MICROCRÉDITOS: UMA ANÁLISE FEMINISTA ESTRUTURAL

MICROCRÉDITOS: UMA ANÁLISE FEMINISTA ESTRUTURAL

(Foto: Emil Kalibradov/Unsplash).

A concessão de microcréditos vem, nas últimas décadas, ganhando muito espaço como uma proposta para que o microempreendedor possa ter mais autonomia e menos entraves burocráticos, democratizando o acesso à renda, incentivando o empreendedorismo e estabelecendo direitos de cidadania. Dessa forma, muitas feministas neoliberais e burocratas impulsionaram planos de ação que viabilizassem tais políticas especificamente para mulheres do Sul Global, proporcionando uma maior independência financeira. Porém, sem assistência e um planejamento de concessão de crédito para mulheres, não há emancipação, mas uma troca de eixo de dependência.

O que são políticas de microcrédito?

De acordo com Barone et al. (2002), políticas de microcrédito se tratam da “concessão de empréstimos de baixo valor a pequenos empreendedores informais e microempresas sem acesso ao sistema financeiro tradicional, principalmente por não terem como oferecer garantias reais” (p. 11). Dessa forma, as políticas de concessão de microcrédito são consideradas altamente desenvolvimentistas, com a mútua participação do Estado e do capital privado no processo de crescimento da produção nacional (PULCINE; OLIVEIRA, 2006). Suas aplicações são entendidas como capazes de democratizar o acesso ao crédito, ao passo que têm também a proposta de combater a pobreza e aumentar a produtividade desses pequenos empreendimentos.

Embora pareça impecável em sua proposta, muitas críticas são feitas a esse sistema, principalmente quando aplicadas no Sul Global — termo utilizado a fim de “capturar uma imagem de coesão que emergiu quando antigas entidades coloniais se engajaram em projetos políticos de descolonização e avançaram para a realização de um internacional pós-colonial” (GROVOGUI, 2011, p. 176). Enquanto esse conjunto de países ainda em desenvolvimento aposta em práticas liberais como uma alternativa ao combate à pobreza e à exclusão social, buscando gerar trabalho e renda, sua própria formação histórica de exploração e subjugação colonial faz com que sejam necessárias mais políticas públicas assistencialistas e reparadoras, não podendo se deixar findar o plano de ação no ato da concessão.

Qual o problema dessas políticas, afinal?

Quando essas políticas de concessão são estipuladas sem ter como ponto de partida entraves estruturais, ao invés de proporcionar a emancipação desses empreendedores e da classe trabalhadora, surge uma nova dependência, estabelecendo um círculo vicioso. Dessa forma, podemos realizar uma crítica a partir de uma ótica geopolítica, pensando nas deficiências do Sul Global na estipulação de planos desenvolvimentistas. Isso por conta de como o processo de estruturação econômica e comercial desses países englobados acontece paralelamente a processos de busca por independência e autonomia de amarras coloniais, o que não ocorre no Norte Global. Assim, adicionando a pauta de gênero à equação, cabe pensar quais são os entraves estruturais na concessão de microcréditos a mulheres, especialmente do Sul Global, em um contexto neoliberal?

Primeiro, para explorar essa temática, é necessário ter em mente que a lógica capitalista é, também, patriarcal. Dessa forma, Arruza, Bhattacharya e Fraser (2019) pontuam que “no capitalismo, a violência de gênero não é uma ruptura da ordem regular das coisas, e sim uma condição sistêmica”. Logo, se essas ações e políticas de concessão são aplicadas sem observar as particularidades da construção social da mulher, ao invés de empoderamento e emancipação familiar, obtém-se uma mudança no eixo de dependência: não dependem mais de seus pais ou maridos, mas sim dos seus credores.

E assim, o discurso é endossado a partir de lemas meritocratas, ignorando que para julgar a partir de mérito e esforço todos os candidatos devem partir do mesmo degrau, o que não acontece num sistema patriarcal. Nesse sentido, políticas de assistência social, que valorizam a interdependência, são substituídas por premissas de crescimento individual, típicas do neoliberalismo. Consoantemente, é adotada uma abordagem de responsabilização individual para com um grupo já marginalizado dentro dessa corrida pelo desenvolvimento e autonomia financeira.

Nancy Fraser expande ainda suas críticas, apontando que:

O microcrédito ganhou prestígio no exato momento em que instituições financeiras internacionais passaram a forçar “ajustes estruturais” sobre o Sul global — estabelecendo condições para os empréstimos que exigiam que Estados pós-coloniais adotassem uma economia de práticas liberais e de privatização, reduzissem gastos de cunho social e abandonassem políticas de emprego e combate à pobreza de grande magnitude (FRASER, 2015).

Vários graus de análise podem ser desenvolvidos e muitos questionamentos levantados. É possível desenvolver políticas que efetivamente emancipem mulheres, considerando seus entraves estruturais? Desenvolver políticas de assistência que capacitem e auxiliem mulheres, evitando uma maior dependência para com seus credores, é sequer possível sem que o feminismo se torne subalterno do capitalismo? Embora Fraser tenha muito embasamento ao clamar por propostas disruptivas e anticapitalistas, é possível uma solução que se sustente a curto-prazo sem subjugar mulheres?

Soluções a curto-prazo

Levando em conta os questionamentos apontados anteriormente, ao constatar que não seja possível pensar em um caminho emancipatório nos moldes das políticas de concessão de microcrédito — ou políticas neoliberais num geral —, a curto-prazo aparenta ser mais lógico pensar em caminhos de reestruturar os projetos já existentes. Medidas alternativas de um assistencialismo mais significativo devem ser pensadas, estipuladas e aplicadas com uma faixa de transição coerente, mas não deve haver um corte abrupto, que acabaria lesando as mulheres que contam com aquele apoio. Além disso, as políticas devem impactar, sim, em melhorias de condição de vida, mas também devem ser prioridades um comportamento emancipatório, uma maior participação social e inclusive um maior desenvolvimento educacional (PARENTE; COELHO, 2019).

Nesse sentido, são possibilidades de ajustes pensar numa política de concessão que tenha seu foco voltado para a questão de gênero, acrescentando, ainda, ações complexas de capacitação, como aponta Parente e Coelho (2019), que não apenas concedam crédito, mas estipulem estratégias específicas que gerem competitividade para os empreendimentos auxiliados. Ademais, deve haver um acompanhamento, apostando menos na autonomia da empreendedora e mais num estudo comparativo e sistematizado de métricas, para que haja um termômetro eficiente dos resultados. Inclusive, os resultados e métodos devem ser comparados, extinguindo um discurso meritocrático, visando perceber se é possível estipular modelos amplos (que atendam setores diferentes).

Por conseguinte, o comportamento desses modelos deve ser analisado, também, com o intuito de notar comportamentos individuais a cada setor empreendido, gerando sobretudo uma inteligência de mercado. Não adianta apenas conceder crédito para mulheres, sendo que durante toda a trajetória profissional desse grupo houve uma tendência social que apontava que aquele não era o lugar nem função social dele. Sobretudo, é imprescindível que os resultados não sejam medidos com uma régua desigual e neoliberal, que pressupõe que todos os empreendedores beneficiados partiram da mesma capacidade e oportunidade de êxito, ignorando entraves estruturais de gênero.

Referências

ARRUZA, Cinzia; BHATTACHARYA, Tithi; FRASER, Nancy. Feminismo para os 99%: um manifesto. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2019.BARONE, Francisco Marcelo et al. Introdução ao microcrédito. Brasília: Conselho da Comunidade Solidária, 2002.

BARONE, Francisco Marcelo et al. Introdução ao microcrédito. Brasília: Conselho da Comunidade Solidária, 2002.

BALLESTRIN, Luciana. (2020), “O Sul Global como projeto político”. Horizontes ao Sul. Disponível em: https://www.horizontesaosul.com/single-post/2020/06/30/O-SUL-GLOBAL-COMO-PROJETO-POLITICO

FRASER, Nancy. Entrevista com Nancy Fraser: Um feminismo em que “romper barreiras” não rompe com a exploração . [Entrevista concedida a] Gary Gutting. Universidade Livre Feminista, 2015.

GROVOGUI, Siba. (2011), “A Revolution Nonetheless: The Global South in International Relations”. The Global South, vol 5, n 1, pp. 175-190.

PULCINE, Paola Ronconi ; OLIVEIRA, Edson Aparecida de Araújo Querido. Aplicação do Microcrédito para a Implementação e Desenvolvimento das Microempresas. Revista UNIVAP , v. 13, p. 0173, 2006.

PARENTE, Temis Gomes; COELHO, Eliene Campelo. Microcrédito e (des) empoderamento das mulheres beneficiárias no banco do povo em palmas/to. Revista Observatório, v. 5, n. 2, p. 480-512, 2019.SABADINI, M. S. et al. Microcrédito: Combate à pobreza ou gestão da classe trabalhadora?.

Ana Laura Baia de Morais

Mineira, graduanda em Relações Internacionais pela UFG e mãe de gato. Estudo sobre feminismo, tráfico humano e decolonialidade. Artista nas horas vagas, amante de criar playlists novas e um bom rolê de queijos e vinhos.

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