SAARA OCIDENTAL: UM TERRITÓRIO SEM DONO?

SAARA OCIDENTAL: UM TERRITÓRIO SEM DONO?

Introdução

O Saara Ocidental fez parte das memórias de Antoine de Saint-Exupéry, aviador e escritor de O Pequeno Príncipe (2017). Foi possivelmente lá que, em um pouso forçado, a imaginação do grande piloto se encontrou com o personagem principal de sua obra-prima (ARRAES, 1987 apud ESTRADA, COSTA, 2019). A história fictícia do jovem príncipe vindo do asteroide B 612 em sua jornada, para descobrir o universo e a si mesmo, abre espaço para interpretações variadas, entre elas está a de que o livro é uma metáfora para questões sociais e políticas do mundo real, incluindo o conflito no Saara Ocidental. Dessa perspectiva, o Pequeno Príncipe é considerado a representação da luta pela autodeterminação e independência do povo saraui, forçado a viver em um território hostil e deserto, sem a mínima possibilidade de controle sobre seu próprio destino.   

Desde 1970, o Saara Ocidental é palco de tensões políticas, ondas de violência e uma série de violações dos direitos humanos em virtude do conflito com o vizinho Marrocos por sua soberania. A complexa e duradoura questão envolve a luta da Frente Polisário, um movimento nacionalista saraui em defesa da independência da região que atualmente encontra-se sob ocupação marroquina. 

Antecedentes do conflito

Localizado na costa atlântica do continente africano, entre Marrocos, Argélia e Mauritânia, encontra-se o árido e quase desértico Saara Ocidental. A região é considerada um território não autônomo pelas Nações Unidas e é ocupada majoritariamente pelo Estado marroquino, que administra os recursos naturais, sobretudo a extração ilegal da reserva de fosfato, considerada a maior do mundo. Do outro lado, os sarauis lutam pela sua autodeterminação e independência do território, que eles consideram ser as raízes do seu povo e de sua cultura.

Figura 1: Mapa da região do Saara Ocidental

Figura 1: Mapa da região do Saara Ocidental
Fonte: ESTRADA; COSTA, 2017.

Os conflitos e tensões políticas em torno da questão do Saara Ocidental vêm de longa data, remontando ainda ao século XIX, quando as potências coloniais europeias começaram a  expandir seu domínio na região. A Espanha, em 1884, tornou o território seu protetorado, o que se formalizou a partir da Conferência de Berlim no ano seguinte. Entretanto, o Marrocos e a Mauritânia questionaram a soberania espanhola na região e a reivindicaram para si. 

Sob forte pressão internacional pela independência do povo sarauí frente ao processo generalizado de descolonização no restante do continente, a Espanha decidiu realizar, na década de 70, um referendo a fim de que a população deliberasse sobre o status do Saara. No entanto, a realização da consulta popular foi adiada por três vezes, em boa medida por resistência da Frente Popular para a Libertação de Saguia el‑Hamra e Rio de Oro (POLISÁRIO), um movimento político e militar que luta desde 1973 pela independência do Saara Ocidental com o apoio da Argélia. 

“Em maio de 1973 a Frente Popular para a Libertação de Saguia el‑Hamra e Rio de Oro (POLISÁRIO), o movimento de libertação mais conhecido por sua sigla Polisário, foi fundada como a “expressão única das massas, optando pela violência revolucionária e pela luta armada como meio pelo qual o povo árabe saraui africano pode recuperar sua liberdade total e frustrar as manobras do colonialismo espanhol”. A Polisário iniciou imediatamente uma guerra de guerrilha contra a Espanha” (HODGES, 1987, p. 2, tradução nossa). 

A pedido do Marrocos e da Mauritânia, uma opinião legal foi dada pelo Tribunal Internacional de Justiça a respeito da soberania do Saara. Segundo o órgão judiciário das Nações Unidas, não havia evidências que comprovassem as reivindicações históricas feitas pelos países, cabendo somente à população da região decidir seu futuro. Diante disso e, em razão de um sonho inspirado por Deus, Hassan II, rei do Marrocos, ordenou que 25.000 soldados marroquinos invadissem o Saara Ocidental em outubro de 1975, seguidos de 350 mil civis desarmados, de modo a pressionar a Espanha a abandonar o Saara Ocidental. 

Em 1975, por meio de negociações secretas, Espanha, Marrocos e Mauritânia firmaram o “Acordo de Madri”. A partir disso, a colônia europeia deixou a região. Contudo, transferiu sua soberania ao Marrocos e à Mauritânia, gerando grande insatisfação entre a população local. As tratativas não incluíram a Frente Polisário, que não concordou com a divisão do território. Conforme estabelecido, a maior parte do Saara Ocidental ficaria com o Marrocos e uma porção menor com a Mauritânia. 

“Consequentemente, o que era claramente para o Marrocos uma tentativa simbólica de recuperação do território equivalia a uma declaração de guerra para o movimento pró-independência e uma grave provocação para o principal aliado regional dos sarauís, a Argélia.” (HODGES, 1987, p. 2, tradução nossa). 

A entrega da administração do território aos países vizinhos pela Espanha, ignorando a vontade do povo saraui, caracteriza-se como uma grave violação dos direitos humanos e de autodeterminação dos povos. Diante disso, a Frente Polisário recusou-se a aceitar o acordo e declarou a independência da República Árabe Saarauí Democrática (RASD) em 1976, constituída no exílio, no campo de refugiados de Tindouf, Argélia. 

Frente Polisário vs. Países Vizinhos

Enquanto a Frente Polisário empreendia enormes esforços para proteger os seus refugiados em direção à Tindouf, passou também a combater as forças dos países vizinhos através do Exército de Libertação do Povo Sarauí (SPLA). A princípio, o confronto concentrou-se principalmente contra as tropas mauritanas, consideradas o lado mais fraco. Mesmo com o apoio da França, a pressão exercida pela Frente Polisário resultou na assinatura de um acordo de paz entre as partes, em 1979. A partir daí, as forças militares da Mauritânia retiraram-se do Saara Ocidental, reconhecendo a Frente Polisário como a representante legítima do povo sarauí.

Assim sendo, o movimento independentista passou a atuar em apenas uma única frente, concentrando suas forças contra o inimigo principal: o Marrocos. Sucessivas vitórias sobre as forças marroquinas permitiram que o SPLA controlasse quase totalmente o Saara Ocidental e, em 1981, as tropas marroquinas já haviam sido expulsas de praticamente todos os seus postos. Diante dos resultados fracassados, o Marrocos se esforçou em virar o jogo. Construiu, com assessoria de Israel, uma extensa e militarizada muralha — o “Muro da Vergonha” — com cercas de arame farpado, valas e campos minados ao longo de seus 2.700 quilômetros. 

Figura 2: Muro militar marroquino no Saara Ocidental

Impasses para estabelecer a paz

A crescente hostilidade entre as partes levaram a ONU e a Organização da Unidade Africana (OUA) [1] a iniciarem um processo de mediação do conflito, cujo resultado foi o estabelecimento de um cessar-fogo em 1991. Como parte do acordo, foi criada a Missão das Nações Unidas para o Referendo no Saara Ocidental (MINURSO) através da Resolução 690 do Conselho de Segurança, de 29 de abril de 1991. O mandato da operação de paz contemplava o monitoramento da trégua e a organização de um referendo de autodeterminação do povo saraui.  

Apesar disso, a realização do referendo destinado a decidir entre a independência do Saara Ocidental ou a integração territorial ao Estado marroquino ainda não ocorreu. Entre os principais motivos, está o de que as partes não entraram em acordo sobre quem seria considerado um “saraui” e, portanto, teria direito a voto. Além disso, o Marrocos, sob o temor de que o resultado do referendo custasse as suas reivindicações sobre o Saara Ocidental, principalmente por explorar os recursos naturais da região, dificultou a realização da consulta popular. Há ainda, uma grande desconfiança da Frente Polisário a respeito do compromisso do Marrocos na realização de um referendo livre e justo. 

“Desde que a MINURSO foi estabelecida em 1991, a missão não tem sido capaz de proporcionar espaço para a resolução transformadora de conflitos porque os esforços de paz da ONU têm sido em grande parte restringidos pelo Marrocos em conluio com os membros mais poderosos do Conselho de Segurança. Neste sentido, a missão não conseguiu envolver os eleitores locais nas decisões políticas tomadas pelos líderes partidários e diplomatas internacionais em relação aos processos de pacificação, manutenção da paz e construção da paz.” (SOLÀ-MARTÍN, 2006, p. 370, tradução nossa). 

Em 2020, o acordo cessar-fogo entre Marrocos e a Frente Polisário foi rompido, intensificando as tensões entre ambos. Isso porque, devido ao bloqueio a Guerguerat [2] pelo movimento independentista, cuja finalidade era protestar contra a ocupação marroquina na região, o Marrocos enviou suas forças armadas para a área. Diante do silêncio das Nações Unidas sobre o ocorrido, os sarauís declaram “estado de guerra”, o que levou o SPLA a responder militarmente às agressões sofridas. 

Em meio a escalada do conflito no norte da África, no dia 10 de dezembro de 2020, Donald Trump, na época presidente dos Estados Unidos, reconheceu a soberania do Marrocos sobre o Saara Ocidental. Essa decisão foi muito controversa e criticada, sobretudo pela Frente Polisário, que a rejeitou e ameaçou retomar as hostilidades contra o Marrocos, que por sua vez, reforçou sua presença militar na região e anunciou planos para expandir sua soberania sobre o Saara Ocidental. Com isso, os EUA violaram o direito internacional no que diz respeito sobretudo ao direito pela autodeterminação, pelo qual o povo saraui vem lutando. 

Violações de direitos humanos

A ocupação do Saara Ocidental pelo Marrocos é frequentemente associada a violações de direitos humanos. Milhares de pessoas foram obrigadas a sair de suas casas e enfrentar um caminho difícil para conseguirem atravessar a fronteira, o que inclui ataques e prisão arbitrária pelas forças de segurança marroquinas. Aqueles que resolveram permanecer são discriminados socialmente e marginalizados economicamente. Além disso, as acusações incluem tortura, desaparecimentos forçados, restrições à liberdade de expressão e de associação, e apropriação ilegal de recursos naturais.

As violações de direitos humanos também são frutos diretos do conflito armado entre o Marrocos e a Frente Polisário. A construção do muro marroquino e a implantação de campos de minas terrestres também são responsáveis por mortes e mutilações de civis e militares sarauís. Dessa maneira, é possível perceber que as violações aos direitos humanos cometidos pelo Marrocos configuram-se como práticas de crimes contra a humanidade, conforme previsto pelo Estatuto do Tribunal Internacional. No entanto, a razão pela qual as denúncias não podem ser levadas pelo Saara Ocidental à corte de justiça internacional concerne à pressão exercida  pela França, que possui poder de veto no Conselho de Segurança, e pelo fato da região ser reconhecida como país pela ONU. 

Conclusão 

Tendo em vista o exposto, a situação do Saara Ocidental parece difícil de ser solucionada e envolve um emaranhado de questões que incluem disputas políticas, territoriais e direitos humanos. As hostilidades entre o Marrocos e a Frente Polisário têm gerado tensões e violência ao longo de várias décadas. As consequências do conflito são profundas e abrangentes, afetando a vida de milhares de pessoas no Saara Ocidental, sobretudo no que tange à violação de seus direitos, bem como à instabilidade política na região.

O presente artigo recorre mais uma vez ao “O Pequeno Príncipe”, dessa vez interpretando que o mesmo pode contribuir para a compreensão do que perpassa a resolução desse conflito. Entre as lições trazidas pelo livro está a de que, muitas vezes, as coisas mais importantes são invisíveis aos olhos e que devemos olhar com o coração. Também nos ensina sobre a importância de cultivar relações baseadas no respeito mútuo e na empatia. Tendo isso em vista, o fim desse conflito abrange a busca por soluções pacíficas, na qual a compreensão e o diálogo são essenciais. 


[1] Antecessora da União Africana 

[2]  Guerguerat é uma importante rota comercial que liga a Mauritânia ao Marrocos e ao resto da África


REFERÊNCIAS

BARATA, Maria João Ribeiro Curado. Identidade, autodeterminação e relações internacionais: o caso do Saara Ocidental. 2012. Trabalho de Conclusão de Curso. Disponível em: https://repositorio.ismt.pt/bitstream/123456789/256/1/TESE.pdf. Acesso em: 10 mar. 2023. Disponível em: http://cienciaecultura.bvs.br/pdf/cic/v64n4/a12v64n4.pdf. Acesso: 15 mar. 2023. 

BERTOLUCCI, Artur; GUIMARÃES, Ana Clara Figueira. Conflito no Saara Ocidental: O Reconhecimento Americano. Dossiê De Conflitos Contemporâneos, 2021. Disponível em: https://gedes-unesp.org/wp-content/uploads/2021/03/Dossi%C3%AA-Obs.-Conflitos-v.-2-n.-1-2021-40-45.pdf. Acesso em: 27 fev. 2023. 

DARBOUCHE, Hakim; COLOMBO, Silvia. The EU, civil society and conflict transformation in Western Sahara: the failure of disengagement. In: The European Union, civil society and conflict. Routledge, 2011. p. 126-146.

ESTRADA, Rodrigo Duque; COSTA, Renatho. YouTube, 2019. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=KY1bfcnG3Js&t=123s. Acesso em: 28 fev. 2023. 

OJEDA-GARCIA, Raquel; FERNÁNDEZ-MOLINA, Irene; VEGUILLA, Victoria (Ed.). Global, regional and local dimensions of Western Sahara’s protracted decolonization: when a conflict gets old. Springer, 2016.

PEREIRA, Pascoal Santos. Saara Ocidental: um processo de não-autodeterminacão nacional?. Ciência e Cultura, v. 64, n. 4, p. 22-26, 2012.

DE SAINT-EXUPÉRY, Antoine. O pequeno príncipe. Editora Melhoramentos, 2017.

SÁNTHA, Hanga; LENNARTSSON HARTMANN, Ylva; KLAMBERG, Mark. Crimes against humanity in Western Sahara: The case against Morocco. Juridisk Publikation, v. 2, p. 175-199, 2010. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1614745. Acesso em: 22 mar. 2023. 

SMOLAREK, Adriano Alberto; MIRANDA, João Irineu de Resende. Política externa brasileira para o Saara Ocidental: pragmatismo e ruptura. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 36, 2021. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rbcsoc/a/Qmzp8hBbbKcZbqyNfrH5gYf/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 20 mar. 2023. 

SOLÀ-MARTÍN, Andreu. Lessons from MINURSO: A contribution to new thinking. International Peacekeeping, v. 13, n. 3, p. 366-380, 2006.

ZUNES, Stephen; MUNDY, Jacob. Western Sahara: War, nationalism, and conflict irresolution. Syracuse University Press, 2022.

Giovana Machado

Formada em Relações Internacionais na Universidade Estadual Paulista (UNESP). Tem interesse em Direitos Humanos e Segurança Internacional.

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