DUNA E A DESUMANIZAÇÃO: DE ARRAKIS AO NORTE DA ÁFRICA

DUNA E A DESUMANIZAÇÃO: DE ARRAKIS AO NORTE DA ÁFRICA

“Às pessoas cuja labuta ultrapassa as ideias e invade o domínio do “real”: aos ecólogos das terras áridas, onde quer que estejam, não importa a época, fica dedicada esta tentativa de profecia, com humildade e admiração.”

Frank Herbert

Os povos que compõem o espaço sociopolítico e cultural Amazigh (Imazighens, no plural) e suas populações se concentram majoritariamente na região norte da África, entre países como Argélia, Marrocos, Mauritânia, Líbia, Tunísia e uma parte do Egito e amplamente distribuídos no Saara (Incluindo norte do Mali e Niger) (Mohamed, p. 7, 2023). Apesar da diversidade étnica e, em alguns momentos, cultural, os Amazigh compartilham de uma mesma língua, a Tamazight — forma feminina de Amazigh, utilizada para se referir a língua devido à concepção norte-africana de “língua da mãe” — que conta com um sistema de escrita próprio.

Atualmente, alguns poucos Imazighens mantém a cultura do nomadismo e se deslocam majoritariamente em ambientes desérticos, assim como o povo Fremen, naturais do planeta Arrakis na série de livros de ficção científica de Frank Herbert, denominada Duna. A partir destas semelhanças dialéticas e representativas, a proposta dessa resenha literária é refletir acerca da trajetória sociopolítica e cultural dos povos do norte da África em conjunto com o grupo étnico fictício representado em “Duna”.

Por sua vez, na ficção, os “Fremen”, são inicialmente apresentados como um misterioso povo do deserto, que sobrevive com poucos recursos naturais. Eles  são frequentemente tratados como “selvagens” e “bárbaros” pelos nobres, os quais compõem as Grandes Casas dominantes que regem o universo séculos após a revolução tecnológica, responsável por levar  a humanidade ao colapso. A utilização das terminologias que associam os Fremen à ideia de um povo “não-civilizado” se assemelham à antiga — e ainda predominante — forma de se referir aos povos saarianos.

“O planeta abrigava um povo que vivia na orla do deserto, sem caid nem bashar que o governasse: um povo arisco chamado fremen, sem registro nos censos da Régate Imperial.

Arrakis. Duna. Planeta Deserto.”

Duna, p. 19

A exemplo disso, os Amazigh são, erroneamente, conhecidos como “berberes”, uma associação direta ao termo “bárbaro” — que surgiu na Grécia antiga e era utilizado para designar os outros povos —, sugerindo uma “não-civilidade” daqueles que não fazem parte da lógica de sociedade dominantemente ocidental, assim como os Fremen. Isso pode ser visualizado no seguinte trecho:

“Ainda assim, ele sentia uma pontada de medo em seu íntimo, e sabia qual era a origem. Aquele era um momento cego, e não um futuro que ele já tivesse visto… E foram surpreendidos por fremen selvagens, cujo único interesse era a água contida na carne de dois corpos sem escudos que os protegessem.”

Duna, p. 450.

VAZIOS A SEREM PREENCHIDOS

Durante a vida escolar e até mesmo universitária, as abordagens acerca de conteúdos que envolvem a vastidão do continente africano, seus países, nações e grupos étnicos são restritas unicamente ao processo de colonização, partilha e a escravidão dos povos africanos. A amplitude histórica e social das nações que povoam o terceiro maior continente do mundo em extensão territorial é imensurável, em especial quando relembramos a África como o segundo continente mais populoso. 

De antemão, para preencher lacunas deixadas pela falta de interesse da academia na tradução de obras e/ou artigos acadêmicos que dissertem sobre a vasta história dos Imazighens, foi realizada uma entrevista com o pesquisador Mohamed Issouf Ag Mohamed, Amazigh nativo do Mali e mestrando em Relações Internacionais pela UNILA. Com uma produção acadêmica voltada para o estudo dos desafios para a cidadania dos Kel Tamasheq na Líbia, Mohamed aborda com fluidez as diversas questões voltadas para o reconhecimento e a manutenção da cultura de seu próprio povo, que faz parte do espaço cultural Amazigh.

PROFECIAS: COLONIALISMO E APAGAMENTO

No primeiro livro da série de seis livros escrita pelo escritor norte-americano Frank Herbert na década de 60, a trama aborda a trajetória do protagonista Paul Atreides, um nobre herdeiro do ducado da Casa Atreides. Em um mundo no qual o movimento colonialista dos humanos ultrapassou barreiras planetárias após o desenvolvimento máximo da tecnologia. Com uma narrativa que se passa mais de dez mil anos após os dias atuais, a célebre obra de ficção científica serviu de inspiração para famosas franquias como Star Wars e Game of Thrones.

Na trama, sobretudo, a Casa Atreides, sob liderança do Duque Leto — pai de Paul —, recebe um comando do Imperador para comandar o planeta Arrakis após anos de domínio da Casa Harkonnen na extração da especiaria, uma substância valiosa presente em Arrakis. O que para os Atreides trata-se de uma chance de demonstrar capacidade e criar uma maior reputação em meio as casas maiores, não passa de um grande acordo de traição que parte do próprio Imperador em conjunto com o terrível Barão Vladimir Harkonnen. 

Além de muitas questões envolvendo o assassinato iminente do Duque Leto e a escapada de Paul e sua mãe, Lady Jessica, a história de Duna  propõe debates intrigantes em torno da população nativa de Arrakis. Tem destaque a relação com a fé e profecias antigas que relatam a vinda de um suposto profeta de outro planeta (Lisan Al-Gaib, termo em árabe significa “A Voz do Mundo Exterior”), que poderá salvar o povo Fremen do sofrimento no deserto. 

“Naquele primeiro dia, quando Muad’Dib cruzou as ruas de Arrakina com sua família, algumas pessoas no caminho lembraram-se das lendas e da profecia e arriscaram-se a gritar: “Mahdi!”. Mas seu grito foi mais uma pergunta que uma afirmação, pois então só podiam esperar que ele fosse a Lisan al-Gaib das profecias, a Voz do Mundo Exterior. Concentraram sua atenção também na mãe, porque tinham ouvido falar que ela era uma Bene Gesserit, e era óbvio que ela era como as outras Lisan al-Gaib. —  excerto do “Manual de Muad’Dib”, da princesa Irulan.”

Duna, p.173.

Tal profecia se trata de uma conspiração ligada a uma poderosa e antiga ordem, composta por mulheres cujas ações foram a base para evolução da humanidade no decorrer dos séculos. Contudo, o objetivo principal da irmandade, conhecida como “Bene Gesserit”, é gerar um Kwisatz Haderach — termo que vem do hebraico “Kfitsat Ha’derech” —, um homem que possui os poderes de precognição atrelado somente às mulheres Bene Gesserit. Entretanto, Kwisatz Haderach teria a capacidade de unir seus poderes mentais em prol da junção do espaço ao tempo.

Deste modo, o objetivo das Bene Gesserit está diretamente ligado às intenções de colocar um homem com capacidades de prever o futuro sob o controle da irmandade no Trono do Leão Dourado para comandar a galáxia. Sendo assim, o papel do Lisan Al-Gaib, centro da fé de tantos Fremen, não está nem um pouco relacionado a libertação de um povo ou a trazer água para o deserto de Arrakis, diferente do que a população acredita ser real devido à falsa profecia disseminada pelas Bene Gesserit.

O APAGAMENTO DOS POVOS DO DESERTO

Algo um tanto quanto semelhante ocorre com algumas porções Amazigh na região do norte da África, principalmente em países que passaram pela expansão do Califado Omíada a partir do século VII (Rui, 2020). Em seu avanço para o norte do continente africano, os árabes muçulmanos lidam com movimentos de resistência não somente dos povos bizantinos, como também dos Amazigh (Sturtevant, 2017). 

Com a descoberta do ouro no território da Líbia, a influência árabe muçulmana acabou se espalhando pela região, principalmente com o surgimento dos novos califados. Desse modo, muitas nações norte-africanas acabaram aderindo ao árabe como um dos idiomas oficiais e passaram a seguir a religião. Um dos casos intrigantes de africanos muçulmanos se dá no Brasil colonial a partir da Revolta dos Malês (1835), motivada por um movimento de africanos nagôs escravizados que se reverteram ao Islã e se recusavam a aceitar a condição de escravidão.

A Revolta dos Malês aconteceu em meio a um forte movimento de conversão ao islamismo entre os nagôs. Esta era, naquela altura, a nação mais numerosa da população africana em Salvador, representando cerca de 30% dos escravizados nascidos na África.

(Reis, 2023)

A princípio, a dialética acerca da assimilação dos povos norte-africanos por parte dos árabes muçulmanos perpassa por contradições complexas, em especial, quando considerada a pressão por parte dos líderes religiosos contra os povos considerados “bárbaros” por não serem adeptos do estilo de vida do mundo árabe-islâmico. A assimilação veio não somente por meio da reversão ao Islam, como também através da introdução do árabe como língua padrão — por se tratar do idioma no qual o livro sagrado do Alcorão é escrito — e do estabelecimento de costumes, como nomes e sobrenomes, hábitos de vida e traços culturais.

De ponto de vista analítico, conforme o apontado por Ines Kohl (2010), os Estados-nação que surgiram depois da colonização, não reconheceram os Tamasheq como uma unidade social, política e geográfica, ao contrário, estabeleceram sua marginalização. Portanto, eles são agora uma minoria em sua terra natal.

(Mohamed, p. 25, 2023)

Desde já, em meio a esse processo, surgem os mitos vinculados à ideia de reprimir uma identidade originária para sobrepor outra. Em uma entrevista realizada por Mohamed (2023) com Magdi Ag Bohina, o mesmo cita o governo de Muammar Gaddafi e sua política pan-arabista como um exemplo do fortalecimento desse processo de apagamento da identidade Amazigh:

Sobre a questão da assimilação, é importante lembrar que Gaddafi tinha uma política pan-arabista e considerava interessante para que os Kel Tamasheq também passem a se ver como árabes.

(Mohamed, p 58, 2023)

Sob esse ponto de vista, foi plantado um mito entre os povos norte-africanos envolvendo um suposto sentimento de orgulho vinculado à identidade árabe. Mohamed (2023) menciona que foi disseminada por muito tempo a ideia de que se declarar árabe era reconhecer uma certa ligação sanguínea com o Profeta Muhammad (S.A.A.S) — afinal, o mesmo é oriundo de povos árabes — e, por isso, ser árabe é visto como mais aceitável socialmente do que ser Amazigh.

CONCLUSÃO

Pensar que dinâmicas tão persistentes como as reivindicações de reconhecimento e a manutenção dos modos de vida dos povos norte-africanos são abordadas de forma semelhante em uma obra de ficção científica dos anos 60 é, no mínimo, chocante. Apesar de não fazer referência direta aos Amazigh no processo de representação dos Fremen, Frank Herbert entrega com maestria uma análise sobre o quanto a colonização prejudica, até os dias de hoje, a autonomia de povos originários em seus territórios.

A autonomia e o reconhecimento dos povos que compõem o espaço sociopolítico e cultural Amazigh são questões essenciais para a manutenção de costumes e modos de vida milenares que antecedem as fronteiras estabelecidas pela invasão europeia no continente africano. Do mesmo modo, a exploração dos recursos presentes no território saariano gera impactos não somente para a vida destes povos autóctones, como também para o ambiente desértico como um todo.

É preciso repensar a história para que ciclos sejam rompidos e projetos coloniais fiquem no passado sombrio das sociedades humanas. Assim, a ficção futurística de “Duna” fique apenas na literatura e não venha a ser uma realidade ainda mais palpável.

“Não há escapatória: pagamos pela violência de nossos ancestrais. — excerto de “frases reunidas de Muad’Dib”, da princesa Irulan”

Duna, p. 253.

Giovanna Gomes Cardoso de Lima

Graduanda em Relações Internacionais pela UFPB, apreciadora da história e da literatura dos países asiáticos.

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