DE “ALTO VOLTA” A “BURKINA FASO”: A HISTÓRIA POR TRÁS DO NOME

DE “ALTO VOLTA” A “BURKINA FASO”: A HISTÓRIA POR TRÁS DO NOME

Selos em catálogo da República do Alto Volta [1]

“Terra de homens dignos”, esse é o significado de “Burkina Faso”. O nome foi criado a partir de termos de dialetos locais para exaltar o orgulho da integridade de seus cidadãos (FUNAG, 2011). Contudo, este não foi o nome originário do país, que nasceu como “Colônia do Alto Volta”, e passou à “República do Alto Volta” após declarar sua independência da França, em 1960. O nome Burkina Faso é recente e está próximo de completar 40 anos. Ele foi criado por Thomas Sankara após sua ascensão ao poder com a Revolução de 1983.

Antiga jurisdição dos Reinos Mossi, desde o século XI, o atual território de Burkina Faso foi dominado pela França, que passou a chamar a colônia de Alto Volta, diante da sua localização no platô onde nascem os três rios Volta, que desempenhava função estratégica como entreposto entre as colônias francesas do Norte e os portos no golfo da Guiné (FUNAG, 2011). 

O país está localizado próximo ao Golfo da Guiné, limitado ao norte pelo Mali e pelo Niger e ao sul pelo Togo, Gana, Benin e Costa do Marfim. A capital Ouagadougou tem o mesmo nome de um dos Reinos históricos mais poderosos da região. 

No que tange às relações com o Brasil, a independência do antigo Alto Volta foi reconhecida pelo governo brasileiro em 1960, com relações diplomáticas entre os países estabelecidas a partir de 1975. A intensificação dessas relações culminou na abertura da Embaixada do Brasil em Ouagadougou em 2008 e da Embaixada de Burkina Faso em Brasília em 2009.

Diante desse contexto, o presente artigo vai estudar a trajetória da Revolução de 1983 cuja importância culminou na mudança de nome do país.

Mapa do país ressaltando os três rios Volta. [2]

DE COLÔNIA A ESTADO INDEPENDENTE

O continente africano foi palco de várias revoluções e movimentos anticoloniais no século XX. Tais movimentos tiveram um importante papel na construção da identidade dos novos estados que se formavam como resultado dessas ações. A fragilidade da burocracia colonial, somada à aliança entre burguesia e campesinato, favorecia essas atividades (VISENTINI, 2012).

As eleições de 1960 concretizaram o processo de independência do país, levando ao poder Maurice Yameogo. Iniciou-se, então, um governo fortemente conectado à elite de mercado, focado na importação, com marcas de autoritarismo e alinhamento comunista além de uma postura neocolonial. Essa posição encontrou forte descontentamento popular, levando a implementação de um Conselho Supremo das Forças Armadas, o que gerou um governo híbrido civil-militar, sob a liderança de Sangoulé Lamizana, que tinha amplo apoio popular (FUNAG, 2011).

Sobre esse processo no continente, Ricardo Soares Oliveira (2009, p. 95) afirma que “as independências africanas ocorreram numa atmosfera protetora que promoveu a absorção das ex-colónias como membros inquestionáveis da sociedade internacional de estados soberanos.”

Certo é que em todo o continente os novos estados independentes continuaram a manter laços com seus antigos colonizadores, nomeadamente em relação à diplomacia e economia, o que não foi diferente com Burkina Faso (Alto Volta, na época). Ainda hoje é possível perceber a presença francesa em aparatos sociais e de infraestrutura, como escolas e transportes rodoviários e ferroviários.

Mapa de Burkina Faso. [3]

Diante da independência dos países africanos, os desafios econômicos e sociopolíticos foram ganhando terreno de forma gradual, enquanto se testemunhava o conturbado ambiente causado pelo clima pós anos 60. Isso aumentava ainda mais o desafio dos estados que precisavam adotar políticas para o equilíbrio monetário, fiscal e cambial após as independências (IDAEWOR, 2020).

Nas palavras de Visentini (2008, p. 123), os anos 1960 foram considerados o “ano africano”, na medida que:

“A maioria dos países do continente tornou-se independente da França e da Grã-Bretanha, dentro da linha “pacífica”, gradual e controlada: Camarões, Congo-Brazzaville, Gabão, Chade, República Centro-africana, Togo, Costa do Marfim, Daomé (atual Benin), Alto Volta (atual Burkina Fasso), Níger, Nigéria, Senegal, Mali, Madagascar, Somália, Mauritânia e Congo-Leopoldville (atual Zaire). Entre 1961 e 1966 foi a vez de Serra Leoa, Tanzânia, Uganda, Ruanda, Burundi, Quênia, Gâmbia, Botswana e Lesoto. Todos os novos Estados localizavam-se na zona tropical africana 124 e, neles, era limitado o número de colonos europeus, o que facilitou a transferência do controle formal dos diversos países à burguesia e classe média negra.”

As disputas no continente foram acentuadas no contexto da Guerra Fria, uma vez que a explosão dos movimentos revolucionários africanos contou com apoio soviético, cubano e alemão oriental. Some-se a isso a instabilidade social e política dos países e o movimento internacional adepto à esquerda. A Era de Ouro do capitalismo chegava ao fim, e as crises econômicas foram pano de fundo para uma nova onda de revoluções. 

Ainda em relação ao contexto da Guerra Fria, trata-se de um sistema internacional que figurou como um dos pilares essenciais da política africana nos anos de 1960 e 1970.  Adicionado à economia internacional, o sistema ditou, à época, o ritmo na vida dos estados africanos. Por outro lado, o fim da Guerra Fria acelerou o declínio e a marginalização da África no sistema internacional.

Enquanto isso, em Burkina Faso, o novo governo independente aprovou uma nova Constituição que seguiu em linha democrática até final dos anos 70. Em 1980, o autoritarismo foi intensificado em meio à crise vivida no país, o que foi agravado pela seca que reduziu a área agrícola produtiva pela metade. Mergulhados na forte instabilidade política e financeira, os governos foram se alternando até a formação do Conselho Nacional da Revolução (CNR), sob a liderança de Thomas Sankara.

A REVOLUÇÃO QUE CULMINOU EM UM NOVO NOME 

Alguns anos depois, o líder Sankara, em associação com o proletariado urbano, trabalhadores rurais, partidos políticos de esquerda, sindicatos e parte do Exército Nacional, todos inspirados por ideias marxistas, efetivou uma revolução. Em agosto de 1983 foi instituído o Estado revolucionário de Burkina Faso (VISENTINI, 2020).

Nos anos que esteve à frente da Revolução, a administração Sankara buscou a implementação de mudanças para tornar efetiva a independência do país, com a criação de Tribunais Populares Revolucionários (TPRs), cujo objetivo era o julgamento de crimes de corrupção das administrações anteriores à sua posse. Este evento revolucionário ocorreu em consequência da ascensão de novas forças políticas e sociais, especialmente partidos políticos de pequeno porte e sindicatos nacionais, bem como organizações conectadas ideologicamente por uma orientação marxista-leninista.

Nada mais eficaz para entender a Revolução do que as palavras do líder Thomas Sankara, em seu discurso de orientação Política em outubro de 1983 (Fazzio; Manoel, 2019, p. 417):

“Nossa revolução é do interesse de todos os oprimidos, todos aqueles que são explorados na sociedade atual. Ela é, portanto, do interesse das mulheres, porque a base de sua dominação pelos homens é encontrada no sistema de organização da vida política e econômica da sociedade. A revolução, ao mudar a ordem social que oprime a mulher, cria as condições para a sua verdadeira emancipação.”

O ápice da Revolução se deu em 1984, quando Thomas Sankara mudou o nome do país de Alto Volta para Burkina Faso. O nome se deu em homenagem à cultura e língua local, remontando a história da formação do país. A sua formação traz a junção das palavras “integridade” (Burkina), “povo” () e “terra natal” (Faso), pertencentes aos dialetos Mossi, Fufulde e Doula, respectivamente. Por consequência, quem nasce em Burkina Faso é chamado de Burkinabé (MURRAY, 2018). 

As mudanças na identidade do país também foram materializadas em sua bandeira. Anteriormente as três listas horizontais representavam os três rios que davam nome ao país. A atual bandeira possui duas cores predominantes: o vermelho, representando a revolução socialista, e o verde para ressaltar a exuberância de recursos agrícolas e a estrela amarela no centro representa a luz da revolução que guiará o povo e sua localização centralizada destaca a capital do país, Ouagadougou (CERULO, 1993).

Da esquerda para a direita: antiga República do Alto Volta e de Burkina Faso [4]

O governo de Sankara durou pouco mais de 4 anos, até o líder da nação ser assassinado em 15 de outubro de 1987 em um golpe onde Blaise Compaoré assumiu o poder (MURREY, 2018). Campaoré governou por 27 anos até que a frágil estabilidade do país foi atacada por um levante popular em 2014, seguida de uma tentativa de golpe em 2015. Com a latente divisão das forças armadas, Roch Marc Christian Kaboré assumiu a Presidência com a esperança de trazer a necessária unificação. 

Em 2022, o país foi palco de mais dois golpes. Em janeiro, Kaboré foi deposto e substituído pelo Tenente-Coronel Paul-Henri Sandaogo Damiba, que por sua vez sofreu um golpe apenas nove meses depois, que levou ao poder Ibrahim Traore, que segue como líder interino, desde então.

CONCLUSÃO  

Atualmente, a “terra dos homens dignos” encontra-se imersa em uma crise humanitária, onde não se consegue enxergar uma saída aparente. O país que no passado buscou a sua independência, privilegiando exaltar a força e o brio de seus nacionais, hoje sofre com a escalada da violência de grupos armados e sucessivos golpes de estado. 

Tais conflitos geram deslocamentos internos e crises políticas, que agravam a pobreza, insegurança e violação de direitos humanos. Olhar para o passado de Burkina Faso é trazer um ar de esperança de uma nação formada de cidadãos fortes e resilientes que, sobretudo, buscam na integridade a direção rumo a um futuro melhor. Trata-se de uma terra que, além de toda instabilidade política, vem sendo assolada pelos problemas climáticos, somados à atuação predatória de organizações terroristas na busca de acúmulo de riquezas para financiamento de suas ações. 

Contudo, essas circunstâncias evidenciam a força de um povo que vem resistindo bravamente a tantos ataques. São quase 40 anos de uma nova identidade, mesmo em meio a tantas dificuldades.  Certo é que Burkina Faso merece que a comunidade internacional volte seus olhos para aquela faixa de terra no Sahel e estenda o seu braço para ajudar a carregar o fardo que tende a ficar cada vez mais pesado para o Burkinabé.  

APÊNDICE:

Para entender mais a situação atual da região do Sahel, leia esses artigos aqui no nosso site:

IMAGENS:

[1] – File:Burkina Faso B2.jpg – Wikimedia Commons

[2] –  File:Upper volta map with rivers.PNG – Wikimedia Commons 

[3] – File:Burkina Faso map.png – Wikimedia Commons

[4] – Montagem nossa.

REFERÊNCIAS  

BOTCHWAY, De-Valera N.y.M.; TRAORE, Moussa. Military Coup, Popular Revolution or Militarized Revolution?: Contextualizing the Revolutionary Ideological Courses of Thomas Sankara and the National Council of the Revolution: contextualizing the revolutionary ideological courses of Thomas Sankara and the national council of the revolution. In: MURREY, Amber (ed.). A Certain Amount of Madness: the life, politics and legacies of Thomas Sankara. Londres: Pluto Press, 2018. p. 19-36. 

CERULO, K. Símbolos e sistema mundial: hinos e bandeiras nacionaisFórum Sociológico 8 (2) 243-271. Publishers Acadêmicos da Kluwer: 1994. Editores Plenum.

FAZZIO, Gabriel Landi; MANOEL, Jones (org.). Revolução Africana: uma antologia do pensamento marxista. São Paulo: Autonomia Literária, 2019. 417 p. (Quebrando as Correntes). 

IDAEWOR, O. O. (2020). O domínio do terrorismo: aspectos dos desafios sociopolíticos na África ocidental pós-independência: Nigéria, Burkina Faso e Mali.  Revista Brasileira De Estudos Africanos, 5(9). Disponível em: < https://doi.org/10.22456/2448-3923.96189 > Acesso em 20/06/2023. 

MURREY, Amber. Introduction. In: MURREY, Amber (ed.). A Certain Amount of Madness: the life, politics and legacies of Thomas Sankara. Londres: Pluto Press, 2018. p. 1-19 

OLIVEIRA, Ricardo Soares de. A África desde o fim da Guerra Fria. Relações Internacionais. Oxford: 2019. Pg. 95. 

VISENTINI, Paulo Fagundes. As Revoluções Africanas: Angola, Moçambique e Etiópia. São Paulo: Fundação Editora da Unesp, 2012. (Revoluções do Século 20). 

VISENTINI, Paulo Fagundes. Independência, marginalização e reafirmação da África (1957-2007). In: MACEDO, JR., org. Desvendando a história da África [online]. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2008. Diversidades series, pp. 123-137. I 

VISENTINI, Paulo Fagundes. Regimes militares marxistas africanos, ascensão e queda: condicionantes internos e dimensões internacionais. Revista Brasileira de Estudos Africanos, Porto Alegre, v. 5, n. 9, p. 33-53, jan. 2020. Universidade Federal do Rio Grande do Sul.  

Priscila Tardin

Luso-brasileira, apaixonada pela África. Profissional do Direito que está se especializando em Relações Internacionais para viver o melhor desses dois mundos. Entusiasta de novos desafios e experiências transculturais, com muita facilidade em comunicação e no aprendizado de novos idiomas.

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