MUTILAÇÃO GENITAL FEMININA NA ERITRÉIA: AS RAÍZES DE UMA DOLOROSA TRADIÇÃO

MUTILAÇÃO GENITAL FEMININA NA ERITRÉIA: AS RAÍZES DE UMA   DOLOROSA TRADIÇÃO

Profundamente enraizada na Eritréia, a mutilação genital feminina é uma prática a que muitas mulheres do país – e no mundo – estão submetidas, o que lhes causam inúmeras consequências negativas, inclusive a morte. Mesmo sendo proibida e reconhecida internacionalmente como uma grave violação dos direitos humanos, é uma tradição cultural que ainda se mantém, principalmente para manter estruturas sociais fortemente arraigadas: a aceitação na comunidade, controle da sexualidade feminina e o casamento. 

Definição e motivações

Embora a mutilação genital feminina seja altamente nociva e condenada por instrumentos globais de direitos humanos, é uma prática que continua a ser perpetrada em muitos países, principalmente no continente africano e em alguns países da Ásia e do Oriente Médio. Estima-se que cerca de 200 milhões de meninas e mulheres vivas hoje em 31 países já sofreram algum tipo de mutilação genital (UNFPA, 2020). 

Mas, afinal, o que é mutilação genital feminina (MGF)? Diz respeito a todos os procedimentos relacionados à remoção parcial ou total dos órgãos genitais femininos  externos, bem como outras lesões nas genitálias de mulheres e meninas sem a necessidade de intervenção médica (TOUBIA, IZZET, 1998). Tal tradição manifesta-se das mais diferentes formas, entre as quais estão:

1. Clitoridectomia: remoção parcial ou total do clitóris (uma parte pequena, sensível e erétil das genitais femininas) e, em casos muito raros, apenas o prepúcio (a prega de pele ao redor do clitóris).
2. Excisão: remoção parcial ou total do clitóris e dos pequenos lábios, com ou sem excisão dos grandes lábios […].
3. Infibulação: estreitamento da abertura vaginal através da criação de um selo de cobertura. A vedação é formada cortando e reposicionando os lábios internos ou externos, com ou sem a remoção do clitóris.
4. Outros: todos os outros procedimentos prejudiciais à genitália feminina para fins não médicos, por exemplo, picar, perfurar, incisar, raspar e cauterizar a área genital.
(WHO, 2016, p. 1, tradução minha). 

A depender da comunidade em que é adotada, a mutilação genital feminina ocorre em pessoas de 4 a 14 anos, configurando-se como um rito de passagem da infância para a vida adulta e que possui significados culturais variados. Todavia, está enraizado profundamente na psicologia do indivíduo, na crença de fidelidade à família e a um sistema de valores ancestrais. Reconhecida internacionalmente como uma grave violação dos direitos humanos, a MGF é um procedimento que demonstra e reforça a desigualdade de gênero, bem como a discriminação contra as mulheres, associando-se principalmente a:

• Costumes e tradição: as comunidades que praticam a MGF mantêm seus costumes e preservam sua identidade cultural ao dar continuidade à tradição.
• Sexualidade feminina: a sociedade tenta controlar a sexualidade feminina reduzindo sua atividade sexual.
• Religião: é importante notar que a MGF é uma prática cultural, não religiosa. Na verdade, embora a MGF seja praticada por judeus, cristãos, muçulmanos e membros de outras religiões indígenas na África, nenhuma dessas religiões a exige.
• Pressão social: Em uma comunidade na qual a maioria das mulheres é circuncidada, a família e os amigos criam um ambiente no qual a prática da circuncisão se torna um requisito para aceitação social.
(CENTER FOR REPRODUCTIVE RIGHTS , 2006, p. 7-8, tradução minha).

Entendendo melhor no que consiste a mutilação genital feminina e as motivações gerais para que esse procedimento perpetue-se no interior de certas sociedades, partiremos para um caso específico em que isso ocorre: a Eritréia. 

Informações sobre a Eritréia

O Estado da Eritreia é um país localizado na África Oriental, região conhecida como Chifre Africano, tem sua costa banhada pelo Mar Vermelho e faz fronteira com a Etiópia e o Sudão (TESFAGIORGIS, 2010). 

Figura 1. Mapa da Eritréia.

Fonte: BLOG DE GEOGRAFIA, 2015.

Com uma população de 3,59 milhões de pessoas, a Eritreia configura-se como um dos países mais pobres do mundo, ocupando a posição 180 – que vai até 189 – na escala do Índice de Pobreza Humana do PNUD[1] em 2020. Somado a isso, o país vive em uma ditadura desde a sua independência, em 1993, o que contribui para que saiam de lá grande número de refugiados, mesmo com as fronteiras fechadas com o Sudão, Etiópia e Djibouti. O acesso à internet também é restrito. Cidadãos são proibidos de ter esse tipo de serviço em suas residências (FERREIRA, 2017).

A Eritréia possui um histórico de conflitos bastante significativo. Permaneceu como colônia italiana de 1890 a 1941 e mais 10 anos sob controle administrativo britânico por ordem da ONU. Na década seguinte, no entanto, a Eritreia foi anexada à Etiópia, gerando o descontentamento dos iritreenses, o que ocasionou a Guerra de Independência da Eritréia, um combate violento de 30 anos que só cessaria com um referendo coordenado pela ONU em 1993. Anos mais tarde, em 1998, uma guerra de fronteira de dois anos e meio é travada com a Etiópia, encerrada sob os auspícios das Nações Unidas no começo deste milênio (FERREIRA, 2017; THE WORLD FACTBOOK, 2021). No entanto, o acordo de paz entre as duas nações só foi consolidado em 2018, encerrando oficialmente os longos anos de estado de guerra entre os dois países, o que rendeu ao primeiro-ministro etíope, Abiy Ahmed, o Prêmio Nobel da Paz no ano seguinte. 

Desde que ganhou sua autonomia, o país é governado somente pela Frente Popular por Democracia e Justiça, que manifesta-se, desde os anos de 1970, junto à União Nacional das Mulheres Eritréias, contrária à mutilação genital feminina. Entretanto, o governo do primeiro e único presidente do país, Isaias Afewerki, tem sido extremamente autocrático e repressivo, sendo responsável também por criar uma sociedade fortemente militarizada ao criar um programa impopular de alistamento obrigatório de duração indefinida (FERREIRA, 2017; THE WORLD FACTBOOK, 2021; TOUBIA, IZZET, 1998).  

A mutilação genital feminina na Eritréia

A Eritréia é um país com alta incidência da prática de mutilação genital feminina. Pelo menos 83% das mulheres e meninas do país já passaram por algum  tipo de MGF, segundo o relário da Situação da População Mundial 2020, desenvolvido pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA). Todavia, essa estimativa chegava a aproximadamente 90% na década de 1990 (TOUBIA, IZZET, 1998), quando a Eritréia ainda não tinha passado por algumas mudanças na educação e saúde das mulheres, além de tentativas de reduzir práticas prejudiciais através de sua legislação, incluindo a MGF. 

Frequentemente, as meninas irritreenses são submetidas à MGF antes mesmo de completar 5 anos de idade. Tal prática prevalece no país principalmente por uma questão de aceitação social. Realizá-la é tradicionalmente honrar e respeitar os antepassados da comunidade. Além disso, a continuidade desse procedimento está muito associada a melhores perspectivas de casamento e a ideia de que por meio da circuncisão se alcance a purificação pessoal, uma vez que viabiliza que as mulheres permaneçam virgens até o casamento (WOLDEMICAEL, 2009; TOUBIA, IZZET, 1998, ISAAC, 2017). 

Como já mencionado, a mutilação genital feminina é uma prática cultural, não religiosa, porém, sabe-se que na Eritreia é adotada por todos os grupos religiosos, entre eles mulçumanos e cristãos. Em virtude disso, muitos iritreenses acreditam que a circuncisão é uma exigência da doutrina que seguem, mesmo com muitos líderes religiosos posicionando-se contra esse procedimento ou, pelo menos, não o apoiando. (WOLDEMICAEL, 2009; TOUBIA, IZZET, 1998). 

Problemas associados à MGF na Eritreia

A análise por tipo de MGF sofrida por mulheres irretreanas realizada por Woldemicael (2009), mostra que, embora a prática da clitoridectomia tenha decrescido entre 1995 e 2002, essa não é a tendência seguida pelo procedimento de infibulação, que ainda prevalece entre a maior parte dos grupos étnicos presentes no país, principalmente nas planícies muçulmanas. Consequentemente, as mulheres que passaram por esse tipo de corte mais severo são mais propensas a complicações durante as relações sexuais em relação àquelas que foram submetidas a formas menos agressivas da MGF. A cada novo filho, a mulher passa por uma nova infibulação, o que se configura como uma das principais causas de infecção, sangramento, fístula obstétrica [2] e morte entre mulheres na Eritreia. 

“Em países como a Eritréia, onde a fertilidade é alta e os nascimentos ocorrem em intervalos curtos, a cicatriz da infibulação de uma mulher pode ser cortada e costurada várias vezes durante seus anos reprodutivos e isso pode levar a complicações médicas ou morte.” (WOLDEMICAEL, 2009, p. 20, tradução minha).

Resposta governamental 

Perante a lei, o governo da Eritreia enquadra a mutilação genital feminina como uma grave violação aos direitos das mulheres e crianças. Há 14 anos atrás foi aprovada a Proclamação 158/2007, que proíbe todo o tipo de MGF e viabilizou o desenvolvimento de uma estratégia nacional e plano de ação para abolir essa prática por completo. Dessa maneira, quem a desobedece pode ser submetido à pena de reclusão de 2 a 3 anos mais multa ou pena de prisão de 5 a 10 anos se a circuncisão levar à morte. Quando esse tipo de procedimento for realizado por médico, a pena é agravada e o tribunal tem poder para suspender o infrator do exercício da profissão por um período máximo de 2 anos. A pessoa que omite informações sobre a realização da circuncisão também pode ser punida com multa. 

Além disso, a Eritréia ratificou a Convenção sobre os Direitos da Criança e a Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres, que promovem o abandono da mutilação genital feminina. Tudo isso tem sido cada vez mais garantido pela atuação, a nível local, dos Comitês Anti-MGF, que buscam ampliar a conscientização da lei entre as famílias e monitorar a sua violação nas comunidades (MUTUMBI et al., RAHMAN, 2016; ERITREA, 2007).

Considerações finais

O fim da mutilação genital feminina na Eritréia parece longe de deixar de ser a realidade de mulheres e meninas que vivem lá, haja vista que, mesmo com um notável progresso, as mudanças acontecem a passos lentos. O relatório da UNFPA (2020) ressalta a necessidade de empoderar as lideranças femininas que se opõem a essa prática a fim de fazer essas vozes serem escutadas, seja na Eritréia ou em qualquer lugar em que isso ainda prevalece. Nesse sentido, os resultados do estudo de Woldemicael (2009) destacam que o acesso ao ensino superior e à estabilidade financeira das mulheres são fatores fundamentais para que a sociedade iritreense considere cada vez menos a MGF como um requisito básico para o casamento ou segurança familiar de suas filhas. Além disso, as normas sociais que favorecem essa prática nociva precisam ser alteradas de maneira gradual e holística para que a população feminina tenha maior autonomia sobre o próprio corpo, o que exige o trabalho conjunto de líderes religiosos, família, instituições, formuladores de políticas públicas, movimentos sociais e ativistas. 


NOTAS

[1] Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).

[2] Fístula obstétrica é uma ruptura no canal vaginal que causa incontinência e leva à exclusão social de milhares de mulheres. (MÉDICOS SEM FRONTEIRAS, 2018).


REFERÊNCIAS

CENTER FOR REPRODUCTIVE RIGHTS. Female Genital Mutilation: Background and History. In: CENTER FOR REPRODUCTIVE RIGHTS. Female Genital Mutilation: a guide to laws and policies worldwide. Nova Iorque: Center For Reproductive Rights, 2006. p. 7-10. Disponível em: https://reproductiverights.org/sites/default/files/documents/FGM_final.pdf. Acesso em: 18 jul. 2021.

ERITREA: Proclamation No. 158/2007 of 2007, the Female Circumcision Abolition Proclamation [Eritrea],  20 March 2007, available at: https://www.refworld.org/docid/48578c812.html [accessed 20 July 2021]

FERREIRA, Marta Leite. 23 fotos da vida na Eritreia, a Coreia do Norte africana. 2017. Disponível em: https://observador.pt/2017/07/21/23-fotos-da-vida-na-eritreia-a-coreia-do-norte-africana/. Acesso em: 18 jul. 2021.

ISAAC, Samuel. Accelerating the Eradication of Female Genital Mutilation/Cutting in Eritrea. 2017. FXB Center. Disponível em: https://fxb.harvard.edu/2017/01/04/accelerating-the-eradication-of-female-genital-mutilationcutting-in-eritrea/#_edn2. Acesso em: 4 jan. 2017.

MÉDICOS SEM PROBLEMAS. Fístula obstétrica. 2018. Disponível em: https://www.msf.org.br/o-que-fazemos/atividades-medicas/fistula-obstetrica#:~:text=F%C3%ADstula%20obst%C3%A9trica%20%C3%A9%20uma%20ruptura,a%20cuidados%20obst%C3%A9tricos%20%C3%A9%20restrito.. Acesso em: 22 jul. 21.

PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O DESENVOLVIMENTO. Relatório do Desenvolvimento Humano 2020. Nova Iorque: O Programa das Nações Unidas Para O Desenvolvimento, 2020. Disponível em: http://hdr.undp.org/sites/default/files/hdr_2020_overview_portuguese.pdf. Acesso em: 19 jul. 2021.

RAHMAN, Saidur. Resistance and Obstacles Against Eradicating the Practice of Female Genital Mutilation (FGM) in Eritrea: an empirical analysis. Search, Bhubaneswar, v. 7, n. 2, p. 57-76, jul. 2013. Disponível em: http://ddceutkal.ac.in/Journal/SEARCH-VOL-7-ISSUE-2-JULY-2013.pdf#page=65. Acesso em: 20 jul. 21.

THE WORLD FACTBOOK. Eritrea. 2021. CIA. Disponível em: https://www.cia.gov/the-world-factbook/countries/eritrea/. Acesso em: 18 jul. 21.

TOUBIA, Nahid; IZZET, Suzan. Female genital mutilation: an overview. Genebra: World Health Organization, 1998. Disponível em: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/42042/9241561912_eng.pdf. Acesso em: 15 jul. 2021.

UNFPA, Relatório. Relatório sobre a situação da população mundial 2020. 2020. Disponível em: https://brazil.unfpa.org/sites/default/files/pub-pdf/situacao_da_populacao_mundial_2020-unfpa.pdf. Acesso em: 15 jul. 2021.

WOLDEMICAEL, Gebremariam. Female Genital Cutting in Contemporary Eritrea: determinants, future prospects, and strategies for eradication. Eastern Africa Social Science Research Review, Eastern Africa Social Science Research Review,, v. 25, n. 2, p. 1-29, jun. 21. Disponível em: https://muse.jhu.edu/article/315906/summary. Acesso em: 16 jul. 21.

WORLD HEALTH ORGANIZATION. Female genital mutilation: Fact sheet. Genebra: World Health Organization, 2016. Disponível em: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/112328/WHO_RHR_14.12_eng.pdf. Acesso em: 15 jul. 2021. 

WORLDOMETER. Eritrea Population. 2020. Disponível em: https://www.worldometers.info/world-population/eritrea-population/. Acesso em: 18 jul. 21.

Giovana Machado

Formada em Relações Internacionais na Universidade Estadual Paulista (UNESP). Tem interesse em Direitos Humanos e Segurança Internacional.

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