ESTADOS FALIDOS NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS: O CASO DA SOMÁLIA

ESTADOS FALIDOS NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS: O CASO DA SOMÁLIA

Mulher segura bandeira da Somália em cerimônia para receber o caixão do ex-presidente Somali, Abdullahi Yusuf Ahmed ¹

Estados Falidos são temas de estudos em Relações Internacionais e frequentemente são expostos em portais de notícias e sites pelo mundo todo, mesmo que de forma indireta. Quem nunca leu sobre a situação catastrófica do Haiti, a crise sem fim na Síria, ou a disputa de poder no Afeganistão? São notícias e assuntos que permeiam nosso cotidiano de forma constante, mas será que todos sabem o que significa ser um Estado Falido? Dessa maneira, no presente artigo, será abordado o conceito de Estado Falido, utilizando-se como exemplo o caso da Somália.

O QUE SÃO ESTADOS FALIDOS?

O conceito de Estados Falidos – também designados como Estados Frágeis ou Estados Fracassados – possui várias definições, o que varia de acordo com o período histórico e as teorias às quais os autores se referem. É claro, que a intenção do presente trabalho não é fazer um aprofundamento teórico, mas sim exemplificar o conceito.

Rotberg (2003) define três pontos de diferenciação no conceito de Estados Falidos, os quais são: Estados Fracos, Estados Falidos e Estados Colapsados. 

O primeiro ponto, são Estados que conseguem manter o poder de segurança e prover certa estabilidade, mas tem dificuldade de fornecer bens políticos para a população (como saúde, educação, emprego, etc.). Assim, criam-se conflitos internos de forma a se opor a esse regimento. 

O segundo, se constitui quando o Estado perde o controle de suas fronteiras e de seu território para forças insurgentes, normalmente milícias e guerrilhas rivais, com a perda do poder de segurança, os Estados Falidos se tornam incapazes de fornecer os bens fundamentais de um Estado moderno.

O terceiro ponto, é o caso extremo de falência estatal, nesse momento os bens para a população são recebidos por meio de ajuda humanitária, as forças que detêm o poder são entes privados. A segurança se reduz à lei do mais forte, de forma a ficar exposto a um total vácuo de autoridade. Nesse terceiro ponto está o país objeto do enfoque deste artigo. Para adicionar na compreensão sobre o conceito, a definição de Robert Jackson de que Estados Falidos são aqueles que

“não podem ou não irão salvaguardar condições mínimas de paz, ordem, segurança, etc. domesticamente” ² (JACKSON, 1998, p.2. Tradução nossa).

(JACKSON, 1998, p.2. Tradução nossa).

Resumidamente, Falido é aquele país que não consegue fornecer nenhum tipo de controle sobre seu território. Este controle pode ser de diversos âmbitos: social, político, econômico, institucional, entre outros. Existem vários países que estão passando por essa situação e, inclusive, há um relatório feito pelo The Fund for Peaceque, através de ranking, ordena os Estados em seu nível de fragilidade. 

O CASO DA SOMÁLIA

Somália em destaque no mapa da África ³

A situação em que se encontra a República da Somália é lastimável. O país que se localiza no leste africano, no chifre da África, e faz fronteira a oeste com a Etiópia, ao norte com Djibouti, ao sul com o Quênia e a leste é banhado pelo Oceano Índico. Possui dimensões geográficas similares ao estado de Minas Gerais, é habitado por cerca de 17 milhões de pessoas e está em primeiro lugar no índice do The Fund For Peace, como o Estado mais frágil do mundo. 

Os milhões de habitantes, de maioria islâmica, sobrevivem em meio a um contexto político e econômico de extrema instabilidade. A expectativa de vida ao nascer é de apenas 55 anos, menos da metade da população tem acesso a eletricidade, apenas 34% da população maior de 15 anos tem acesso a empregos – os dados são do The World Bank. 

O país não conta com serviços públicos gerados pelo Estado, como fornecimento de água e energia elétrica. Além disso, não há uma força de segurança institucionalizada a quem a população possa recorrer. 

Assim, evidencia-se uma situação de máxima deslegitimação do governo, que descumpre seu papel constitucional e institucional, ao passo que é incapaz de atender as demandas e necessidades de seus cidadãos. Afinal, o governo não exerce a soberania local, apesar da mesma ser reconhecida internacionalmente. 

AS RAZÕES PARA A FALÊNCIA DO ESTADO

As raízes históricas do problema encontram-se numa guerra civil que está em andamento desde 1991, iniciada após a deposição do ditador pró-soviético Siad Barre. Duas forças surgiram para controlar o território Somali, tropas comandadas pelo general Mohamed Farah Aidid, que perseguiram o ex-ditador, e Ali Mahdi Mohamed, que era um empresário rico de Mogadishu, capital da Somália, que se autoproclamou presidente e formou um governo.

O conflito entre essas duas forças dizimou centenas de milhares. Em 1992, estima-se que 350 mil somalianos morreram de forma direta ou indireta devido à guerra civil. Após isso, foi aprovada uma operação intitulada de “Operation Restoration Hope” (Operação restaurando a paz) a qual o exército estadunidense protegeria os envios de alimentos. No entanto, em 1993 rebeldes somali derrubaram dois helicópteros dos Estados Unidos, matando 18 soldados e ocasionando uma batalha na qual centenas de somalianos morreram. A operação foi encerrada em 1994 (VENUGOPALAN, 2017).

Ao longo do período, desde 1991 até hoje, já houve acontecimentos dos mais variados no território Somali. A tentativa de instaurar diversos governos, um plano de paz formado pela Etiópia e o Quênia, se trata de forças que lutam por regiões independentes dentro da Somália, intervenções de Estados estrangeiros – como dos Estados Unidos, Etiópia, Quênia e mais recente o Al-Shabaab. E a única certeza é que o povo Somali segue sofrendo com a fome endêmica, e a falência estatal está servindo como pano de fundo para graves desrespeitos aos direitos humanos, tais como assassinatos e estupros. 

Não é de se surpreender que esta situação seja considerada uma das maiores crises humanitárias já vistas pela comunidade internacional. Para agravar o cenário, a falta de recursos financeiros, ocasionada pela carência de trabalho institucionalizado, somada à falta de articulação política interna e às desavenças históricas entre os clãs que dominam o país, impedem o estabelecimento de uma autoridade central. 

A crise mais recente que a Somália enfrenta, em meio a este contexto horrendo, é a atuação de um grupo radical islâmico, o já citado Al-Shabaab. Ele foi criado a partir de uma ala extremista do Conselho Supremo das Cortes Islâmicas (Islamic Courts Union em inglês). Foi uma associação que se uniu em 2000 na Somália, com a finalidade de promover segurança e outros serviços governamentais, além de implementar a Sharia 4 nos territórios em que obtiveram controle (STANFORD, 2019a). A partir desta ala extremista, o Al-Shabaab surge com a finalidade de estabelecer um novo Estado Somali que seja comandado seguindo estritamente a interpretação da Sharia. Esse grupo, já é a maior organização militar lutando para governar a Somália (STANFORD, 2019b).

Grupo Al-Shabaab em fuga em uma de suas ações 5

Neste contexto, os somalis sucumbem às milícias armadas aos ataques de grupos radicais islâmicos e à pirataria moderna, atores que acumulam forças e se estabelecem como polos detentores de poder militar e econômico dentro dessa “terra de ninguém”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A situação somali é complexa, assim como ocorre em outros locais do globo tal qual o Haiti, Afeganistão, Iêmen e Sudão do Sul, para citar alguns exemplos. Muitas variáveis levam um Estado a ser considerado Falido, o que sempre envolve dimensões históricas, culturais, políticas, religiosas, econômicas, etc. O escopo é amplo, e algumas das discussões a se fazer são de qual é o papel da comunidade internacional nessas situações e se há meios de livrar da “falência” um Estado com esse tipo de perfil. 

De qualquer modo, é necessário buscar caminhos para melhorar a situação de vida das milhões de pessoas que sofrem vivendo em Estados Falidos. Afinal, a existência desse cenário é um problema sério e que precisa de maior atenção por parte dos tomadores de decisão do jogo de xadrez que é o sistema internacional de Estados. 

APÊNDICE

Caso você tenha se interessado por essa temática, sugiro ler outro texto que está publicado no site, que aborda o mesmo fenômeno, analisando o caso do Iêmen, que está atualmente no segundo lugar no ranking de países falidos: “Estados Fracos, Falidos e Colapsados: O caso do Iêmen”.

NOTAS

1 File:Repatriation Ceremony of Former President Abdullahi Yusef

2 “cannot or will not safeguard minimal civil conditions, i.e., peace, order, security, etc. domestically” (Texto original)

3 File:Locator map of Somalia in Africa

4 A Sharia é o sistema jurídico do Islã, o conjunto de normas que derivam dos escritos do Alcorão, e da conduta de Maomé. Importante compreender que suas interpretações podem variar conforme quem os adota.

5 File:Mogadishu Daily Life one year after Al Shabaab 

REFERÊNCIAS

JACKSON, Robert H. Surrogate Sovereignity? Great Power Responsibility and “Failed States” . Institute of International Relations – The University of British Columbia. Working Paper n. 25, 1998. Disponível em: https://www.files.ethz.ch/isn/46509/WP25.pdf. Acesso em: 19 jul. 2023.

ROTBERG, Robert. ​Failed states, collapsed states, weak states: ​causes and indicators. In: ROTBERG, Robert (Ed.). State failure and state weakness in a time of terror. Cambridge: World Peace Foundation, 2003, p. 1-28. Disponível em: https://www.brookings.edu/wp-content/uploads/2016/07/statefailureandstateweaknessinatimeofterror_chapter.pdf. Acesso em: 19 jul. 2023.

STANFORD. Islamic Courts Union. Mappin Militant Organizations. Stanford University, 2019a. Disponível em: https://cisac.fsi.stanford.edu/mappingmilitants/profiles/islamic-courts-union. Acesso em: 19 jul. 2023.

STANFORD. Al-Shabaab. Mappin Militant Organizations. Stanford University, 2019b. Disponível em: https://cisac.fsi.stanford.edu/mappingmilitants/profiles/al-shabaab. Acesso em: 19 jul. 2023.

THE FUND FOR PEACE. Fragile States Index, 2023. Disponível em: https://fragilestatesindex.org/. Acesso em: 19 jul. 2023.

THE WORLD BANK. World Bank Data. Somalia. Disponível em: https://data.worldbank.org/country/somalia. Acesso em: 19 jul. 2023.

VENUGOPALAN, Harish. Somalia a Failed State?. ORF Issue Brief [online], n. 170, fev. 2017. Disponível em https://www.orfonline.org/wp-content/uploads/2017/02/ORF_Issue_Brief_170_Somalia.pdf. Acesso em: 19 jul. 2023.

Fellipe Pietrowski Teixeira

Bacharel em Relações Internacionais pela UNISC. Interessado em política internacional, análise de política externa e aprofundo minhas pesquisas no âmbito de américa latina, integração regional e política externa.

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