A política externa brasileira na África lusófona

A política externa brasileira na África lusófona

O “pragmatismo responsável” de Ernesto Geisel marcou seu governo e a história da política externa brasileira. Sua estratégia prática e realista neste aspecto foi moldada para atender os interesses econômicos do Brasil dos anos 1970, a partir de um engajamento com o Terceiro Mundo de uma forma inédita para o país.

Assim, os países africanos lusófonos (de língua portuguesa) foram centrais para a concretização de seu pragmatismo ecumênico e responsável. Dessa maneira, a política externa de Geisel e de seu Ministro das Relações Exteriores, Azeredo da Silveira, foi a concretização de mudanças no rumo adotado pelo Brasil até então. Finalmente, encerrou-se a ambiguidade que oscilava entre o apoio e o distanciamento em relação a este grupo de nações. Esse período é essencial para entender a posição brasileira e seus frutos para o estabelecimento de um vínculo mais profundo e consistente com a comunidade lusófona na África pós-Geisel.

Política Externa Independente (PEI)

A política externa de Geisel seguia uma linha semelhante da PEI, que pavimentou o caminho que teria fim, posteriormente, no “pragmatismo responsável” nos anos 1970, quando se consolidaram as posições do Brasil no sistema internacional, idealizadas nos anos 1960. Tais posicionamentos da PEI baseavam-se, conforme indicado por San Tiago Dantas (DANTAS, 2011, p. 9) – ministro das Relações Exteriores entre 1961 e 1962 – principalmente, nos princípios de desenvolvimento e de emancipação econômica e do entendimento entre o sistema político representativo brasileiro e uma reforma social capaz de impedir a exploração da classe burguesa pela classe operária.

Nas relações internacionais, começava  um período em que novos atores surgiram e o mundo era reconfigurado com um novo equilíbrio de poder. Desse modo, Jânio Quadros compreendia que a divisão do mundo entre Norte e Sul não era apenas essencialmente econômica, mas também ideológica, e que o Brasil deveria perseguir relações proveitosas com países de ideologias diferentes (ARINOS FILHO, 2001, p. 156). Assim, a PEI era pautada no independentismo, universalismo e desenvolvimentismo, a fim de alcançar a abertura de novos mercados em todo o mundo, independente da escolha ideológica do governo com quem se almejava estabelecer relações econômicas (MANZUR, 2014, p. 156).

Dessa forma, o independentismo da PEI reforçava o princípio de que o Brasil era um país soberano e independente e não necessitava estar alinhado aos Estados Unidos, como nos governos anteriores. O universalismo dava ênfase à indistinção ideológica nas relações diplomáticas. E o desenvolvimentismo denotava uma política externa para o desenvolvimento econômico brasileiro e dos países terceiro-mundistas.

Com isso, na Política Externa Independente, o país preferiu uma abordagem cooperativista com os países da América Latina, Ásia e África, ambicionando a superação das desigualdades socioeconômicas pela cooperação entre os três continentes (SALGADO, 2011, p. 43). Jânio Quadros, em seu artigo para a Foreign Affairs, Nova Política Externa do Brasil, classifica a colaboração afro-latina-asiática como um ponto de convergência nas linhas do desenvolvimento brasileiro:

“É inegável que temos outros pontos em comum com a América Latina em particular, e com os povos recentemente emancipados da Ásia e África, que não podem ser ignorados porque se encontram nas bases do reajustamento da nossa política, e sobre eles convergem muitas das linhas principais do desenvolvimento da civilização brasileira. […] O grau de intimidade das relações do Brasil com os países vizinhos do Continente e com as nações afro-asiáticas, embora baseado em motivos diferentes, tende para o mesmo fim. Entre estes, na maioria dos casos, estão motivos históricos, geográficos e culturais. O fato comum a todos eles é o de que nossa situação econômica coincide com o dever de formar uma frente unida na batalha contra o subdesenvolvimento e todas as formas de opressão.” (QUADROS, 1961, p. 150-156).

A postura a favor do Terceiro Mundo representava um passo importante e inédito para o Brasil. Entretanto, ainda era um desafio  tratar das questões referentes à África lusófona. Conforme Carolina Salgado (2011, p. 122), a pretensão brasileira de ampliar seu prestígio no continente africano, de assegurar votos nas organizações multilaterais e abrir novas oportunidades comerciais eventualmente chocar-se-ia com os interesses da ditadura portuguesa.

Com isso, é possível notar que a Política Externa Independente viu com interesse as transformações do sistema internacional na segunda metade do século XX e aspirou assegurar uma posição de destaque entre os países terceiro-mundistas. O Terceiro Mundo foi o cenário para a PEI e para o “pragmatismo responsável” de Geisel nos anos 1970. Assim, a Guerra Fria, que dividiu o mundo em dois polos – capitalista e socialista – testemunhou o surgimento de um grupo de países não-alinhados aos interesses estadunidenses e soviéticos. Esse grupo ficaria conhecido como Terceiro Mundo, um termo utilizado para os países que articulavam autonomia aos interesses das duas superpotências da Guerra Fria, localizados na África e na Ásia, que mais tarde também abrangeram a América Latina como aqueles países subdesenvolvidos agravados por intensas crises políticas e econômicas (REIS; RESENDE, 2019, p. 313-314).

Pragmatismo responsável de Geisel

O Terceiro Mundo volta a ser de interesse profundo no governo de Ernesto Geisel (1974-1979), depois que os princípios da PEI foram interrompidos durante o mandato de Castelo Branco (1964-1967) – pelo alinhamento automático aos Estados Unidos -, mas lentamente retomados nos governos de Costa e Silva (1967-1969) e Médici (1969-1974) (FREITAS, 2015, p. 267).         Assim, a política externa de Geisel, intitulada por ele de “pragmatismo responsável e ecumênico”, resgata os princípios de forma assertiva da PEI – universalismo, independentismo e desenvolvimentismo. Vale analisar os termos que dão nome à política externa e que já preconizam a natureza do plano. O “pragmatismo” refere-se à busca de relacionamentos com países de diferentes ideologias, a fim de alcançar novos mercados, aumentar as exportações e assegurar o investimento externo. O “responsável” assegura que, mesmo com a imparcialidade da PE, as diretrizes objetivam o desenvolvimento econômico do país, e a política externa, classificada como pragmática pelos seus elaboradores, tem a função de buscar nas relações internacionais meios para esse fim. Por último, o “ecumênico” refere-se ao universalismo da diplomacia brasileira, de ampliar as relações diplomáticas e econômicas do Brasil, respeitando os princípios de soberania, liberdade e autodeterminação dos povos (MANZUR, 2014; FREITAS, 2015)

Foto: Ernesto Geisel

Na década de 1970, Geisel assumiu um país bastante diferente do ponto de vista da inserção do Brasil no comércio internacional. As importações e exportações brasileiras em 1964 não se comparavam com o volume de mercadoria que fluía para dentro e fora do país dez anos depois. Em 1973, as exportações brasileiras mais do que quadruplicaram e o café perdeu seu protagonismo diante da nova prateleira de produtos do Brasil. Desse modo, as condições econômicas brasileiras fizeram surgir um dilema dentre os militares em matéria de atuação diplomática brasileira: engajar no conflito ideológico da Guerra Fria ou perseguir uma agenda externa para superar as dificuldades econômicas e comerciais diante da competição com os protagonistas do comércio internacional (SOUTO MAIOR, 2018, p. 214-215)?

Além de tentar assegurar a estabilidade econômica através do pragmatismo responsável de sua política externa, Geisel também a utilizou para garantir a estabilidade de seu projeto político. Em primeiro lugar, o militar usou a agenda externa para ganhar força política e fortalecer o controle pessoal sobre seus colegas militares, ao demitir aqueles que se opuseram ao presidente. Em segundo lugar, utilizou a política externa para dar um passo importante em seu projeto de liberalização – a liberdade de imprensa. Assim, Geisel incluiu em suas viagens internacionais enviados dos jornais brasileiros e testemunhou a criação da divisão do Itamaraty, por seu ministro das Relações Exteriores, Azeredo da Silveira, encarregada exclusivamente da imprensa. Por último, a fim de camuflar o conservadorismo da sua política doméstica, Geisel aumentou o tom em relação ao Terceiro Mundo e intensificou as relações com os Estados Unidos (SPEKTOR, 2004, p. 212-213).

Esses dois elementos marcam principalmente o “pragmatismo responsável” de Geisel – assegurar a estabilidade econômica pela inserção do Brasil no meio internacional e garantir a prossecução do projeto político. As relações com os países de língua portuguesa na África foi parte da pretensão de inserção internacional no Brasil no Terceiro Mundo. Esse projeto teve início na Política Externa Independente, porém Geisel efetivou de maneira pragmática o começo de uma diplomacia engajada no continente. Segundo Souto Maior (2018, p. 218), o relacionamento de Portugal com os países africanos era o principal desafio para Brasília, pois os portugueses ainda enxergavam os territórios “encontrados” como territórios ultramarinos. Além disso, a política tardia de posicionamento anticolonialista também dificultaria a ambicionada diplomacia com esses novos Estados (PINHEIRO, 2007, p. 39).

Conclusão

As políticas externas de Jânio Quadros, João Goulart e Ernesto Geisel foram essenciais para a consolidação das relações diplomáticas com os países africanos, que resultaram em frutos, tanto para o relacionamento econômico quanto para a aproximação cultural com o mundo lusófono, consolidada com o surgimento da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).

A mudança de paradigma da diplomacia brasileira revela o surgimento de uma política externa de Estado pautada no pragmatismo e na independência. Logo, a partir do caso lusófono, é possível notar como o Brasil amadureceu seu pensamento diplomático, refletindo nos seus posicionamentos contemporâneos perante as Nações Unidas, o Ocidente e Terceiro Mundo, em uma busca que consolidou seu no lugar no sistema internacional.

Bibliografia

ARINOS FILHO, A. 2001. Diplomacia independente: um legado de Afonso Arinos. São Paulo: Paz e Terra.

DANTAS, San Tiago. Política externa independente. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2011.

FREITAS, Auxilia Ghisolfi. Autonomia e pragmatismo: a política externa independente e o pragmatismo responsável e ecumênico. Anais do V Encontro Internacional UFES/Paris-Est, Espírito Santo, p. 255-273, 2015.

MANZUR, Tânia Maria P. G. A política externa independente (PEI): antecedentes, apogeu e declínio. Lua Nova: Revista de Cultura e Política [online]. 2014, n. 93, p. 169-199. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0102-64452014000300007.

PINHEIRO, Letícia. “Ao vencedor, as batatas”: o reconhecimento da independência de Angola. Rio de Janeiro: Revista Estudos Históricos, nº 39, 2007, p. 83-120.

QUADROS, Jânio. A Nova Política Externa do Brasil. In Revista Brasileira de Política Internacional, Rio de Janeiro, ano IV, nº 16, dezembro de 1961, p. 150-156.

REIS, Raissa Brescia dos; RESENDE, Taciana Almeida Garrido. BANDUNG, 1955: PONTO DE ENCONTRO GLOBAL. Esboços, Florianópolis, v. 26, n. 42, p. 309-332, maio/ago. 2019.

SALGADO, Carolina de Oliveira. A política externa independente na questão da descolonização da África lusófona (1958-1964). Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.

SOUTOR MAIOR, Luiz Augusto Pereira. O pragmatismo responsável na visão da diplomacia e da academia. Brasília: FUNAG, 2018, p. 8-10.

SPEKTOR, Matias. Origens e direção do Pragmatismo Ecumênico e Responsável (1974-1979). Revista Brasileira de Política Internacional [online], v. 47, n. 2, p. 191-222, 2004. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0034-73292004000200007.

Gabriel Moncada Xavier

Estudante de Relações Internacionais e experiente em simulações da ONU. Sou curioso e quero olhar para o mundo com todas as lentes possíveis. Gosto de diplomacia, política externa, organizações internacionais e Direitos Humanos.

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