UM IMPÉRIO E UMA REPÚBLICA: O TURBULENTO INÍCIO DA RELAÇÃO BRASIL-EUA

UM IMPÉRIO E UMA REPÚBLICA: O TURBULENTO INÍCIO DA RELAÇÃO BRASIL-EUA

Presidentes Lula e Joe Biden durante reunião bilateral em Nova York. Foto: Ricardo Stuckert / PR.

Introdução

O Brasil e os Estados Unidos são as duas maiores democracias da América, possuem grande diversidade cultural e linguística e as relações bilaterais constituem-se de bases bastante sólidas e de longa data. Os Estados Unidos abrigam a maior comunidade de brasileiros no exterior, é o principal destino das exportações dos manufaturados, são os maiores investidores do Brasil e foram o primeiro Estados a reconhecer a independência do país sul-americano. Ambos os países, dessa maneira, possuem uma relação de importância recíproca e são parceiros estratégicos. Em 2024, os estadunidenses e brasileiros celebram 200 anos dessa parceria. Ao longo desse período, vários eventos importantes marcaram de forma positiva a relação entre os dois Estados, no entanto, o começo dessa amizade foi no mínimo turbulento.

Os primeiros contatos

As relações entre os dois países começaram em 1824, quando os Estados Unidos foram os primeiros a reconhecer a independência do Brasil de Portugal. Antes disso, em 1808, os EUA já tinham dado as boas-vindas à nova da sede do império português na América. Faz-se necessário frisar que os Estados Unidos, no século XIX, não eram a maior potência do planeta da época, era a Grã-Bretanha que ocupava essa posição. Os estadunidenses, até então, eram desprovidos de poder naval e militar e sua influência era eclipsada pelo concerto europeu (Inglaterra, Áustria, Prússia, Rússia e França). Com isso, o reconhecimento dos EUA era importante, mas não mais vital que o reconhecimento dos ingleses e de outros Estados europeus (Doratioto; Vidigal, 2014). Dessa forma, a ruptura com Portugal significava uma guerra contra sua antiga metrópole e, consequentemente, um conflito com a Inglaterra, aliada histórica dos portugueses (Ricupero, 2019). Após intensas negociações, mediadas pelos britânicos, um tratado de paz entre Brasil e Portugal foi assinado em 1825, que oficializou o reconhecimento da independência pelos lusitanos. Seguiu-se a recognição inglesa do novo Estado emancipado, com quem os brasileiros assinaram tratados de comércio e de abolição do tráfico de escravizados.

Os primeiros contatos com os Estados Unidos ocorreram em busca do reconhecimento por parte deste país da independência do Brasil. Por serem a primeira república do continente, os EUA tornaram-se uma inspiração para os grupos separatistas que não estavam satisfeitos com o colonialismo português. A Inconfidência Mineira (1789), que deu origem ao “herói” brasileiro Tiradentes, foi orquestrada por revoltosos inspirados pela Revolução Americana e pretendiam tornar Minas Gerais uma república independente e organizada por uma constituição baseada na dos Estados Unidos. Dois anos antes, o estudante de medicina de Coimbra, José Joaquim Maia e Barbalho, que viria a se juntar aos separatistas, encontrou-se com Thomas Jefferson, então embaixador dos EUA na França, para pedir ajuda estadunidense na organização de um levante em Minas Gerais (Pinheiro, 2024).

Outro evento mais significativo marcou a relação entre os luso-brasileiros e os vizinhos do Norte. A Revolução Pernambucana de 1817 foi um assunto que ocupou as principais autoridades políticas dos Estados Unidos, como o então presidente James Monroe (1817-1825), e os ex-chefes de Estado James Madison, Thomas Jefferson e John Adams. Em uma carta endereçada ao Marquês de Lafayette, uma importante personalidade francesa que participou da Revolução Americana, Jefferson escreveu:

Portugal, almejando uma expansão de seu domínio no sul, perdeu sua grande província do norte, Pernambuco, e não ficarei surpreso se o Brasil se revoltar em massa e enviar sua família real de volta a Portugal. O Brasil é mais populoso, mais rico, mais enérgico e tão sábio quanto Portugal (Pinheiro, 2024).

Assim que os separatistas declararam a independência de Pernambuco, rapidamente enviaram Antonio Gonçalves da Cruz aos EUA como embaixador, com o fim de extrair apoio financeiro e militar. Cruz, ao chegar, usou a imprensa local para divulgar o que estava acontecendo no norte do Brasil e entrou em contato com os principais nomes da Revolução Americana. Obviamente, Portugal protestou indignamente contra o que se passava em Pernambuco, e por meio de seu embaixador em Washington, José Correa da Silva, avisou Monroe sobre uma possível visita de Cruz e lhe dirigiu nota contra os insurgentes. De qualquer maneira, tornou-se desnecessária a tomada de decisão por parte dos Estados Unidos, se ajudariam ou não os pernambucanos revoltosos, pois Portugal conseguiu acabar com a insurreição de Pernambuco (Pinheiro, 2024).

Parreiras revolta t

A repressão à revolução pelas tropas de D. João VI foi extremamente violenta. Óleo sobre tela de Antonio Parreiras, século XX.

Os eventos que contextualizaram o processo de independência do Brasil do Reino de Portugal e Algarves tiveram alguma atenção dos vizinhos do Norte. A Revolução Liberal do Porto de 1820 pretendeu colocar limites aos poderes do rei e dar mais autonomia ao parlamento. Na época, o Brasil não possuia mais o status político de colônia, pois havia sido aderido ao Reino como extensão do território português na América. Assim, a Revolução do Porto deu esperança às províncias do norte de que poderiam receber mais autonomia e dar mais representação brasileira na Assembleia Constituinte (Pinheiro, 2024). No entanto, a decepção veio à tona quando os liberais portugueses participantes da revolução pretendiam restabelecer os laços coloniais com sua antiga colônia brasileira. Era uma contradição, segundo Ricupero (2019), pois uma revolução liberal significava a ruptura com a ideologia absolutista e o Antigo Regime, que tinham o colonialismo como parte de seu ideário.

Nos Estados Unidos, menções sobre o que estava passando no Brasil aparecem nas cartas do ex-presidente Thomas Jefferson. Em 1820, Jefferson comentou com Francis W. Gilmer, protegido de José Correa da Silva, sobre os efeitos da Revolução do Porto no Brasil. Na mesma carta, o político ainda pergunta se Correa estaria frustado com a posição de neutralidade dos Estados Unidos referente aos temas de insurreição, em especial a de Pernambuco. Jefferson escreve: “embora nossos deveres nos obriguem a desejar o sucesso desses movimentos revolucionários, eles não nos proíbem de orar por seus efeitos favoráveis em sua [de Correa] fortuna; e certamente, em espírito, ele deve seguir com eles” (Pinheiro, 2024).

Em 1821, Thomas Jefferson, mais uma vez, demonstra sua preocupação com os efeitos dos rumos da revolução liberal para o Brasil. Ele prevê a possibilidade de um levante a favor da independência após a partida de Dom João para Portugal (Pinheiro, 2024). Jefferson estava certo, pois um ano depois aconteceria a proclamação da independência e a aclamação de Dom Pedro como imperador do Brasil. Em 1822, o político recebeu uma carta de Henry Dearborn, nomeado embaixador dos EUA em Lisboa. O diplomata relata as tentativas de Dom João de recuperar os território brasileiros:

Portugal estaria indo muito bem se o governo e o povo pudessem se curar da epidemia furiosa de manter o Brasil subjugado. Eles estão esgotando seus recursos ao enviar expedições infrutíferas ao Brasil, um assunto sobre o qual considero apropriado ficar completamente em silêncio aqui (Pinheiro, 2024).

Durante esse período, não houve contatos diretos e relevantes entre as autoridades políticas dos EUA com os atores que participaram da emancipação brasileira. De qualquer maneira, os Estados Unidos queriam que o Brasil se tornasse um país independente, pois possuiam um projeto político de afastar a influência europeia para fora do continente americano, a Doutrina Monroe. A principal preocupação estadunidense era o modelo político adotado pelo Brasil, uma monarquia governada por um herdeiro sanguíneo da Coroa portuguesa.

O lento começo do relacionamento

Thomas Jefferson ja havia manifestado seu apoio informal às revoluções brasileiras que buscavam se separar dos europeus. A própria Revolução Americana significou que o ideário do Antigo Regime era ultrapassado e o colonialismo europeu deveria ser extinto. No entanto, os estadunidenses, apesar de verem como positiva a implosão do colonialismo europeu na América, preocuparam-se com os rumos que tomava o Brasil pós-emancipação.

Essa preocupação com a política imperial do Brasil foi uma das razões pelas quais os EUA decidiram manter cautela em seu relacionamento com o grande vizinho do Sul. Assim, o modelo monárquico de governo, encabeçado por um imperador de linhagem portuguesa, somado com a resistência da administração em transformar-se em uma república, ao longo do século XIX, fez com que a liderança estadunidense, e também líderes hispânicos, desconfiasse das intenções do governo do Rio de Janeiro (Ioris, 2024).

No aspecto socioeconômico, o lento começo era derivado do foco de ambos os países nos mercados europeus e nas relações diplomáticas com estes Estados. As relações comerciais, na primeira metade do século XIX, seriam igualmente lentas como no tema da política. A Inglaterra, potência hegemônica da ordem liberal, continuaria a ser a maior parceira comercial do Brasil ao longo do século, além de ser a principal influenciadora em termos de modelo de governo e ideologias econômicas (Ioris, 2024). Não é atoa que a independência tinha o fim de manter a estrutura socioeconômica anterior e aprofundar a dependência com os centros capitalistas europeus, por meio da exportação de produtos primários, produzidos com mão de obra escravista, e importação de manufaturados (Doratioto; Vidigal, 2014). É cabível dizer que a elite brasileira, somada à influência inglesa, desejava manter a economia de Antigo Regime.

A turbulência começa

A Guerra da Cisplatina ocasionou o rompimento dos laços diplomáticos entre Brasil e EUA. Em 1821, Dom João anexou ao território luso-brasileiro as terras da Banda Oriental (Uruguai), nomeando-as como Província da Cisplatina, e após a independência brasileira, a província foi incorporada ao Império do Brasil. Dom Pedro I adotou o projeto geopolítico de Portugal para sua colônia sul-americana de estabelecer o Rio da Prata como limite territorial do Brasil no sul, e recusou a devolver o território para as Províncias Unidas do Rio da Prata (futura Argentina), com sede em Buenos Aires (Doratioto; Vidigal, 2014). O Congresso de Buenos Aires, em 1825, proclama a reintegração da Banda Oriental ao território argentino e as Províncias Unidas rompem relações com o Império, que responde com uma declaração de guerra e decreta o bloqueio naval dos portos argentinos (Garcia, 2016).

O juramento popular à primeira Constituição do Uruguai, 1830, por Juan Manuel Blanes, 1872.

A guerra, então, envolveu os Estados Unidos, quando o comércio entre Buenos Aires e os estadunidenses foi prejudicado. Na costa brasileira, corsários contratados pelas Províncias prejudicavam o comércio brasileiro. Em 1827, o navio Spark com bandeira dos EUA foi capturado pela marinha imperial acusado de servir às Províncias Unidas como corsário. O incidente fez com que o representante dos Estados Unidos no Brasil, Condy Raguet, declarasse como rompidas as atividades diplomáticas entre os dois países (Doratioto; Vidigal, 2014). Este foi o evento que culminou a suspensão temporária da amizade Brasil-EUA, mas ocorreram também vários incidentes envolvendo ambos os Estados na bacia do Prata, tendo em vista a histórica oposição dos Estados Unidos relativa à política externa imperial na Banda Oriental (Barbosa, 2024). As relações entre os dois países foram normalizadas após a assinatura do Tratado de Amizade, Navegação e Comércio, em 1828 (Garcia, 2016).

A Amazônia também se tornou tema de tensão entre brasileiros e estadunidenses. Em 1826, os Estados Unidos organizaram uma expedição para navegar pelo rio Amazonas, mas ao chegar em Belém, a companhia foi barrada pelas autoridades brasileiras (Doratioto; Vidigal, 2014). Os EUA objetivavam, ao fazer pressão para que o Brasil cedesse permissão para navegação internacional na Amazônia, a criação de uma República do Amazonas com a transferência para o norte do rio parte da população negra, algo proposto por Abraham Lincoln. Em outras palavras, os Estados Unidos agiam para colonizar a Amazônia (Barbosa, 2024). Em 1849, Sérgio Teixeira de Macedo, então embaixador brasileiro em Washington, avisou o chanceler Paulino José Soares de Sousa que uma eventual abertura daquele rio poderia contribuir para a imigração de estadunidenses e, posteriormente, seriam capazes de declararem a independência daquele território e se anexarem aos Estados Unidos, como ocorrido no Texas, antigo território mexicano (Doratioto; Vidigal, 2014). Em 1853, o governo imperial, ciente das pretensões dos EUA na Amazônia, apenas permitiu a navegação para o países ribeirinhos superiores com quem tinha interesse de estreitar relações. Assim, o Brasil não cedeu às pressões e o permaneceu fechado para os Estados Unidos.

A guerra da Tríplice Aliança com o Paraguai, em 1865, foi o terceiro grande momento para o atrito entre brasileiros e estadunidenses no século XIX. Os EUA se envolveram na guerra quando estimularam o conflito e ofereceram armas ao governo paraguaio, e até ofereceram mediação, o que foi recusado pelo Brasil. Os objetivos dos estímulos por parte das ex-Treze Colônias era evitar uma presença mais forte dos brasileiros na região e também uma resposta à posição ambígua do Brasil na Guerra de Secessão. A diplomacia brasileira foi bastante incisiva em relação à participação indireta dos Estados Unidos, ameaçando ainda rompimento das relações diplomáticas (Barbosa, 2024).

Conclusão

A relação Brasil-EUA ganhou mais estabilidade no final do século, a partir de 1870, quando Dom Pedro II fez uma visita bem sucedida aos Estados Unidos. O relacionamento entre os dois, ademais, ganhará maior importância pelo crescimento do comércio bilateral, especialmente pelo importante mercado que era os EUA para o café brasileiro. Na República, o Barão do Rio Branco, chefe da diplomacia do Brasil entre 1902 e 1912, executará uma bem-sucedida política de aproximação com os Estados Unidos, o que traduzirá em um bom relacionamento com o país no futuro. Assim, ainda que o passado da amizade dos dois Estados seja turbulenta, os Estados Unidos, levando em consideração suas ações e pretensões que violaram a soberania brasileira no século XX e no século XXI, se tornou um importante parceiro político-comercial para o Brasil, com quem o país precisa manter uma boa relação, tendo em vista o papel hegemônico que exercem os estadunidenses.

Referências

BARBOSA, Rubens. Uma parceria bicentenária: passado, presente e futuro das relações Brasil-Estados Unidos. Fernanda Petená Magnotta (org.). Brasília: FUNAG, 2024.

DORATIOTO, Francisco; VIDIGAL, Carlos Eduardo. História das Relações Internacionais do Brasil. ed. 1. Editora Saraiva Uni, 2014.

GARCIA, Eugênio Vargas. Cronologia das Relações Internacionais do Brasil. 3. ed. Editora Contraponto, 2016.

IORIS, Rafael R. Uma parceria bicentenária: passado, presente e futuro das relações Brasil-Estados Unidos. Fernanda Petená Magnotta (org.). Brasília: FUNAG, 2024.

PINHEIRO, Marcos Sorrilha. Uma parceria bicentenária: passado, presente e futuro das relações Brasil-Estados Unidos. Fernanda Petená Magnotta (org.). Brasília: FUNAG, 2024.

RICUPERO, Rubens. A diplomacia na construção do Brasil 1750-2016. 1 ed. Rio de Janeiro: Versal Editores, 2017.

Gabriel Moncada Xavier

Estudante de Relações Internacionais e experiente em simulações da ONU. Sou curioso e quero olhar para o mundo com todas as lentes possíveis. Gosto de diplomacia, política externa, organizações internacionais e Direitos Humanos.

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