DOIS GIGANTES NORTE-AMERICANOS E SUA RELAÇÃO PECULIAR

DOIS GIGANTES NORTE-AMERICANOS E SUA RELAÇÃO PECULIAR

A comparação entre o Canadá e os Estados Unidos tem sempre resultados, no mínimo, muito curiosos.

Dois países de origens coloniais semelhantes, aspectos culturais marcantes e com indicadores de qualidade de vida praticamente idênticos, além de localização e extensão territoriais bem próximas, o Canadá e os Estados Unidos da América (EUA) não deixam de destoar bastante um do outro em aspectos peculiares.

Canadá acima (roxo) e Estados Unidos abaixo (laranja)

Primeiramente, as extensões populacionais das duas nações não chegam nem perto de serem comparáveis: enquanto os EUA contam com a 3ª maior população do planeta, com massivos 331 milhões de habitantes (Worldometers, 2020), ficando atrás apenas da China e da Índia, o Canadá inteiro contém pouco menos que a população do estado de São Paulo, contando com 37 milhões de habitantes por todo o extenso território (Worldometers, 2020). Embora se possa argumentar que parte significativa da porção terrestre canadense é um deserto de gelo inabitável, os números demográficos do país ainda impressionam para baixo se comparados com os do vizinho abaixo.

O aspecto cultural é o que mais chama a atenção: ao mesmo tempo em que ambos os países norte-americanos têm tradições culturais de natureza idêntica, eles diferem bastante na cultura bélica e no louvor por armas, por exemplo, e isto reflete nas relações exteriores de ambos os países. Enquanto o congresso americano aprovou a participação do país em doze guerras desde sua fundação até a Guerra do Iraque em 2003, o Canadá se recusou a participar da intervenção no Iraque promovida pelos Estados Unidos, bem como possui normas muito mais estritas quanto ao uso de armas de fogo.

Um país de ambiente político mais social-democrata e moderado, e com menos convulsões sociais de natureza étnica e política, que seu vizinho ao sul, o Canadá também tem políticas muito menos restritivas quanto à migração. Logicamente, o número bem menor de pessoas em solo canadense que estadunidense é um fator determinante, mas, nem assim o país quase ao Pólo Norte global deixa de ser muito mais progressista que seu vizinho.

Apenas a título de comparação: você sabia que o multiculturalismo é uma política de Estado adotada pelo governo canadense desde os anos 80?

Enquanto muitos países sofrem para alcançar, ou mesmo compreender exatamente o multiculturalismo, o Canadá trata a mistura étnico-cultural como uma política de Estado.Um dado sobre isso é a maior cidade do país, Toronto, localizada na também mais populosa província de Ontário, impressiona por apresentar: aproximadamente 52% da população composta por pessoas não-brancas, em contraponto com 49% que se declaram brancos.

Em paralelo, temos os Estados Unidos, com cisões raciais muito profundas, atestadas não só pelos recentes protestos, causados pela morte chocante de um homem negro chamado George Floyd nas mãos de um policial branco, mas também historicamente. Desde a Guerra Civil americana, passando pelas Leis de Jim Crow[1] e chegando até os dias de hoje ainda há a necessidade da existência de movimentos pelo cumprimento dos direitos civis para minorias raciais como o “Black Lives Matter” (traduzindo para o português: Vidas Negras Importam).

“Situações como esta são apenas o culminar de inúmeras tensões acumuladas ao longo de séculos: discriminação e exploração, assimetrias económicas e sociais, confrontos étnicos, etc.” (MANCELOS, 2003, p.73)

Contudo, o Canadá nem sempre adotou oficialmente essa postura de valorização de múltiplas culturas. Existe no país um histórico de luta das minorias étnicas por trás da instituição do multiculturalismo. E esta luta começa nas próprias origens truncadas de uma nação ainda muito ligada a seus colonizadores britânicos, no final do século XIX. A própria independência da Confederação Canadense, em 1897, foi mais econômica do que política: instituiu-se um Senado com pouca participação democrática representativa, sem contar que todas as leis sancionadas ainda deviam passar pelo crivo da Coroa Britânica. (LOPES, 2007)

Por consequência desta origem engessada no colonialismo britânico, por muito tempo o Estado canadense jogou para escanteio seus habitantes falantes da língua francesa, resistindo em reconhecer o status de Estado bilíngue que o Canadá sempre teve à revelia do que era dito oficialmente. Isto sem contar a resistência em conceder cidadania canadense aos povos autóctones indígenas, que ali já habitavam antes dos colonos britânicos e franceses, até meados dos anos 1960.

“Estes problemas mostram como, pelo menos constitucionalmente, ignorou-se que o Canadá era um Estado multinacional.” (LOPES, 2007, p.336)

Foi também nos anos 1960 que a luta dos francófonos[2] e dos povos indígenas por reconhecimento se intensificou: eles não estavam mais satisfeitos com a concessão de cidadania canadense, e o reconhecimento de que o Canadá era uma nação bilíngue, eles queriam que o governo reconhecesse que o novo Estado norte-americano era um Estado multicultural. A luta continuou até que em 1982, quando o governo canadense promulgou sua primeira constituição nacional, os clamores dos grupos minoritários foram atendidos: o Canadá era, oficialmente, um Estado multicultural. (LOPES, 2007)

Já a relação dos EUA com seu multiculturalismo é bem mais complicada que a do vizinho ao norte. A nação mais poderosa das Américas também é lar de diferentes etnias, religiões e uma cultura cada vez mais diversificada graças ao alto fluxo de migração (principalmente vinda da América Latina), que o país recebe anualmente. Porém, a relação do Estado americano com essa característica multicultural é bem mais convulsionada que a do Canadá tanto historicamente quanto nos dias de hoje. (MANCELOS, 2003)

O fato dos EUA terem sido fundados por colonos americanos que absorveram os ideais puritanos e anglo-saxônicos dos seus colonizadores britânicos, ao mesmo tempo em que expulsaram esses mesmos colonizadores com um sentimento bastante republicano de pró-democracia e liberdade, faz com que os EUA tenham uma identidade nacional bastante solidificada em um grupo específico, fazendo com que surjam conflitos com os vários outros grupos culturais:

“Assim, acrescenta que “a alma do país (Estados Unidos) permaneceu branca, anglosaxônica e protestante […]” (SEMPRINI apud LOPES, 2007, p.334)

A partir de tudo isso, podemos inferir que, apesar de ambos Canadá e EUA terem sido colonizados pelo mesmo reino e hoje em dia terem níveis de desenvolvimento semelhantes, a identidade nacional e cultural de ambos se solidificaram de maneiras bem diversas: o Canadá se posiciona hoje como quiçá a maior potência econômica pró-multiculturalista do mundo, sendo um dos maiores incentivadores da política migratória na atual globalização. Já os EUA são a nação multicultural mais numerosa em população do mundo e a cada ano que passa as convulsões sociais em razão do multiculturalismo continuam sem solução.

Ok, o aspecto cultural já foi. E politicamente?

Com as diferenças culturais entre os dois gigantes da América do Norte, bem como tradições políticas bastante distintas, na forma de uma monarquia parlamentarista sujeita a Comunidade de Estados Britânica e uma república presidencialista cuja única relação com a monarquia do Reino Unido é diplomática, a pergunta que paira no ar é: como são as relações políticas, econômicas e diplomáticas dos dois países? Partindo da premissa que apresentamos até agora, alguém poderia assumir que a relação entre ambos deve ser conturbada e cheia de entraves. Porém, a realidade é muito diferente do que se pode vir a pensar.

 As relações bilaterais entre os dois países é uma das mais estreitas que existem e isso se traduz em números. Segundo dados do Departamento de Estado dos EUA (2020), o comércio bilateral entre Canadá e EUA se traduz em uma troca de bilhões de dólares anuais de bens e serviços (só em 2019 foram 725 bilhões de dólares), bem como o fluxo de pessoas entre de 400.000 – por dia! Para além da cooperação econômica bilateral, EUA e Canadá também têm o costume de atuar em consonância um com o outro nos órgãos multilaterais, tais como a Organização das Nações Unidas (ONU), Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), Grupo dos 7 (G7), Grupo dos 20 (G20) e por aí vai.

Como já mencionado anteriormente, em algumas situações ambos os países tomam posições discordantes – como foi o caso da Guerra do Iraque. Porém, o usual nas relações entre ambos é que eles tomem posições bem parecidas em decisões de política e economia internacional. Um bom exemplo recente é o do banimento da empresa chinesa Huawei da implementação da tecnologia 5G no Canadá feita pelo Primeiro-Ministro canadense Justin Trudeau, que, apesar das divergências ideológicas com Donald Trump, alinhou-se com o presidente dos Estados Unidos nesta situação de tensão comercial e de acusações de espionagem contra a China.

Conclusão?

Apesar das diferenças culturais diversas entre ambos, Canadá e Estados Unidos, bem como uma diferença notória de tradição política, no fim do dia os dois gigantes da América do Norte mantêm laços políticos de proximidade e amizade como talvez nenhuma outra dupla de países no mundo, o que torna esta relação, no mínimo, inusitada.

 

 

FONTES

CANADA Population. Worldometers, 2020. Disponível em: <https://www.worldometers.info/world-population/canada-population/ > Acesso em: 10 dez 2020.

CENSUS Profile. Statistics Canada, 2016. Disponível em: <https://www12.statcan.gc.ca/census-recensement/2016/dp-pd/prof/details/page.cfm?Lang=E&Geo1=POPC&Code1=0944&Geo2=PR&Code2=35&Data=Count&SearchText=toronto&SearchType=Begins&SearchPR=01&B1=All&TABID=1> Acesso em: 10 dez 2020.

CTVNEWS.CA STAFF. Saying ‘no’ to Iraq War was ‘important’ decision for Canada: Chretien. CTV News, 2013. Disponível em: <https://www.ctvnews.ca/politics/saying-no-to-iraq-war-was-important-decision-for-canada-chretien-1.1192878> Acesso em: 10 dez 2020.

FACTMONSTER STAFF. The United States at War. Factmonster, 2017. Disponível em: <https://www.factmonster.com/world/war/united-states-war#:~:text=From%20the%20American%20Revolution%20to,fought%20in%2012%20major%20wars.> Acesso em: 10 dez 2020.

LJUNGGREN, David. Canada has effectively moved to block China’s Huawei from 5G, but can’t say so. Reuters, 2020. Disponível em : <https://www.reuters.com/article/us-canada-huawei-analysis-idUSKBN25L26S > Acesso em: 10 dez 2020.

UNITED States Population. Worldometers, 2020. Disponível em: <https://www.worldometers.info/world-population/us-population/#:~:text=the%20United%20States%202020%20population,(and%20dependencies)%20by%20population. > Acesso em: 10 dez 2020.

LOPES, Ana Maria D’Ávila. Multiculturalismo: conciliando diversidade cultural e identidade nacional no Canadá. NOMOS: Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFC, Fortaleza, v.27, 2007, p.329-340.

MANCELOS, João de. Temas e dilemas do Multiculturalismo nos Estados Unidos da América. Máthesis, Universidade Católica Portuguesa, Viseu, v.12, 2003, p.73-85.  

UNITED States Population. Worldometers, 2020. Disponível em: <https://www.worldometers.info/world-population/us-population/#:~:text=the%20United%20States%202020%20population,(and%20dependencies)%20by%20population. > Acesso em: 10 dez 2020.

U.S. Relations with Canada. U.S. Department of State, 2020. Disponível em: <https://www.state.gov/u-s-relations-with-canada/#:~:text=The%20United%20States%20and%20Canada%20enjoy%20the%20world’s%20most%20comprehensive,nearly%20%242%20billion%20per%20day.> Acesso em: 10 dez 2020.

 

[1] Leis de segregação racial promulgadas nos EUA no final do século XIX e que valeram até os anos 60 do século XX, quando foram extintas

[2] Falantes da língua francesa

Letícia Martins Lima

Internacionalista em formação pela Universidade Federal de Goiás, gosta da área geral de Relações Internacionais, mas tem interesse mais específico nas áreas de Política Internacional e Diplomacia.

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