ABIN SOB SUSPEITA: SUPOSTA ESPIONAGEM REACENDE CRISE DIPLOMÁTICA COM O PARAGUAI
Introdução
A recente denúncia de que a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) teria conduzido operações de espionagem do Paraguai gerou uma grave crise diplomática entre os dois países. Diante da suspeita de que agentes brasileiros acessaram ilegalmente dados sobre as negociações do Anexo C do Tratado de Itaipu, surgiu uma ameaça ao que Celso Amorim chama de relação de confiança estabelecida na região (Celso Amorim, 2022). Tendo isso em vista, o presente artigo se propõe a apresentar as nuances que envolvem o caso e o que está em jogo para a política externa brasileira com a repercussão negativa do ocorrido.
O ANEXO C
Às margens do Rio Paraná, ergue-se a Usina Hidrelétrica de Itaipu, um símbolo da cooperação entre Brasil e Paraguai. É a segunda maior do mundo em capacidade instalada e a maior em termos de produção acumulada (Paes; Fernandes; Pereira; Bezerra, 2019) Por anos, desacordos sobre o uso compartilhado das águas na região geraram tensões entre os dois países. Esses impasses só foram superados com a assinatura do Tratado de Itaipu, 1973, que viabilizou a construção da usina binacional. O acordo estabeleceu igualdade de direitos e obrigações no aproveitamento hidrelétrico dos recursos hídricos do Rio Paraná, no trecho que vai de Salto Grande de Sete Quedas, ou Salto de Guaíra, — área anteriormente marcada por litígios —, até a Foz do Rio Iguaçu (Mesquita; Marinho; Carneiro, 2023; Nascimento; Parisi; Weffort; Peters, 2013).
Por sua vez, o Tratado de Itaipu estabeleceu as bases jurídicas e técnicas para a construção e operação da usina. Além de seus 25 artigos, que definem as linhas gerais do acordo, inclui anexos complementares que tratam do estatuto da entidade binacional (Anexo A), das instalações destinadas à produção de energia elétrica (Anexo B) e das bases financeiras e de prestação dos serviços de eletricidade da Itaipu (Anexo C). No centro das discussões que envolvem a espionagem do Brasil contra o Paraguai está justamente a questão relacionada ao último anexo .
Isso deve-se ao fato de que a construção da Usina exigiu um investimento em torno de US$ 27 bilhões, além de US$100 milhões de capital social. Esse montante foi viabilizado por meio de um contrato de financiamento com prazo de 50 anos, cuja quitação ocorreu em 2023. Inicialmente, Brasil e Paraguai pretendiam utilizar toda a energia produzida ao longo desse período, tanto é que o pagamento da amortização foi baseado nessa expectativa. No entanto, como o consumo paraguaio revelou-se significativamente inferior ao do parceiro brasileiro, ficou acordado que o excedente da cota do Paraguai seria vendido ao Brasil (Paes; Fernandes; Pereira; Bezerra, 2019).
“As disposições do presente Anexo serão revistas, após o decurso de um prazo de cinquenta anos a partir da entrada em vigor do Tratado, tendo em conta, entre outros aspectos, o grau de amortização das dívidas contraídas pela ITAIPU para a construção do aproveitamento e a relação entre as potências contratadas pelas entidades de ambos países” (BRASIL, 1973).
Tendo isso em vista, as negociações do Anexo C do Tratado de Itaipu deveriam ter sido concluídas até 2023, mas enfrentaram uma série de obstáculos. Em 2019, o governo brasileiro designou uma equipe técnica para elaborar um plano de renegociação, cujo prazo foi prorrogado. A situação se agravou quando se tornou público que ocorreram tratativas sigilosas entre 2019 e 2022 a favor do Brasil. O resultado disso foi uma crise política no país vizinho, que levou à renúncia do ministro das Relações Exteriores, Luis Castiglioni, e do presidente da Administração Nacional de Eletricidade (ANDE), Pedro Ferreira. No Governo Bolsonaro, os presidentes dos dois países chegaram a discutir o tema, mas sem avanços (Mesquita; Marinho; Carneiro, 2023).
A pressão paraguaia pelo aumento do valor pago pela energia e a sua intenção de vender sua cota a terceiros — prática hoje vedada pelo tratado — têm dificultado o avanço das negociações. Contudo, o cenário, já delicado, ganhou um novo elemento dificultador: operações de espionagem conduzidas por agentes brasileiros para obter as informações sensíveis na negociação das tarifas de Itaipu. Isso reacendeu as tensões e colocou suspeitas sobre a lisura do processo. Na imprensa paraguaia, Itaipu já é taxada como o reflexo do subimperialismo do Brasil na região. Esse episódio marca uma nova fase de desconfiança e abre discussões sobre o papel da inteligência estatal brasileira, sob a égide da ABIN, que será tratada a seguir, antes do artigo avançar sobre os detalhes da espionagem.
A ABIN
A Agência Brasileira de Inteligência, comumente chamada de ABIN, é o órgão central do Sistema Brasileiro de Inteligência (SISBIN), responsável por coordenar as atividades de inteligência do Brasil. Criada a partir da Lei 9.883/1999, é encarregada por “fornecer à Presidência da República informações e análises estratégicas, oportunas e confiáveis para subsidiar o processo de decisão” (ABIN, 2025), no que tange à segurança do Estado e da sociedade (ABIN, 2024).
Durante seus 26 anos de existência, a ABIN tem desempenhado um papel importante na proteção física e cibernética do território nacional. Diante de novos cenário e desafios cada vez mais complexos, tem sido exigido da agência e do SISBIN uma reformulação abrangente, que envolve o redirecionamento, reorganização e reposicionamento de suas estratégias. Essa demanda, que parte diretamente do Presidente da República, inclui a revisão dos objetivos estratégicos, a melhoria da eficiência operacional, e a integração com outras áreas de segurança e defesa (ABIN, 2024).
Apesar das mudanças nos processos e abordagens, a estrutura organizacional da ABIN permanece essencialmente a mesma. Contudo, os cargos de alto escalão são formados por indicação do Presidente da República e constantemente atualizados, refletindo jogos de poder e interesse. Atualmente, o comando da agência é exercido pelo Diretor Geral — frequentemente chamado de “número 1” —, sob a responsabilidade de Luis Fernando Corrêa, e pelo Diretor-Adjunto, o “número 2”, exercido por Rodrigo Aquino, que assumiu o posto após exoneração de Alessandro Moretti, envolvido em espionagem ilegal durante governo de Jair Messias Bolsonaro.
No centro das decisões e políticas da instituição, esses dois cargos costumam ser os principais alvos de investigações quando há suspeitas de irregularidades, como no caso recente de operações ilegais de espionagem contra o Paraguai.
A ESPIONAGEM
O Brasil e o Paraguai dividem além de fronteiras, uma longa história de cooperação, que inclui a construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu. Apesar das assimetrias de poder, ambos países mantêm um relacionamento estável através de canais diplomáticos consistentes. No entanto, o recente escândalo envolvendo supostas operações clandestinas de coleta de informações por parte de agentes da ABIN representou um episódio sensível nas relações entre os dois países, provocando tensões diplomáticas e ascendendo o debate sobre os limites da inteligência estatal. O artigo avança, então, buscando esclarecer os fatos que estão postos até então.
O caso veio à tona após o portal de notícias UOL divulgar que a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) teria executado, ainda no governo Bolsonaro e sob a gestão do ex-diretor Alexandre Ramagem, um esquema para hackear autoridades do governo paraguaio. Contudo, a chamada Operação Paraguai prosseguiu com o aval de Luiz Fernando Corrêa. Segundo depoimentos exclusivos de servidores da ABIN prestados à Polícia Federal, a captura de dados teve como alvo a cúpula política do país vizinho. As ações teriam ocorrido estrategicamente antes do fechamento de um novo acordo sobre os valores pagos ao Paraguai pela venda de energia de Itaipu (Uol Notícias, 2025).
Através dos depoimentos, foi revelada a utilização do programa Cobalr Strike na invasão de computadores de autoridades paraguaias. A operação ocorreu fora do Brasil, em três viagens para Chile e Panamá, onde foram montados servidores virtuais para disparar os ataques contra o Congresso, Senado, Câmara e Presidência da República paraguaia. Ao menos cinco pessoas foram alvo da ação, que tinha como objetivo acessar senhas e dados a fim de acessar informações sensíveis relacionadas à negociação em que o Brasil pressionava pelo aumento da energia excedente fornecida pelo país vizinho (Uol Notícias, 2025).
“O Cobalt Strike era uma ferramenta utilizada para o desenvolvimento de um artefato de intrusão em computadores do governo paraguaio para dados relacionados à negociação bilateral de Itaipu […] O objeto da operação era a obtenção dos valores que seriam negociados do anexo C dos valores de venda de energia produzida por Itaipu”, afirmou o agente da Abin à PF.” (UOL, 2025)
Como é de se esperar, a notícia foi recebida com maus olhos pelo Paraguai, gerando um mal-estar diplomático imediato. O chanceler Rubén Ramírez Lezcano entregou formalmente à promotora do Ministério Público do Paraguai, Irma Llano, informações sobre o caso, que passou a ser investigado por possíveis crimes de invasão de sistemas e vazamento de dados. Paralelamente, o vice-ministro das Relações Exteriores, Víctor Verdún, entregou uma carta ao embaixador brasileiro em Assunção, José Antonio Marcondes, solicitando esclarecimentos. Em um gesto simbólico de descontentamento, o embaixador paraguaio em Brasília, Juan Ángel Delgadillo, foi convocado de volta ao país para consultas (CNN Brasil, 2025). Esse ato é especialmente preocupante em termos diplomáticos, porque indica um estremecimento significativo das relações bilaterais (G1, 2024).
“A retirada de embaixador configurou, em algum momento, o aceno prévio à declaração de guerra, porém, com o tempo, esse tipo de situação foi se tornando mais comum na diplomacia e passou a ser um primeiro passo antes de uma eventual ruptura diplomática e representa mais uma reprimenda pública a alguma posição do outro país do que qualquer outra coisa” (Profa. Carolina Silva Pedroso para G1, 2025).
Em contrapartida, a tentativa da parte brasileira foi minimizar os danos. O Itamaraty afirmou que o governo somente tomou ciência do fato em março de 2023 e, imediatamente, determinou a suspensão da operação. Como gesto de compromisso com a cooperação bilateral, a ABIN enviou um agente ao Paraguai, enquanto o ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, esteve com o chanceler paraguaio, Ruben Ramírez, em Buenos Aires (Folha de São Paulo, 2025). Contudo, não houve escapatória para o alto escalão da agência: o atual diretor, Luiz Fernando Corrêa, e o ex-adjunto, Alessandro Moretti, prestaram depoimento no dia 17 de abril na sede da Polícia Federal, em Brasília. Ambos foram ouvidos simultaneamente, porém em salas separadas — procedimento comum para evitar interferências (G1, 2025).
Imagem 1: Encontro de chanceleres para negociação do Anexo C
Apesar do conteúdo das oitivas não ter sido divulgado, é possível que a Operação Paraguai integre a investigação sobre esquema de espionagem dentro da agência, sob o nome de ABIN Paralela. Ainda é cedo para fazer afirmações definitivas, mas a expectativa é que a Polícia Federal conclua o relatório e tome uma decisão sobre possível indiciamento de Corrêa e Moretti na próxima semana.
CONCLUSÃO
O escândalo envolvendo a espionagem da ABIN às autoridades paraguaias estremece as relações entre dois países historicamente aliados, como o Brasil e o Paraguai. Nesse sentido, o episódio, diretamente vinculado à negociação sobre o Tratado de Itaipu, sobretudo no que tange seu Anexo C, ameaça a confiança necessária para a continuidade das discussões. A ABIN, já marcada por outros casos de espionagem, sai com uma sua imagem profundamente afetada. Diante da gravidade da situação, é essencial que os esforços diplomáticos sejam intensificados para garantir a estabilidade das relações bilaterais e que as investigações sejam conduzidas com rigor para esclarecer os fatos.
REFERÊNCIAS
ABIN. A ABIN. 2025. Disponível em: https://www.gov.br/abin/pt-br/institucional/a-abin. Acesso em: 01 abr. 2025.
ABIN. Cartilha Institucional. Brasília: ABIN, 2023. Disponível em: https://www.gov.br/abin/pt-br/centrais-de-conteudo/cartilha-institucional-1/Cartilha%20Institucional%20Portugues. Acesso em: 01 abr. 2025.
AMORIM, Celso. Entrevista: Celso Amorim e os “Laços de Confiança — O Brasil na América do Sul” por Saraiva Educação. Saraiva Educação, 2022. Disponível em: https://conteudo.saraivaeducacao.com.br/autores/celso-amorim/. Acesso em: 31 mar. 2025.
BRASIL. Tratado entre a República Federativa do Brasil e a República do Paraguai para o Aproveitamento Hidrelétrico dos Recursos Hidráulicos do Rio Paraná, pertencentes em condomínio aos dois países, desde e incluindo o Salto de Sete Quedas ou Salto Grande de Guairá até a foz do Rio Iguaçu. Tratado firmado em 26 de abril de 1973. Brasília: Ministério das Relações Exteriores, 1973. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/antigos/d72707.htm. Acesso em: 04 abr. 2025.
CNN BRASIL. Governo paraguaio entrega informações de suposta espionagem para MP do país. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/governo-paraguaio-entrega-informacoes-de-suposta-espionagem-para-mp-do-pais/. Acesso em: 06 abr. 2025.
CORRÊA, Luiz Fernando. 25 anos de ABIN: redirecionamento, reorganização e reposicionamento. In: CORRÊA, Luiz Fernando; RODRIGUEZ, Julio C.; BEDRITICHUK, Rodrigo Ribeiro. Inteligência na democracia: desafios e perspectivas para a agência brasileira de inteligência. Brasília: Agência Brasileira de Inteligência (Abin), 2024. p. 17-42. Disponível em: https://repositorio.enap.gov.br/bitstream/1/8217/1/ABIN_Inteligencia_na%20_Democracia.pdf. Acesso em: 02 abr. 2025.
FOLHA DE SÃO PAULO. Abin manda agente ao Paraguai para minimizar crise sobre espionagem. 2025. Disponível em: https://marreta.pcdomanual.com/p/https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2025/04/abin-manda-agente-ao-paraguai-para-minimizar-crise-sobre-espionagem.shtml. Acesso em: 07 abr. 2025.
G1. Diretor da Abin deixa PF após mais de 5 horas na sede; ex-número 2 segue prestando depoimento. 2025. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2025/04/17/diretor-e-ex-numero-2-da-abin-chegam-a-pf-para-depoimento-sobre-suspeitas-de-espionagem-ilegal.ghtml. Acesso em: 17 abr. 2025.
G1. O que significa convocar um embaixador de volta? Entenda o caso da Venezuela. 2024. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2024/10/30/o-que-significa-convocar-um-embaixador-de-volta-entenda-o-caso-da-venezuela.ghtml. Acesso em: 06 abr. 2025.
MESQUITA, Marcos; MARINHO, Nicolly; CARNEIRO, Camilo Pereira. A geopolítica da energia na fronteira Brasil-Paraguai: O tratado de Itaipu. Revista (Re)Definições das Fronteiras, Foz do Iguaçu, v. 1, n. 2, p. 58-73, jun. 2023. Disponível em: https://journal.idesf.org.br/index.php/redfront/article/view/53/62. Acesso em: 08 abr. 2025.
PAES, Carlos Eduardo; FERNANDES, Gláucia; PEREIRA, Guilherme; BEZERRA, Luiz Roberto. Anexo C do Tratado de Itaipu – revisão das bases financeiras da tarifa de suprimento de energia. Disponível em: 2019. Acesso em: 10 abr. 2025.
UOL NOTÍCIAS. Sob Lula, Abin fez ação hacker contra governo do Paraguai. 2025. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/colunas/aguirre-talento/2025/03/31/sob-lula-abin-fez-acao-hacker-contra-governo-do-paraguai.htm. Acesso em: 05 abr. 2025.
