FUTEBOL E AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS: HÁ CONEXÃO?

FUTEBOL E AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS: HÁ CONEXÃO?

Unsplash. Autor: RASYID, Fikri. 2018.

Em futebol, o pior cego é o que só vê a bola. (Nelson Rodrigues)

Não é incomum perceber que diversas pessoas jamais imaginariam uma relação entre futebol e política, muito menos entre futebol e as Relações Internacionais. Até mesmo porque o futebol, de regras simples, fácil entendimento e o esporte mais praticado do mundo, reivindicou para si as paixões cotidianas de um público democrático. Afinal, um grito de gol reúne, sem distinção, pessoas de todas as classes, etnias, crenças e posicionamentos. A cotidianidade de seu público tornou as quatro linhas demarcadas pela cal um ambiente que atrai grandes multidões, cifras exorbitantes e muitas alegrias, tristezas, junções, separações e uma gama de elementos diversificados advindos de seu extenso alcance. Essa diversificação permitiu que o futebol se tornasse mais do que um esporte: transformou-se em um campo de expressão para os anseios de seus atores.

FUTEBOL COMO EXPRESSÃO POPULAR

Além de treinamentos táticos, físicos e técnicos — que são fatores concretos —, existem algumas características importantes para a constatação da capacidade de expressão do esporte em questão: fortes sensos de identificação, idolatria, religiosidade, culto ao espírito de garra, dualidade sorte/azar, superstições, dentre outras. Essas características se tornaram mais fortes em alguns lugares do que em outros, como no Brasil, explicado pelo misticismo cultural da população, uma vez originária da confluência das matrizes africana, indígena e europeia, como colocado pela Universidade do Futebol (2013). Nota-se, dessa forma, que o futebol traz consigo pesos, bandeiras e questões externas ao jogo técnico, regras e atletas.

Assim como o futebol reivindicou características próprias no caso brasileiro, relacionadas às questões citadas anteriormente, assim o fez no resto do mundo, absorvendo características do âmbito em que está situado e se tornando, majoritariamente, um esporte de expressão dos anseios da população que o acompanha. Considerado, portanto, o futebol como o esporte da expressividade de seu público, faz-se o questionamento: e os temas que, aparentemente, nada têm a ver com futebol, como por exemplo, aqueles relacionados ao campo de estudo das Relações Internacionais: independência e separatismo de Nações, identidade, patriotismo, pertencimento, guerras, conflitos político-religiosos, delimitação de fronteiras e territórios, etc.? A resposta é sim, o futebol também os absorve e isso gera diversas manifestações, dentro e fora do campo, das Relações Internacionais e alguns de seus objetos de estudos. A título de exemplificação, pode-se citar comemorações de jogadores que fazem alusão a conflitos de territórios, as motivações de escolhas de alguns países e não outros para sediar a Copa do Mundo, atletas impedidos de entrar em certas regiões por sua nacionalidade, dentre outros.  Constata-se, de maneira consequente, a relação entre a disciplina e o esporte mais popular do mundo.

DE CHARLES MILLER AO “MÉS QUE UN CLUB”: FUTEBOL E AS RI

Algumas fontes sugerem que o futebol teve suas primeiras manifestações na China, por volta de 2500 a.C. A corrente de pensamento em questão sugere que os soldados se divertiam com a cabeça ou crânio de seus inimigos em um macabro jogo. Por outro lado, outros historiadores creditam a invenção do futebol à civilização maia, na qual, separados em duas equipes não-fixas, os times deveriam acertar um aro, condenando a liderança do time derrotado à morte. Essas manifestações embrionárias similares ao jogo dos pés são gêneses alternativas à comumente tratada no senso de senso comum. Nesta, a origem se dá na Inglaterra, com equipes da cidade de Chester tentando fazer, no “mass football”, com que uma bola atravessasse um portão. Com o auge do século XIX e das ideias racionalistas, a vida cotidiana inglesa ganhou regras e normas em diversos setores, inclusive, no jogo abstrato de diversão. Essas normas racionais fizeram, a priori, o jogo se tornar prestigiado entre as elites, porém a classe operária também se apaixonou pelo esporte, incentivados por parte da elite inglesa em uma tentativa de esfriar o espírito revolucionário — uma das primeiras correlações do jogo com a política. Pouco a pouco, o futebol se alastrou e se popularizou, tornando-se esporte olímpico e possibilitando a criação da FIFA, sua entidade máxima de regulação.

A partir disso, outra correlação entre futebol e o campo de estudo das RI é a imigração da família Miller ao Brasil, britânicos de origem escocesa, residentes em São Paulo. O filho Charles Miller trouxe em 1894, de sua terra natal, a bola e o livro de regras do jogo e assim o Brasil — e toda a América Latina — conheceram de forma oficial o esporte inglês. Aqui é possível entender a importância da imigração para a formação da identidade do Brasil como país apaixonado pelo futebol. Se, naquele momento, o Brasil não tivesse incentivado a imigração pela necessidade de mão-de-obra, talvez a institucionalização do esporte jamais aconteceria de fato e o futuro seria diferente do que se sabe hoje. O impacto de um estrangeiro no desenvolvimento do esporte nacional foi tão grande que até hoje está ligado culturalmente ao vocabulário, já que a palavra “chaleira” como designação de um drible característico é originária do nome de Charles, o qual realizava o movimento constantemente.

Percorrendo mais a linha da História, é no conflito separatista da Catalunha contra a Espanha, que, mais uma vez, o futebol se relaciona com o campo de estudo internacional. A origem do clube que compartilha do nome da cidade de Barcelona já é ligada ao separatismo, como sugere seu fundador Hans Kamper na fala sobre “celebração do sonho de independência”. Além disso, o Barcelona foi um dos símbolos da luta contra a ditadura de Francisco Franco, o qual perseguiu a cultura e identidade catalã e utilizou o Real Madrid, rival do culés, como propaganda política dos valores do seu regime, influenciando contratações, a federação espanhola e incentivando árbitros. A utilização do time como propaganda sugere que Franco já conhecia a capacidade expressiva do futebol e sua relação com a política. Inclusive, em todos os jogos, a torcida do Barcelona se levanta aos 17 minutos e 14 segundos do tempo de jogo para cantar a plenos pulmões pela Independência, uma referência ao levante de 1714 contra as forças espanholas. Mais uma vez, as questões relativas ao internacionalismo são tratadas junto a um jogo de futebol, sendo um clube profissional e seus torcedores extremamente ativos na luta pela independência da Catalunha. O lema do Barcelona é “més que un club” e dialoga com o papel da instituição na valorização da cultura catalã, com um posicionamento claro no atual separatismo e na luta histórica contra o regime franquista, além de colocar aulas do idioma e de História como requisitos obrigatórios nos contratos de seus astros.

Fonte: Pixabay. Autor: lecreusois.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pelas razões elencadas e análises históricas, conclui-se a particularidade do futebol como campo de expressão das características de seu público, levantando diversas discussões, inclusive aquelas intrinsecamente ligadas às Relações Internacionais, como a luta de Independência da Catalunha e a imigração de Charles Miller ao Brasil. Além desses, é possível identificar dezenas de outras correlações do internacionalismo à prática esportiva: nos conflitos de territórios e pertencimento, na escolha de jogar por determinadas Seleções Nacionais (em casos de dupla-nacionalidade), na rivalidade existente no Oriente Médio entre clubes com diferenças externas e outras questões que virão a ser ampliadas posteriormente nessa coluna. Além disso, agora você, leitor, tem a possibilidade de dar o primeiro passo para se aprofundar no tema ou pelo menos conhecer a forte relação entre futebol e política. O diferencial, por fim, são as várias oportunidades de aprender e estudar sobre as questões existentes no campo internacional através da expressividade do futebol, além dos aspectos táticos, técnicos e físicos do esporte. 

REFERÊNCIAS

CARDOSO, André. Torcida do Barça canta por independência da Catalunha. Estadão, [s. l.], 7 out. 2012. Disponível em: https://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,torcida-do-barca-canta-por-independencia-da-catalunha,941818. Acesso em: 12 mar. 2021.

DAMATTA, Roberto. Universo do futebol. Esporte e sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1982.

DE SOUZA, Matheus. FC Barcelona e o movimento de independência da Catalunha. Matheus de Souza, [s. l.], 25 nov. 2015. Disponível em: https://matheusdesouza.com/2015/11/25/fc-barcelona-e-o-movimento-de-independencia-da-catalunha/. Acesso em: 12 mar. 2021.

ESPN.COM.BR (Brasil). Contrato de Messi com Barcelona inclui cláusulas sobre idioma e independência da Catalunha. ESPN, [s. l.], 2 fev. 2021. Disponível em: https://www.espn.com.br/futebol/artigo/_/id/8122299/contrato-de-messi-com-barcelona-inclui-clausulas-sobre-idioma-e-independencia-da-catalunha. Acesso em: 12 mar. 2021.

FIGOLS, Victor de Leonardo. Barça, més que un club: o FC Barcelona durante o Franquismo (1968-1969). Orientador: Ana Lúcia Lana Nemi. 2013. Trabalho de conclusão de curso (Bacharel/Licenciado em História) – Universidade Federal de São Paulo, Guarulhos, 2013. Disponível em: https://www.ludopedio.com.br/biblioteca/barca-mes-que-un-club/. Acesso em: 17 abr. 2021.

GALETTI, Igor. Como a luta pela independência na Catalunha afeta o Barcelona e o Real. Lance!, Barcelona, 17 out. 2019. Disponível em: https://www.lance.com.br/futebol-internacional/como-luta-pela-independencia-catalunha-afeta-barcelona-real.html. Acesso em: 12 mar. 2021.

SOUSA, Rainer Gonçalves. História do Futebol. História do Mundo, [s. l.], [20–?]. Disponível em: https://www.historiadomundo.com.br/curiosidades/historia-do-futebol.htm#:~:text=Por%C3%A9m%2C%20todo%20esse%20destaque%20dado,considerado%20o%20inventor%20desse%20esporte. Acesso em: 12 mar. 2021.

STEIN, Leandro. Charles Miller: muito mais que o “pai do futebol no Brasil”. Imortais do Futebol, [s. l.], 26 fev. 2020. Disponível em: https://www.imortaisdofutebol.com/2020/02/26/charles-miller-muito-mais-que-o-pai-do-futebol-no-brasil/. Acesso em: 12 mar. 2021.

UNIVERSIDADE DO FUTEBOL (Brasil). A relação entre o futebol e religião no Brasil. Universidade do Futebol, [s. l.], 28 jun. 2013. Disponível em: https://universidadedofutebol.com.br/2013/07/28/a-relacao-entre-o-futebol-e-religiao-no-brasil/. Acesso em: 12 mar. 2021.

VAN DEURSEN, Felipe. A guerra que motivou o desejo de independência da Catalunha. SuperInteressante, [s. l.], 9 out. 2017. Disponível em: https://super.abril.com.br/blog/contaoutra/a-guerra-que-motivou-o-desejo-de-independencia-da-catalunha/. Acesso em: 16 abr. 2021.

Mateus Rodrigues Ramos

Natural de Catalão (GO) e graduando em Relações Internacionais pela UFG. Sou interessado por Conflitos Internacionais, temas históricos, diversidade cultural e estudo de idiomas. Apaixonado por futebol, games e cultura pop em geral, estou sempre disposto a questionar e aprender.

4 comentários sobre “FUTEBOL E AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS: HÁ CONEXÃO?

  1. Parabéns!!!
    Belo texto, talvez agora poderemos correlacionar futebol, política e religião…..
    Pois desde tempos antigos se ensina que não existe discussão para essas escolhas pessoais e sua publicação mostra relações muito maiores que apenas uma discussão, e sim uma internacionalização do esporte contribuindo com o desenvolvimento do mundo todo.

  2. Parabéns ao Mateus. Que texto bem feito. Vejo um grande futuro sendo construído.
    O futebol é muito mais que um esporte mesmo. Influencia o povo com suas conquistas e ídolos.
    Cabem aos times e jogadores não somente alcançar os 3 pontos e no final o título. Eles têm um papel fundamental no âmbito político e humanitário.
    O Santos, na época do Pelé, chegou a interromper uma guerra civil na Nigéria para que aquela nação pudesse assistir o “rei do futebol” jogar.
    A Democracia Corinthiana não existiu apenas para que os jogadores tivessem voz nas decisões do time, ela também lutou pelo fim do Regime Militar no Brasil e se tornou o maior movimento político/ideológico do futebol brasileiro.
    Tem muitas histórias ligadas a política e RI no futebol.
    Uma bem recente foi a do cancelamento de um amistoso entre as Seleções de Argentina e Israel porque este último escolheu a cidade de Jerusalém para sediar o jogo (lembrando que Israel disputa com a Palestina a reivindicação desta importante cidade).

    Olha eu arrastando conversa… logo eu que sou ruim de papo… kkkk

    Orgulhoso desta sua coluna. A primeira de muitas.

    Abraços

  3. Muitos dos valores de um bom profissional podem se reconhecidos pela voz que ele dá às palavras. Parabéns Mateus pela análise certeira, por nos trazer esta relação tão interessante entre a maior expressão popular nacional e o peso que ela também dá às Relações Internacionais. Já aguardo ansiosa pelo próximo texto!

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