BIDEN VS PUTIN: CAUSAS DO EMBATE RUSSO-AMERICANO
Acompanhando o noticiário internacional ao longo das primeiras semanas de junho de 2021, foi possível se deparar com manchetes familiares aos leitores interessados por política internacional desde o início da década de 2000. Temos, mais uma vez, conflitos de interesses com direito a incidentes diplomáticos entre a Federação Russa e os Estados Unidos da América (EUA). Desta vez, a troca de acusações – nem sempre tão cordiais – foi entre Vladimir Putin (2012-) e o recém-eleito presidente americano, Joe Biden (2021-).
O motivo? Biden acusa a Rússia de perpetrar ataques cibernéticos contra os Estados Unidos com o objetivo de interferir em seus assuntos internos, como, por exemplo, as eleições gerais de 2020. Já do lado russo, Putin acusa os EUA de financiar a oposição de seu país contra ele com o intento de tirá-lo do cargo e intervir na política russa. A tensão atingiu seu ápice com a expulsão de diplomatas promovida pelos dois países. Esse embate só foi ter uma resolução temporária após o encontro entre os líderes em Genebra no dia 16 de junho de 2021 (MARS e SAHUQUILLO, 2021).
Não é de hoje, contudo, que trocas conflituosas entre a Federação Russa e os EUA ocorrem. Partindo da ascensão de Putin ao poder na Rússia, os conflitos são recorrentes, seja durante governos Republicanos, ou Democratas[1], como é o caso atual. Embora o motivo superficial dos embates varie, há questões permanentes e mais profundas que cercam essa relação antagônica, das quais trataremos nesse artigo.
Breve histórico da relação EUA x Rússia
Desde que as relações bilaterais entre Estados Unidos e Rússia tiveram início no século XIX, a lógica diplomática entre ambos se dá em um movimento pendular (ou seja, um vai-e-vem) de aproximação e de tensão (SENHORAS, 2014). Em um primeiro momento, no século XIX, EUA e Rússia perceberam uma convergência de seus interesses geoestratégicos, o que exigia cooperação entre os países enquanto potências regionais e globais.
Porém, desde a Revolução Russa (1917) e da formação da União Soviética (URSS) em 1922, os EUA passaram a enxergar a ascensão de um estado socialista no cenário mundial como ameaça ao seu projeto de poder hegemônico. Logo, quando os interesses em comum entre EUA e URSS se esgotaram com a derrota do Eixo[2] na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), o país norte-americano voltou seus esforços diplomáticos e militares contra a URSS. A partir disso, teve início o conflito conhecido como Guerra Fria (1945-1991), o ápice histórico da tensão nas relações entre EUA e Rússia (VIZENTINI, 2003).
A partir de 1991: Nova Ordem Mundial?
Com a queda da URSS e o fim da Guerra Fria em 1991, os Estados Unidos projetaram-se ao mundo como a única grande potência hegemônica restante. Enquanto isso, a Rússia assistiu a sua vertiginosa perda de poder e influência regionais e internacionais, que só viriam a ser parcialmente recuperados a partir da primeira eleição de Vladimir Putin para presidente, no ano de 2000:
Nessa nova “fase”, os Estados Unidos consolidaram sua posição de hegemon do sistema internacional. Após a dissolução da União Soviética em 1991, essa hegemonia americana parecia carecer de um novo grande contraponto. Todavia, após a reorganização russa liderada por Putin no século XXI, os russos vêm reocupando essa posição de “principal contrapeso” americano, papel que assumiu durante boa parte do século XX (FIORI, 2020, p.06).
Ao contrário das expectativas de muitos analistas internacionais na década de 1990, a vida dos EUA como potência hegemônica não tem sido o caminho fácil que era esperado pelas lideranças americanas. Ellen Woods (2004), por exemplo, argumenta que, ao mesmo tempo em que o sistema de Estados múltiplos é benéfico à manutenção do capitalismo, ele também traz preocupações relacionadas ao controle do poder por parte da potência hegemônica. Por causa disso, os EUA investiram em um poderio militar enorme, que, segundo a autora, possui dois objetivos: 1 – intimidar qualquer um que queira tomar uma ação arriscada contra o poder americano, seja amigo ou inimigo e 2 – demonstrar esse poderio através de invasões militares em países bode-expiatório, como o Afeganistão em 2001 ou o Iraque em 2003. Por estas razões, o então presidente George Bush (2001-2008) criou a doutrina da “guerra preventiva”[3] (p.59).
Mesmo com o uso exaustivo da lógica wilsoniana de política externa por parte dos EUA[4], José Fiori (2020) diz que a perda de poder de influência estadunidense é cada vez mais notável, sendo as ações russas as principais responsáveis por isso. Ao intervir militarmente na Guerra da Síria (2011-) contra o Estado Islâmico, o país euroasiático rompeu com o “monopólio moral” que os estadunidenses alegavam ter para policiar o mundo, uma noção que parte do ideário wilsoniano adotado após a Segunda Guerra Mundial (p.10).
EUA VS Rússia: Guerra Fria 2.0?
Com a quebra da hegemonia americana, houve um retorno à lógica de política externa de auto-proteção cínica e realista por parte dos EUA (FIORI, 2020). Além disso, as ações externas da Rússia se tornaram cada vez mais independentes do Ocidente e orientadas por um pragmatismo nacionalista voltado, em grande parte, para a recuperação de zonas de influência perdidas com a extinção da URSS (POMERANZ, 2017). Assim, os interesses de ambos países ficaram tão distantes e antagônicos que é difícil prever algum tipo de reconciliação total entre eles.
As ações recentes de EUA e Rússia um em relação ao outro apontam para um afastamento cada vez maior: reuniões da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte)[5] antagônicas à Rússia, aliança Rússia-China antagônica aos EUA, imposição de sanções econômicas, demonização midiática, troca virulenta de acusações, incidentes diplomáticos, entre outras estratégias, viraram rotina entre os dois gigantes (POMERANZ, 2017). Tais fatores fazem com que analistas internacionais atualizem, constantemente, quais momentos são os “piores nas relações russo-americanas desde o fim da Guerra Fria”.
Isto está longe de ser um problema superficialmente solúvel. Antes mesmo das eleições de Joe Biden, Donald Trump (2017-2020), Barack Obama (2009-2016), e até mesmo de George W. Bush, as relações russo-americanas já eram antagônicas. A eleição e constante re-eleição de Vladimir Putin à presidência da Rússia é apenas um sintoma do estremecimento delas. Sendo assim, enquanto o país euroasiático continuar sendo tratado como inimigo digno de temor pelo Ocidente, essa tensão continuará permanente, com apenas alguns altos e baixos ocasionais (POMERANZ, 2017).
O que o futuro reserva
Partindo da eleição do democrata Joe Biden à Casa Branca, era esperado, por alguns, que a política externa estadunidense voltasse a ser menos agressiva e mais conciliatória, em oposição à política combativa e anti-multilateral de Donald Trump. Porém, como apontado por Fiori (2020), o que vemos até o momento no governo Biden é uma continuação da mesma lógica trumpista de “America First” (América Primeiro, em português).
O crescente e reafirmado apoio americano à Ucrânia, rival histórica da Rússia no Leste Europeu, bem como a fala de Biden sobre Putin ser “um assassino” (HUNNICUT e LEWIS, 2021), reforçam que o recém-eleito presidente demonstra, claramente, querer a continuação dos processos iniciados por Trump, nomeadamente, o rompimento com a ordem liberal wilsoniana e o antagonismo total contra os “inimigos” declarados. Todas essas atitudes acabam por fornecer uma sobrevida, ainda que em escala bem menor, à mentalidade de enfrentamento da Guerra Fria. Diante disso, vale ressaltar que não podemos apontar com precisão as consequências do atual rumo das relações russo-americanas, mas é possível inferir que a continuação do embate entre os dois países ainda deve durar mais do que os analistas internacionais inicialmente previam após a queda da URSS em 1991.
BIBLIOGRAFIA:
FIORI, José Luis. Estados Unidos, Rússia e a grande transformação mundial: tendências e perspectivas. Ineep, ano 3, número 14, 2020.
HUNNICUT, Trevor; LEWIS, Simon. Analysis: Biden talks down Russia, spurs allies in bid to back Putin into a corner. Reuters, 2021. Disponível em: <https://www.reuters.com/world/biden-talks-down-russia-spurs-allies-bid-back-putin-into-corner-2021-06-17/>. Acesso em: 21 jun 2021.
JUNIOR, Antonio Gasparetto. Países do Eixo. InfoEscola, 2021. Disponível em: <https://www.infoescola.com/segunda-guerra/paises-do-eixo/>. Acesso em: 21 jun 2021.
LE MONDE DIPLOMATIQUE. Guerra preventiva, um conceito perigoso. Le Monde, 2012. Disponível em: <https://diplomatique.org.br/guerra-preventiva-um-conceito-perigoso/>. Acesso em: 22 jun 2021.
MARS, Amanda; SAHUQUILLO, María R. Putin e Biden abrem caminho para reaproximação sem superar a desconfiança. El País, 2021. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/internacional/2021-06-16/putin-e-biden-abrem-caminho-para-reaproximacao-sem-superar-a-desconfianca.html>. Acesso em: 21 jun 2021.
PINI. André. Donald Trump e a contestação da “Ordem Liberal Global”. Núcleo de Estudos e Análises Internacionais da Universidade de São Paulo, 2017. Disponível em: <https://neai-unesp.org/donald-trump-e-a-contestacao-da-ordem-liberal-global/>. Acesso em: 22 jun 2021.
POMERANZ, Lenina. Relações entre Estados Unidos e Rússia hoje. Revista Estudos Avançados, Vol.31, n.91, set. – dez., 2017, p.287-291.
SENHORAS, Elói Martins. Movimentos pendulares nas relações bilaterais entre Rússia e Estados Unidos. Conjuntura Global, Vol.3, n.2, abr. – jun., 2014, p. 99-106
VIZENTINI, Paulo G.F. ”A Guerra Fria” in: REIS FILHO, Daniel A.; FERREIRA, Jorge e ZENHA, Celeste (orgs.) O século XX: o tempo das crises. Volume 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 195-225.
WOOD, Ellen M. “Imperialismo dos EUA: hegemonia econômica e poder militar”. In: Crítica Marxista, nº 19, 2004, p. 49-61.
[1] Os dois principais partidos dos Estados Unidos
[2] Eixo de Berlim: aliança formada na Segunda Guerra Mundial (1939-1945) entre a Alemanha Nazista, a Itália Fascista e o Império Japonês.
[3] Modalidade de guerra criada por George W. Bush após os ataques de 11 de setembro de 2001 nos EUA: “[…] Bush anunciou que a estratégia de Washington teria como objetivo impedir que tais ameaças [terroristas] se concretizassem, e que para isso tomaria “medidas preventivas” (preemptive actions) contra os potenciais inimigos.” (LE MONDE, 2012)
[4] A Ordem Liberal adotada após a Segunda Guerra Mundial, liderada pelos EUA e idealizada pelo presidente americano Woodrow Wilson (1813-1921). Segundo o professor de Relações Internacionais André Pini (2017): “[…] [as tradições liberais wilsonianas] advogaram pelo crescente protagonismo dos EUA não somente na consolidação de regimes internacionais que edificassem a economia global, como também na promoção dos direitos humanos, da governança democrática e do Estado de Direito.”
[5] Pacto militar idealizado pelos EUA durante a Guerra Fria e liderado pelo mesmo até hoje.