AFINAL, O QUE É A TEORIA QUEER DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS?

AFINAL, O QUE É A TEORIA QUEER DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS?

A década de 2010 viu o crescimento da visibilidade da comunidade LGBTQ+ na política global, uma vez que a multiplicação de direitos, somada à globalização das comunicações e da internet, possibilitou ampliar a voz dos membros desta comunidade ao redor do mundo. No entanto, a teoria queer se encontra pouco visível nas Relações Internacionais (RI), relegada às margens por falta de reconhecimento do que tem a oferecer. Desta forma,  visto que é cada vez mais inegável a importância das questões de gênero e sexualidade no cenário internacional, torna-se igualmente relevante apresentar o que esta teoria oferece ao desafiar os pressupostos clássicos da disciplina. Neste mês de junho, em comemoração aos 52 anos da revolta de Stonewall como marco da liberalização LGBTQ+, iremos divulgar alguns  pontos selecionados para que o leitor conheça um pouco mais deste tópico cada vez mais relevante para as RI.

QUEER EM TEORIA

O termo queer, literalmente “estranho” ou “fora do normal”, possui uma história controversa. Foi utilizado por décadas como uma ofensa e ainda possui uma conotação negativa para certos setores da comunidade LGBTQ+, mas também foi amplamente reapropriado pela comunidade para servir de um termo guarda-chuva para as orientações sexuais, identidades de gênero e qualquer outra noção que não seja hétero e cisgênero[1]. Desta forma, os estudos queer – que mantém o nome em inglês pelo termo não possuir uma tradução direta que mantenha seu significado em português – surgem de autores como Michel Foucault (1976), Judith Butler (1990) e Eve Sedgwick (1990), que se concentram no questionamento dos pressupostos heteronormativos que regem a sociedade e abraçam a performance da sexualidade no âmbito social.

Por denotar, essencialmente, expressões de gênero e sexualidade não monolíticas (RICHTER-MONTPETIT & WEBER, 2017), esta área de estudos dá  maior ênfase à fluidez e à natureza performática das sexualidades, questionando especialmente as dicotomias sociais como heterossexual e homossexual, “normal” e “perverso”, masculino e feminino, branco e não branco, público e privado, doméstico e externo, e conhecimento e ignorância (SEDWICK, 1990; WEBER, 2014; THIEL, 2017). Por isso, principalmente nas RI, possui imensa afinidade com teoria crítica, pós-estruturalismo, feminismo e estudos de gênero, mas não se reduz a isto. Na realidade, a nuance de debate e diversidade de temas torna difícil trazer uma definição precisa para a teoria – e tudo bem, mesmo porque uma definição única seria contraditória com a sua própria natureza.

Ao ser introduzida nas RI por autores como Cynthia Weber (1998), Amy Lind (2010), Laura Sjoberg (2012) e V. Spike Peterson (2013),  a teoria queer procura desconstruir conceitos já estabelecidos de Estado, soberania, poder, economia e segurança ao contestar, por instância, a heteronormatividade e as relações conflitivas entre agência pessoal e estrutura estatal (THIEL, 2014; THIEL, 2017). Desta forma, em International Relations Theory (MCGLINCHEY, WALTERS & SCHEINPFLUG, 2017), há uma bem-humorada abordagem de definir a teoria queer – assim como as teorias verde, da securitização e a geografia crítica – como uma parte do “expansion pack[2] das Relações Internacionais, em comparação aos mais estabelecidos realismo, construtivismo e feminismo. É fato, de qualquer maneira, que uma vez que políticas de sexualidade e produções acadêmicas queer se tornam mais associadas à esfera pública (isto é, política) e não apenas à privada, seu estudo se torna cada vez mais relevante nas relações internacionais como um todo.

Ontologicamente, a teoria queer das RI foca nas demais ontologias queer que não podem ser definidas de forma monolítica por conta de corpos transgênero, intersexo e pansexuais, que podem ser físicos, históricos, políticos ou ideológicos. Epistemologicamente, admite-se que conhecimento e ignorância das RI são diretamente ligados com conhecimento e ignorância sexuais, de acordo com as conclusões de Sedgwick (1990), de forma a reconsiderar as dicotomias já citadas. Metodologicamente, portanto, assim como no pós-estruturalismo, procura-se não descobrir “a verdade” dos corpos, ordens e instituições, mas concentrar-se em como as figurações queer emergem e são normalizadas ou pervertidas para apoiar ou questionar as ordens existentes (WEBER, 2014).

Algumas das principais áreas de estudo incluem: como pressupostos de gênero e sexualidade moldam política externa e segurança; como políticas LGBT influenciam a geopolítica e o soft power em torno de direitos humanos e difusão de normas; como o Estado moderno está associado ao patriarcado e à heteronormatividade; como os entendimentos não-normativos de gênero e sexualidade se cruzam com colonialismo, xenofobia e racismo para a construção das figuras do “terrorista” e do “insurgente”, entre outros (RICHTER-MONTPETIT & WEBER, 2017).

SEXUALIDADE E GÊNERO NA POLÍTICA INTERNACIONAL

A teoria queer e as políticas de sexualidade e gênero demoraram a chegar na política global por sua ancoragem inicial no âmbito privado (THIEL, 2014). Uma vez permitidas a expandir-se, no entanto, houve uma emergência de variadas organizações não-governamentais de defesa dos direitos LGBTQ+ que forçaram o Estado a ver esta população não como minorias marginalizadas, mas como indivíduos receptores de direitos humanos e poder de expressão. A partir da década de 2000, portanto, há um crescimento da institucionalização dos direitos LGBTQ+. A Holanda se tornou o primeiro país a legalizar o casamento entre pessoas do mesmo sexo em 2001. O Canadá foi o primeiro no continente americano a tomar a medida, em 2005.  A África do Sul liderou o continente africano em 2006.  Na Oceania, a Nova Zelândia foi pioneira,  em 2013 – mesmo ano do Brasil –, e Taiwan  o primeiro país asiático, em 2019. No Oriente Médio, Israel (e, em particular, a cidade de Tel Aviv) é o país que se destaca em matéria de tolerância, embora a questão do casamento seja mais complexa devido ao fato de que aqueles realizados no Estado são religiosos.

O alcance internacional de direitos LGBTQ+ não inicia nem se resume ao casamento, tendo em vista as leis de descriminação da homossexualidade, de criminalização da homofobia e transfobia, além das legislações que permitem que casais do mesmo sexo adotem crianças, a presença de pessoas LGBTQ+ no exército e a permissão para que homens homossexuais doem sangue. No entanto, este fenômeno serve para ilustrar como a questão se tornou cada vez mais visível nas últimas décadas. Políticas de orientação sexual e identidade de gênero começam a afetar, a partir de então, questões aparentemente não relacionadas, como política externa, saúde e mercado de trabalho (THIEL, 2014).

Contudo,  ao mesmo tempo em que as nações (ocidentalizadas) promovem esta liberalização de direitos, ainda ocorrem inúmeras reações homofóbicas e transfóbicas dentro destes países e – crescentemente – fora deles (LIND, 2014). Uma vez que a comunidade LGBTQ+ se torna uma figura importante na geopolítica, a produção acadêmica queer das RI se ocupa, por sua vez, em demonstrar o papel central do Estado nas ações a favor e contra ao redor do globo e contribuir para os debates sobre universalidade e particularidade dos direitos humanos (RICHTER-MONTPETIT & WEBER, 2017). Neste aspecto teórico, queer e LGBT não são tratados como sinônimos, mas possuem naturezas distintas que serão abordadas a seguir.

O QUEER E O LGBT

Ao se ocupar com as construções binárias e não-binárias de identidade, com uma forte noção de não conformidade em termos de sexualidade e gênero, o queer trouxe uma complicação à noção identitária do LGBT, que é menos fluida. Sua estratégia predominante de advocacia transnacional  foca no alcance de direitos que permitam que os indivíduos possam assimilar-se na sociedade como um todo, a partir da obtenção de direitos.  Por causa disto, também é vista como conformista, heteronormativista e mesmo homonacionalista[3] ao limitar-se à inclusão nas formas de representatividade existentes (THIEL, 2014).

Esta diferença só se torna mais explícita no ambiente internacional, uma vez que a luta por direitos de identidade de gênero e orientação sexual associados ao LGBT fica cada vez mais dependente das noções ocidentalizadas de liberalismo, direitos humanos e democracia. Portanto, essas concepções são adotadas e rejeitadas por Estados que procuram ou se apresentam como “modernos”, “globalizados” e “civilizados” de acordo com os padrões ocidentais, ou recusam completamente esta noção (LIND, 2014; THIEL, 2017). Como será mais bem tratado no segundo capítulo deste especial, a visibilidade da comunidade tem sido, de fato, tratada como uma ferramenta de hegemonia imperial, na qual países que não acatam este discurso, como Rússia, Uganda e Arábia Saudita, são vistos como “atrasados” e “terroristas” (LIND, 2014) – ainda que a homofobia institucional encontrada nestes tenha sido instaurada pelos poderes coloniais. Estes países, por sua vez, respondem com uma completa rejeição à liberalização dos direitos LGBTQ+ como parte do desprezo pelo imperialismo ocidental.

Ao mesmo tempo, no entanto, esta separação entre o queer e o LGBT traz, em si mesma, uma das atitudes binárias que a teoria queer procura desconstruir. Tais estudos não se concentram necessariamente apenas nas dicotomias de Estados a favor e contra, mas também exploram a produção transnacional da homofobia, bem como projetos hegemônicos de apoio à comunidade que não se encontram exclusivamente no Norte Global, mas em nações como Índia e Brasil. Também questionam as críticas monolíticas do ativismo LGBT contemporâneo como racistas e, portanto, irredimíveis, já que não há uma política única de liberalização da comunidade (RICHTER-MONTPETIT & WEBER, 2017).

A produção acadêmica queer, ao questionar a padronização das políticas LGBT, não se conforma, mas questiona o poder estabelecido e o que levou estas políticas ao local onde estão. Suas contribuições, portanto, são crescentemente vitais para a melhor compreensão dos temas das RI. Espera-se que este especial sirva para a divulgação deste conhecimento e do que tem para oferecer para a disciplina, para a política e para a sociedade como um todo.


[1] Uma pessoa cisgênero é alguém que se identifica com o gênero que lhe foi conferido ao nascer, em oposição ao indivíduo transgênero.

[2] “Pacote de expansão” associado a videogames.

[3] Associação entre certos tipos de ideologia nacionalista e direitos LGBT+ de forma a estigmatizar ou justificar posições de política externa.


LEITURAS RECOMENDADAS

BUTLER, Judith. Gender trouble: Feminism and the subversion of identity. New York: Routledge, 1990.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. 13a. Edição. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1999.

LIND, Amy. Querying globalization: Sexual subjectivities, development, and the governance of intimacy. In M. H. Marchand & A. S. Runyan (Org..), Gender and global restructuring: Sightings, sites and resistances (pp. 48–65). Routledge, 2010.

MCGLICHEY, S.; WALTERS, R.; SCHEINPFLUG, C. (org.) International Relations Theory. Bristol: E-International Relations Publishing, 2017.

PETERSON, V. Spike. The intended and unintended queering of states/nations. Studies in Ethnicity and Nationalism, 13(1), 57–68, 2013.

SEDGWICK, Eve K. Epistemology of the closet. Berkeley: University of California Press, 1990.

SJOBERG, Laura. Towards trans-gendering IR?. International Political Sociology, vol. 6, n. 4, pg. 337-354, 2012.

WEBER, Cynthia. Performative states. Millennium—Journal of International Studies, 27(1), 77–95, 1998.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LIND, Amy. “Out” in International Relations: Why Queer Visibility Matters. International Studies Review, vol. 16, no. 4, p. 601-604, 2014.

RICHTER-MONTPETIT, Melanie & WEBER, Cynthia. Queer International Relations. Oxford Research Encyclopedia of Politics. 2017. Disponível em: https://oxfordre.com/politics/view/10.1093/acrefore/9780190228637.001.0001/acrefore-9780190228637-e-265. Acesso em: 8 Jun. 2021.

SEDGWICK, E. K. Epistemology of the closet. Berkeley: University of California Press, 1990.

THIEL, Markus. Queer Theory. In: MCGLICHEY, S.; WALTERS, R.; SCHEINPFLUG, C. (org.) International Relations Theory. Bristol: E-International Relations Publishing, p. 97-103, 2017.

THIEL, Markus. LGBT Politics, Queer Theory, and International Relations. E-International Relations, 2014. Disponível em: https://www.e-ir.info/2014/10/31/lgbt-politics-queer-theory-and-international-relations/. Acesso em: 25 mai. 2021.

WEBER, Cynthia. Queer International Relations: From Queer to Queer IR. International Studies Review, v. 16, n. 4, p. 596-601, 2014.

Larissa Soares

Mestranda em Relações Internacionais pela Universidade de Lisboa. Se interessa por diplomacia, organizações internacionais, estudos subalternos e queer, conflitos sociais e desenvolvimento.

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