EUA E O GOLPE DE 1964: A OPERAÇÃO BROTHER SAM

EUA E O GOLPE DE 1964: A OPERAÇÃO BROTHER SAM

O navio estadunidense USS Forrestal (CVA-59) enviado à costa brasileira no contexto da Operação Brother Sam. Fonte: Naval History and Heritage Command.

Introdução

Os Estados Unidos, durante o século XX, participou ativamente na destituição de governos por toda a América Latina, e o Brasil não foi exceção. Há demasiados documentos e estudos que comprovam o papel dos EUA no golpe civil-militar de 1964, que não apenas financiou campanhas anticomunistas e anti-governo, mas também elaborou e colocou em prática um plano para desembarque de tropas estadunidenses no território brasileiro. A força tarefa, batizada de Operação Brother Sam, foi discutida por membros do alto escalão do governo dos Estados Unidos, incluindo os presidentes John Kennedy (1961-1963) e Lyndon Johnson (1963-1969). Após a vitória dos militares revoltosos brasileiros, foi descartada a possibilidade de participação dos soldados estadunidenses e ordenada a volta dos navios de guerra. Até determinado momento, os arquitetos dessa operação negaram qualquer resquício da sua existência, porém, após a divulgação de documentos sigilosos que comprovam a veracidade das acusações com documentos e ligações gravadas, a tese do principal defensor de tal empreitada, Lincoln Gordon, de que inexistia qualquer intenção de intervir no Brasil, foi refutada.

A Segurança Hemisférica contra o Comunismo

Os Estados Unidos, no século XX, lideraram a criação de mecanismos de segurança hemisférica no continente americano, como a Junta Interamericana de Defesa (JID), em 1942, o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (Tiar), em 1947, e a Organização dos Estados Americanos, em 1948. Esses instrumentos, de maneira geral, consolidaram a cooperação americana para conter possíveis ataques externos ao continente. A idealização dessa institucionalização da segurança hemisférica receava um cenário parecido como a Primeira e a Segunda Guerra Mundial que poderia ocorrer na América. A Guerra Fria, dessa forma, poderia eclodir um novo conflito global entre os dois blocos ideológicos do capitalismo e do socialismo. No entanto, como afirma Graciela Pangliai (2006, apud Xavier, 2023), os estadunidenses utilizaram as instituições multilaterais e os acordos de defesa recíproca de maneira quase que exclusivamente para conter a ameaça comunista que eles tanto temiam. Assim, os EUA, por meio de sua hegemonia, moldaram a política regional de segurança e defesa baseada em seus interesses.

Para os Estados Unidos, a contenção do comunismo no continente americano era de vital importância, devido à inquietação de uma possível aliança entre os países latino-americanos e caribenhos e o bloco soviético. A presença soviética, dessa forma, precisava ser completamente eliminada do continente americano. Esse contexto de temor se concretizou quando os soviéticos abasteceram Cuba com mísseis, dando origem à crise entre os dois países em 1962 (Xavier, 2023).

No entanto, o comunismo não era uma ameaça real para a ordem interamericana como afirmavam os estadunidenses. As classes dominantes dos países da América Latina e do Caribe impediram qualquer avanço significativo dos comunistas de seus respectivos países. No Brasil, isso fica evidente pelo próprio período ditatorial, que tornou ilegal o partido comunista e iniciou uma campanha de repressão contra a oposição. Assim, a alteração da estrutura político-econômica não foi consolidada pelos levantes populares. De acordo com Napolitano (2019, apud Xavier, 2023), no âmbito geopolítico, 17 países se reuniram na Cidade do México, em 1954, onde estabeleceram a Comissão Permanente do Congresso para a Não-intervenção Soviética na América Latina. No encontro, as políticas dos Estados Unidos para a contenção da influência da URSS ganharam ainda mais força.

A retórica dos Estados Unidos pode ser interpretada pelo esforço dos presidentes estadunidenses de angariar apoio político doméstico. Para Hobsbawn (1994, apud Xavier, 2023), a União Soviética estava mais preocupada em manter sua hegemonia regional no Leste Europeu do que ampliar sua influência para além da Cortina de Ferro. Com isso, de acordo com o historiador, o discurso “anti-comunista” era uma tática usada pelos chefes de Governo dos Estados Unidos para conquistar votos nas eleições internas, em uma sociedade marcada pelo individualismo e empreendimento privado.

O golpe de 1964

Durante o governo de João Goulart (1961-1964), cresceu a conspiração contra Jango nos meios militares, em que o chefe do Estado-Maior do Exército, o general Humberto de Alencar Castelo Branco, e outros partidários defendiam uma “intervenção defensiva” contra os excessos governamentais (Fausto, 2006). Jango articulava com diversos setores da sociedade para implantar suas reformas de base – reforma agrária, reforma urbana e ampliação dos direitos políticos a certas camadas sociais. Ao mesmo tempo, crescia o temor das classes políticas conservadores, sobretudo dos militares. Assim, a aproximação do presidente com os setores populares, e os números desastrosos na economia, deram razão para o descontentamento entre os militares. É importante ressaltar que tais reformas não tinham a intenção de transformar o sistema econômico brasileiro para o socialismo. Era o contrário. Os defensores das reformas de base acreditavam que o mercado externo era um competidor desleal do doméstico, e a dessa forma, com a reforma agrária, a população rural seria integrada ao capitalismo, dando origem a uma nova demanda por produtos. (Fausto, 2006).

Por sua vez, as Forças Armadas haviam adotado uma nova doutrina impulsionada pela dinâmica da Guerra Fria e influenciada pela ascensão de Fidel Castro ao poder em Cuba. A Revolução Cubana expôs aos militares brasileiros a natureza das guerras revolucionárias que ocorriam concomitantemente ao confronto entre as superpotências, visando, em última análise, a disseminação do comunismo nos países americanos. Diante desse contexto, os militares assumiram um papel proativo na garantia da contenção da influência soviética, na defesa da segurança nacional e no fomento ao desenvolvimento do país (Fausto, 2006).

A ala da direita, em aliança com os conservadores moderados, defendeu a ideia de que apenas uma revolução seria capaz de revitalizar a democracia e acabar com a luta de classes, o poder dos sindicatos e os perigos do comunismo. Diante das tensões políticas, João Goulart propôs ao Congresso a declaração do estado de sítio, argumentando que isso seria necessário para restaurar a ordem e conter a agitação no campo. No entanto, seu pedido foi rejeitado, o que apenas aumentou as suspeitas em relação às suas intenções no governo (Fausto, 2006).

As tensões entre os militares conservadores e o governo de Goulart culminaram na ocupação do Rio de Janeiro pelas tropas rebeldes lideradas pelo general Olímpio Mourão Filho em 31 de março. Seu objetivo era invadir o Ministério da Guerra e depor Jango, que estava presente no local. Simultaneamente, outro batalhão, liderado pelo general Amauri Kruel, deslocou-se para o Rio de Janeiro vindo do Vale do Paraíba. Diante da ameaça das tropas que cercavam a cidade, o presidente voou para Brasília em 1º de abril e, de lá, seguiu para Porto Alegre (Fausto, 2006). Enquanto Goulart se dirigia ao Rio Grande do Sul, o presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, declarou o cargo de presidente da República vago. A função foi assumida, por via inconstitucional, pelo presidente da Câmara, Ranieri Mazzili. Jango negou qualquer tipo de reação sugerida por seu círculo próximo e, no dia 04 de abril, seguiu para o exílio no Uruguai (Bandeira apud Zanghelini; Filho, 2019).

Tanques em frente ao Congresso Nacional após o golpe civil-militar de 1964. Fonte: Arquivo Público do DF.

Apoio estadunidense e a Operação Brother Sam

A ajuda por parte dos Estados Unidos aos militares brasileiros compreendeu vários elementos, que abrangeu desde o período anterior à execução do golpe civil-militar até o governo Castelo Branco. As formas de auxílio compreenderam apoio logístico e bélico, como fornecimento de combustíveis, armas, aviões, alimentos e munições, prática de exercícios navais na costa brasileira, ajuda econômica ao governo militar e viagens oferecidas a políticos, estudantes, professores, jornalistas e intelectuais brasileiros para exercerem influência sobre a sociedade civil (Fico, 2008 apud Silveira, 2009).

No plano logístico, os EUA arquitetaram um plano para dar apoio aos militares rebeldes. A Operação Brother Sam teve como arquiteto o embaixador estadunidense no Brasil, Lincoln Gordon, e foi uma força tarefa naval para o abastecimento de petróleo, gasolina e derivados, além de armas e munições para os conspiradores (Green; Jones, 2009). Havia pretensão por parte dos Estados Unidos em enviar tropas terrestres para o território brasileiro, mas somente se houvesse envolvimento soviético ou se a balança das forças pendesse para Goulart. Como nenhum dos casos se consolidou, foi descartada a possibilidade de desembarque da força tarefa (Fico, 2008 apud Silveira, 2009).

Em termos militares, os Estados Unidos, por meio da Operação Brother Sam, planejaram enviar um porta-aviões, seis destróieres e um grupo de helicópteros embarcados em outro navio. A força tarefa foi instruída a sair de um porto da Virgínia às 7h da manhã do dia seguinte e chegaria ao Brasil através do porto de Santos, entre os dias 10 e 14 de abril. Era evidente que os estadunidenses poderiam participar ativamente da guerra civil no Brasil para colaborar com os revoltosos caso o fracasso fosse um cenário provável. No dia 2 de abril, às 20h, foi dada a ordem para que os navios retornassem aos Estados Unidos, já que os militares rebeldes brasileiros haviam logrado com sucesso destituir Goulart da presidência. A Operação custou US$ 2,3 milhões aos cofres públicos dos EUA (DW, 2024).

O precursor dessa empreitada estadunidense, Lincoln Gordon, sempre negou a existência de tal operação. Até que, em 1975, a disponibilização de documentos referentes à força tarefa pela biblioteca presidencial Lyncon Baines Johnson tornaram a tese do diplomata insustentável. Desde então, Gordon tem negado que os Estados Unidos participado diretamente no planejamento ou no financiamento do golpe. Ele argumenta que o plano originalmente tinha o propósito de “mostrar a bandeira estadunidense” e que os navios enviados eram para evacuar os nacionais dos EUA em caso de guerra civil. Em 1966, em depoimento prestado ao Senado, Gordon disse que o movimento que derrubou Jango era “100% brasileiro – não 99,44 – mas 100% puramente brasileiro”, e reiterou que nem ele e nem outros funcionários do governo contribuíram para a destituição do então presidente brasileiro (Green; Jones, 2009).

À esquerda, o embaixador dos EUA no Brasil, Lincoln Gordon, e à direita, o presidente brasileiro, João Goulart, em 1961. Fonte: ARQUIVO NACIONAL.

O embaixador já conspirava contra o governo de Goulart nos anos anteriores ao de 1964. Em 1962, Gordon vinha tentando convencer o Departamento de Estados dos EUA de que Jango estava elaborando um plano perigoso de estímulo ao nacionalismo. Além disso, conversava com o então presidente John Kennedy (1961-1963) e opinava que uma intervenção militar era necessária para conter a ameaça comunista no maior país da América Latina que acreditava existir. Após o assassinato de Kennedy, o embaixador manteve a discussão do assunto com o presidente Lyndon Johnson (1963-1969) (Macedo, 2014).

Além do plano militar de envio de tropas para auxiliar os militares revoltosos brasileiros, os Estados Unidos também investiram na propaganda anti-comunista no Brasil. Foi revelado que o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), criado em 1959, obtia fundos de empresas estadunidenses. O Ibad produzia e difundia propaganda contra o comunismo para rádio, TV e jornais. Além disso, o instituto captou financiamento para a campanha de mais de uma centena de parlamentares contrários às reformas e ao governo Goulart, durante as eleições legislativas e para o governo de 11 estados de 1962 (Macedo, 2014).

Ademais, sob o apoio da CIA, o Conselho das Américas, liderado por David Rockefeller, desempenhou um papel ativo na desestabilização do governo de Goulart. Empresas dos Estados Unidos, como a Hanna (uma empresa de mineração em Minas Gerais) e a ITT (International Telephone & Telegraph), operando no Rio Grande do Sul através da Companhia Energia Elétrica Rio-Grandense (CEERG), exerceram pressão sobre o governo de John Kennedy (1961-1963) para induzir o colapso econômico do Brasil, suspendendo a ajuda financeira destinada ao equilíbrio de pagamentos do país.

Conclusão

Por meio dos documentos e ligações gravadas entre autoridades dos EUA, é possível comprovar a veracidade das acusações de que os Estados Unidos participaram ativamente no processo anti-democrático que retirou Jango da presidência. O episódio brasileiro foi apenas mais um entre vários que aconteceram na América Latina, em que os estadunidenses, com a pretensão de manter sua hegemonia regional na América e, assim, conter uma ameaça soviética imaginada, apoiaram grupos rebeldes contra governos democraticamente eleitos, interferindo, dessa maneira, na escolha dos líderes desses países. O caso brasileiro revela que os Estados Unidos poderiam ir mais além do que simples apoio financeiro e logístico aos rebeldes, mas também participar ativamente, com tropas in loco, da guerra civil.

Referências

BANDEIRA, Moniz. O golpe militar de 1964 como fenômeno de política internacional. In: TOLETO, Caio Navarro de. 1964: Visões críticas do golpe. 2 ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2014.

FAUSTO, Boris. História do Brasil. ed. 12. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006.

GREEN, James N; JONES, Abigail. Reinventando a história: Lincoln Gordon e as suas múltiplas versões de 1964. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 29, nº 57, p. 67-89, 2009.

MACEDO, Danillo. Governo norte-americano participa do golpe militar no Brasil. Brasília: Agência Brasil, 31 mar. 2014.

SILVEIRA, Lorenna Burjack da. Estados Unidos e o Golpe de 1964: suporte logístico, bélico, financeiro e a
concessão de exílio político. II Seminário de Pesquisa da Pós-Graduação em História UFG, Goiânia, 2009.

VEIGA, Edison. O que foi Operação Brother Sam, apoio dos EUA ao golpe de 64. DW, 31 mar. 2024. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/o-que-foi-a-opera%C3%A7%C3%A3o-brother-sam-apoio-dos-eua-ao-golpe-de-64/a-68692686.

XAVIER, Eduardo Gabriel Moncada. Pragmatismo responsável: a política externa do governo de Ernesto Geisel (1974-1979) na África lusófona. PUC Goiás, Goiânia, 2023.

Gabriel Moncada Xavier

Estudante de Relações Internacionais e experiente em simulações da ONU. Sou curioso e quero olhar para o mundo com todas as lentes possíveis. Gosto de diplomacia, política externa, organizações internacionais e Direitos Humanos.

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