-600, 1999.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. Biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. N-1 edições, São Paulo, 2003.

MOHANTY, Chandra Talpade, ‘Under Western Eyes: Feminist Scholarship and Colonial Discourses’, pp. 65-88, in Feminist Review, no. 30, 1988.

Giovanna Lucio Monteiro

Graduanda em Relações Internacionais na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Criadora do projeto Tabuleiro Mundi (Instagram: @tabuleiromundi). Participação especial no Dois Níveis.

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