ESPORTE E INDEPENDÊNCIA EM PORTO RICO

ESPORTE E INDEPENDÊNCIA EM PORTO RICO

Pintura de Francisco Gonzole, poeta e jornalista fundador do El Postilón, que lutou pela independência de Cuba e Porto Rico (Foto: Centeno/Wikimedia Commons)

A participação em eventos esportivos internacionais e o nacionalismo estão intrinsecamente ligados, especialmente considerando que é uma arena de reconhecimento entre os pares Estado-nação. Contudo, conseguir esse reconhecimento é um processo complicado para nações que estão sob domínio de outras. Nesse contexto, destaca-se  Porto Rico, em que, através de suas participações nos Jogos Pan-Americanos, fica clara essa dinâmica de busca por autonomia e influência externa de outro país que tem controle da ilha, no caso os Estados Unidos.

Estados Unidos e Porto Rico

No final do século XIX, após 400 anos de colonização pela Espanha, a soberania de Porto Rico deixou de ser da Espanha e passou para os Estados Unidos, com a Guerra Hispano-Americana, sendo o país caribenho anexado em 1898. Contudo, tendo em vista os ideais base que constituíram a formação dos EUA, a utilização do termo “colônia” para as dependências do país é substituída por termos como “território não incorporado”, por mais que as relações sejam similares às coloniais (Garriga-López, 2019; Romero-Barceló, 1980). Porto Rico se torna então pertencente, mas não parte dos EUA (Garriga-López, 2019).  A relação entre os países, entretanto, se modifica com o passar das décadas, alterando a tradicional administração altamente centralizada e supervisionada pelos militares, burocratas e políticos estadunidenses. Mesmo que ainda possa ser considerado como uma colônia, agora o país é administrado por políticos eleitos na ilha, que tomam as decisões sobre questões locais (Cabán, 2002).

Ainda assim, o status político de território não incorporado de Porto Rico com relação aos Estados Unidos é o mesmo desde a constituição territorial de 1952, sendo até hoje um assunto recorrente na política estadunidense, que causa divisões de posicionamento na ilha. O plebiscito mais recente para se saber a opinião dos porto-riquenhos ocorreu em 2017, após a eleição de um político favorável à transformação do país no 51º estado dos EUA. As opções disponíveis nessa consulta eram (i) se tornar um estado, (ii) associação livre/independência – em que Porto Rico se tornaria independente, mas manteria relações próximas com os EUA – e (iii) manter o status quo. O resultado foi que 97,2% dos votos foram a favor de o país se tornar um estado. Todavia, devido a movimentos de boicote ao plebiscito, apenas 23% dos votantes compareceram às urnas (Garret, 2017).

O boicote foi incentivado principalmente por partidos a favor da independência, argumentando que o plebiscito era uma farsa. No dia, cerca de 500 pessoas se reuniram onde estavam as urnas e queimaram bandeiras estadunidenses, cantando “fogo, fogo, os ianques querem fogo”, no que se consistiu em um movimento contra a dominação colonial (O Globo, 2017). Isso ocorre uma vez que a constituição dos EUA dá ao Congresso poderes para definir sua relação e classificação de territórios, e a Presidência e o Senado podem decidir reformular ou não o status político da ilha. Sendo assim, o referendo não era vinculante, e o governo dos EUA pode decidir mudar ou não suas relações com a ilha a despeito da opinião dos porto-riquenhos (Garret, 2017).

Esse atrito e movimentos a favor da independência não são novos na política entre os países, podendo-se citar como exemplos a tentativa de denúncia do status de colonia de Porto Rico na ONU em 1947, ou a tentativa de assassinato de presidente Truman em 1950 por dois independentistas (Ince, 1994).

Jornal The Sun de 1950 com manchete “2 revolucionários porto-riquenhos baleados enquanto tentavam assassinar Truman” (Foto: Washington Area Spark/Flikr, 2015)

Parte desse movimento também conta com os esforços porto-riquenhos de manter sua cultura e costumes, em contraposição a um processo em que há uma penetração de normas e valores estadunidenses. Contudo, é impossível negar que houve uma influência cultural no país, seja pelo domínio da língua inglesa pela maior parte da população, ou até mesmo pelo beisebol ser o esporte mais popular na ilha (Ince, 1994).

Retrato de uma partida de beisebol entre o time dos Estados Unidos e Porto Rico (Foto: Matthijs/Flickr, 2012)

Assim, há um contexto de instabilidade no país, com ideais e movimentos divergentes sobre a relação com os Estados Unidos, o que também se reflete nos esportes. Ainda que seja frequente a argumentação de que eventos esportivos internacionais sejam um momento que traz sentimento de unidade nacional, a própria questão da identidade nacional é repleta de contradições e construções artificiais de homogeneidade, assim como influências estrangeiras (Sotomayor, 2016). Desse modo, durante a participação de Porto Rico em competições internacionais, estão presentes essas contradições de identidade.

Entrada e dualidade de Porto Rico na arena de esportes internacionais

Identidade nacional é um conceito que perpassa muitos níveis, e por mais que aspectos políticos sejam importantes, os simbólicos também têm um papel central nisso, principalmente relacionado diretamente à população. Nesse sentido, esportes fazem parte desse processo. Para muitos países, como Taiwan, por exemplo, os esportes passam a ser uma das poucas arenas em que conseguem obter reconhecimento de soberania. Para  Porto Rico, a conquista disso, por ser um território dos EUA, foi um longo processo. Consequentemente, a população tem grande orgulho do seu time nacional e de suas participações em competições internacionais. Esse contexto é nomeado de “soberania esportiva”, em que países que não são politicamente reconhecidos como soberanos podem atuar como tal em eventos esportivos (Castro, 2004). O processo de aquisição e os atritos decorrentes dessa soberania podem ser observados em Porto Rico através da sua participação nos Jogos Pan-Americanos.

A ideia de se realizar um evento para jogos multiesportivos na América se inicia por meio dos Jogos Centro-Americanos e Caribenhos (JCAC), que tiveram sua primeira versão em 1926, ainda que com um número baixo de adesão, tendo presença apenas as delegações mexicana, cubana e guatemalteca. Já em 1930, houve uma maior participação com a presença de nove países da América Central: Cuba, Costa Rica, El Salvador, Guatemala, Honduras, México, Panamá e as delegações de Jamaica/Grã-Bretanha e Porto Rico/EUA. Contudo, no contexto de solidariedade pan-americana, o status de colônia de Jamaica e Porto Rico fez com que a participação no evento se tornasse problemática (Sotomayor, 2017). Ainda que esses jogos possam ser vistos como a primeira participação internacional em eventos esportivos de Porto Rico, sua soberania esportiva não ocorreu de maneira plena (Castro, 2004).

A atuação de Porto Rico nesse evento refletiu a própria ambiguidade interna enfrentada pelo país. Por um lado, o sentimento nacionalista crescia, assim como a intenção de se fortalecer o pan-americanismo e a política de boa vizinhança entre esses países. Por outro lado, o país era uma posse colonial estadunidense e, naquele período, o intervencionismo dos EUA era uma das principais preocupações dentro do movimento pan-americanista. Da mesma forma que Porto Rico utilizava os jogos como uma maneira de exercer diplomacia e fomentar ideias nacionais e identitárias, os EUA viram o evento como uma oportunidade para mudar a percepção sobre o país, com relação à integração regional,  utilizando Porto Rico (Sotomayor, 2017).

Essa dualidade ocorreu de tal forma que muitas delegações presentes interpretaram que a delegação de Porto Rico estaria representado os EUA em um evento Latino Americano, principalmente considerando que o país utilizou tanto a bandeira quanto o hino estadunidense. O argumento utilizado pela delegação era de que eles representariam tanto Porto Rico como Estados Unidos, com o objetivo de promover o pan-americanismo, e melhorar as relações entre Porto Rico, América Central e EUA, como um todo (Sotomayor, 2017). Porto Rico como colônia estadunidense tinha o papel de mostrar as virtudes de se estar sob o domínio do governo dos EUA, assim como sua política de boa vizinhança, em que o país era visto como uma ponte entre os dois mundos da América anglófona e hispânica (Sotomayor, 2016).

Bandeira dos Estados Unidos e Costa Rica lado a lado (Foto: la Barrera/Wikimedia Commons, 2013)

Ao contar com uma delegação que além de representar Porto Rico, também era composta por cidadão estadunidense legalmente – por mais que empiricamente tratado de forma diferente dos pertencentes ao território continental dos EUA – os EUA tentavam se mostrar como uma presença positiva e fonte de progresso para a região (Sotomayor, 2016; Sotomayor, 2017). Dentro da própria delegação também estava presente essa dualidade, havendo tanto atletas não ligados a questões nacionais, quanto outros que apoiavam abertamente a independência e soberania de Porto Rico (Sotomayor, 2016).

O vai e volta da bandeira porto-riquenha nos jogos

Os Jogos Centro-Americanos e Caribenhos de 1935, em El Salvador, foram marcados não só pelo bom desempenho porto-riquenho, que ficou em terceiro lugar, com 15 medalhas, mas também pela utilização da bandeira de Porto Rico ao invés da dos EUA (Castro, 2004; Sotomayor, 2016). Após a Lei da Mordaça de 1948, que criminalizou o uso da bandeira porto-riquenha, esse ato foi visto como grande demonstração de nacionalismo e incitou na ilha a utilização do símbolo para comemorar as vitórias nos jogos (Sotomayor, 2016). Ademais, pela falta de um hino, para o pódio de atletas porto-riquenhos, o hino do El Salvador foi tocado, representando uma união pan-americana (Castro, 2004; Sotomayor, 2016). Principalmente considerando que o governo salvadorenho tinha ascendido ao poder contra o sistema vigente que respondia aos interesses dos EUA, sendo um governo contrário ao imperialismo estadunidense, o pódio se tornou símbolo de uma busca por independência (Sotomayor, 2016).

Esse ato desagrada os Estados Unidos, que na edição seguinte dos jogos, em 1938, se certificam de que Porto Rico utilizem a bandeira e o hino estadunidenses, com o objetivo de suprimir qualquer manifestação nacionalista e sentimento independentista porto-riquenho. Retomava-se a retórica de que porto-riquenhos são cidadãos dos Estados Unidos, mesmo que legalmente os EUA não reconheçam a ilha como um estado da federação, logo, deveriam representar o país. Novamente, a participação porto-riquenha obteve muito sucesso e a delegação foi recebida com muita euforia na ilha. Todavia, dessa vez, a recepção foi feita com bandeiras e hino estadunidenses (Sotomayor, 2016).

Em 1947, sem objeções dos EUA, Porto Rico conseguiu fundar o Comitê Olímpico Nacional e participou, assim, das Olimpíadas de 1948, em Londres (Castro, 2004). Durante o evento, após discussões sobre qual bandeira utilizar, eles decidem pela bandeira representando o brasão do exército da época hispânica da ilha (Castro, 2004; Sotomayor, 2016). Por mais que esse símbolo também seja de uma época colonial – por outra potência –, refletiu o processo de maior autonomia que estava ocorrendo em Porto Rico (Sotomayor, 2016). Já em 1952, após ataques de nacionalistas porto-riquenhos a Washington, em 1950, a delegação teve que usar a bandeira estadunidense nos Jogos Olímpicos de Helsinque (Castro, 2004).

Com a Lei Pública 600 de 3 de julho de 1950, foi permitido que Porto Rico elaborasse uma constituição.  Durante os jogos de Helsinque, a Constituição Porto-riquenha foi aprovada, e o país se tornou parte da Commonwealth dos Estados Unidos. Assim, Porto Rico adquiriu mais soberania e se tornou permitido que sua bandeira e hino fossem utilizados, por mais que de forma conjunta com símbolos estadunidenses, pois ainda eram cidadãos dos EUA (Castro, 2004; Sotomayor, 2016). A partir de então, a nova lógica para a participação nos eventos esportivos internacionais era de afastar os questionamentos sobre o colonialismo na relação entre os países. Agora, Porto Rico era uma nação legítima, por mais que associada ao Commonwealth, e isso era provado por suas participações internacionais (Sotomayor, 2016).

Atleta porto-riquenho, Owens-Delerme, utilizando os símbolos de seu país no Campeonato Mundial de Atletismo (Foto: van Leeuwen/Wikimedia Commons, 2022)

Considerações finais

Dessa forma, a participação de Porto Rico nos eventos esportivos internacionais reflete a relação que os Estados Unidos tinham com o país e o próprio nacionalismo porto-riquenho. Porém, por mais que em alguns momentos a repressão aos símbolos nacionais fosse mais branda ou menos – até a entrada na Commonwealth –, durante todas essas participações havia o interesse porto-riquenho de ter sua soberania esportiva e dos EUA de ser representado nos jogos regionais, buscando melhorar sua recepção na América Latina (Castro, 2004).

Ainda que tenham ocorrido momentos em que se esteve mais próximo de uma condição de autonomia ou incorporação de fato aos EUA, observa-se que essa é uma condição instável que se altera a depender do governo estadunidense. Por exemplo, com a transição do governo Obama para Trump e o consequente reforço da Doutrina Monroe (Farkhutdinov, 2020), Porto Rico novamente se encontrou em uma posição em que o racismo não permitiria sua completa adesão aos EUA, mas a política do “América Primeiro” afasta a possibilidade de independência (Garriga-López, 2019).

Nesse contexto, o esporte se tornou uma questão central no nacionalismo de Porto Rico, junto com sua bandeira e preservação da língua espanhola, o que resulta no grande entusiasmo da população como um todo sobre essa participação. Até aqueles que defendem que Porto Rico deveria ser mais um estado dos EUA defendem ainda que a soberania esportiva seja mantida (Castro, 2004). O que se observa é um Olimpismo colonial, em que a identidade nacional porto-riquenha foi construída baseada no desempenho esportivo do país. Dessa forma, a soberania e a identidade nacional de Porto Rico são mais ligadas ao âmbito cultural do que a um projeto político de independência (Sotomayor, 2016).

Referências bibliográficas

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Imagens

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Laryssa Tomaz de Frias Marques de Souza

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