POR QUE AS ILHAS MARSHALL LUTAM PELO DESARMAMENTO NUCLEAR?

POR QUE AS ILHAS MARSHALL LUTAM PELO DESARMAMENTO NUCLEAR?

Nuvem de fumaça de teste nuclear vista a partir do Atol de Bikini, em 1946. Fonte: Pixabay (2021).

O Acordo de Não Proliferação de Armas Nucleares de 1968, também conhecido pela sigla TNP, foi um importante marco para evitar a disseminação de armas nucleares para um  número maior de países e para impedir que acontecimentos semelhantes ao bombardeio de Hiroshima e Nagasaki ocorressem novamente. Entretanto, a completa eliminação desses armamentos nunca foi objetivo desse tratado, ou de nenhum outro acordo internacional bem-sucedido.

Dada a justificativa de que armas nucleares são uma ferramenta de dissuasão utilizada em negociações pelas potências nucleares, percebe-se que não é do interesse dos Estados abdicar desses recursos. Por este motivo, acordos que proíbem o uso, desenvolvimento, armazenamento, produção, testagem e transferência de armamento nuclear não contam com a assinatura de França, Estados Unidos, Rússia, China, Reino Unido, Índia, Paquistão, Israel e Coreia do Norte (DUARTE, 2008). 

Entretanto, a indignação das Ilhas Marshall sobre a presente questão foi expressa publicamente, em abril de 2014, por meio da abertura de nove processos judiciais contra as potências nucleares listadas acima na Corte Internacional de Justiça (CIJ). 

Primeiramente, quem são as Ilhas Marshall?

Poucos conhecem este conjunto de 29 atóis [1] e 5 ilhas chamado de República das Ilhas Marshall, um pequeno Estado localizado na região central do Oceano Pacífico, conhecida como Micronésia, na Oceania. 

Bandeira da República das Ilhas Marshall. Fonte: CIA (2021).

No ano de 1788, uma embarcação britânica de natureza exploratória atracou pela primeira vez na região. Em sequência, o nome das ilhas foi dado em homenagem ao responsável pela expedição, o capitão John Marshall. Após fazer parte de colônias britânicas, alemãs e japonesas, respectivamente, as Ilhas Marshall tornaram-se parte do Território Fiduciário das Ilhas do Pacífico [2], sob tutela estadunidense, durante a década de 1940 (HEZEL, 1983).

Durante o período em que esteve sob a subordinação dos Estados Unidos da América (EUA), os atóis de Bikini e de Enewetak eram utilizados para a realização de testes nucleares. Tais experimentos começaram a ocorrer em 1946 e continuaram até 1958 – com um total de 67 testes executados. Como consequência, uma grande quantidade de marshaleses morreram devido a complicações oriundas da exposição ao alto nível de radiação presente na área, e até os dias atuais não foi dada qualquer indenização às famílias afetadas (GERRARD, 2015).

A mais alta concentração de radiação foi identificada no Atol de Bikini, onde existe uma possibilidade mínima de que, em algum momento futuro, a população retirada de lá possa retornar. Já no Atol de Enewetak, houve um estudo realizado pelos militares estadunidenses sobre como reduzir o nível de radiação resultante dos 44 testes realizados, de forma que o local pudesse voltar a ser habitável. No entanto, a contaminação com estrôncio-90, plutônio-239 e césio-37 era tamanha que o Departamento de Defesa dos Estados Unidos concluiu que mover toda essa poluição radioativa poderia resultar em danos ecológicos ainda mais severos à ilha. À vista disso, durante quase 20 anos o local ficou abandonado para que a contaminação se decompusesse naturalmente (GERRARD, 2015).

Inconformados, a população de Enewetak e seus advogados demandaram que fosse realizada a descontaminação da área e o deslocamento dos rejeitos, sugestões que os Estados Unidos recusaram em um primeiro momento. Apesar disso, entre 1977 e 1979, o governo estadunidense colocou em prática um plano de limpeza local, que consistiu em injetar uma massa cimentícia na cratera formada pelos bombardeios nucleares para cobrir o solo contaminado. Mesmo assim, a ilha continuou com um nível de radioatividade mais elevado do que o recomendado e segue sem qualquer marcação ou proteção. Ao final, permitiu-se que uma parte da Ilha fosse habitada novamente. Todavia apenas metade do seu território era tido como seguro para ocupação e a área restante era imprópria para o cultivo ou produção de qualquer alimento (GERRARD, 2015).

Além disso, ainda que os testes nucleares tenham sido interrompidos em 1958, experimentos militares com armas biológicas, mísseis balísticos, motores de foguetes e com diferentes tipos de explosivos continuaram a ocorrer dentro do território marshalês. Todos esses testes deixaram resíduos em contato com o meio ambiente, que levam ao contágio da população, da fauna e da flora presentes na região. Outrossim, a radiação provocada pelas bombas nucleares é tão elevada a ponto de já ter se espalhado por grandes distâncias, como os vestígios de resíduos encontrados no Mar do Sul da China (GERRARD, 2015).

Fonte: Mapas da Austrália (2021).

Depois de apresentada toda a relação existente entre as Ilhas Marshall e os testes nucleares, realizados pelos EUA nesse território, fica mais fácil entender o motivo que levou o governo desta pequena ilha a iniciar uma ação contra as potências nucleares.

Entendendo o caso das Ilhas Marshall contra os Estados detentores de armas nucleares

Em primeiro lugar, é importante destacar que os cinco Estados que possuem assento permanente e poder de veto dentro do Conselho de Segurança da ONU – China, Estados Unidos, França, Reino Unido e Rússia -, são também aqueles que reconhecem publicamente serem possuidores de armamento nuclear. A posse do arsenal por parte desses países já é conhecida desde o seu desenvolvimento durante a segunda metade do século XX, período que ficou conhecido como corrida armamentista (SQUEFF; BIDINOTTO, 2017). Entretanto, por estarem cientes do risco da ocorrência de uma guerra nuclear, caso houvesse uma proliferação desordenada desse recurso militar, viram a necessidade de criar um tratado internacional que limitasse o seu acesso e tomasse medidas eficazes em direção ao desarmamento nuclear. De forma a alcançar esse propósito, foi elaborado, no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU), o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares em 1968 (DUARTE, 2008).

Atualmente, 189 países assinaram o Tratado, concordando com a sua finalidade. Em contrapartida, a Coréia do Norte, Índia, Israel e Paquistão são quatro nações que trazem preocupações à comunidade internacional por não fazerem parte do grupo de atores que firmaram o acordo e, portanto, não possuem obrigações quanto às questões relativas a esses armamentos. Dentre os quatro, a Índia e o Paquistão já assumiram publicamente que são detentoras de armas nucleares e realizaram testes com esses explosivos. Por outro lado, os dois Estados restantes nunca confirmaram oficialmente terem posse dessa categoria de recurso militar, mesmo que exista embasamento suficiente para acreditar que os possuem (DUARTE, 2008).

Contra as nove potências nucleares, a pequena ilha do Pacífico, ao iniciar o processo judicial na CIJ, alegava a existência de uma obrigação internacional de negociar de boa-fé o desarmamento nuclear, de acordo com as obrigações previstas tanto no TNP – para os países signatários desse acordo -, quanto no direito consuetudinário [3]. Nesse sentido, pretendia-se ver tal dever constatado pelos magistrados da Corte de Haia e devidamente imposto às potências armadas. Assim, as Ilhas Marshall sentiram-se lesadas em uma negação de justiça humana tendo em vista os 67 testes nucleares operados em seu território, que causaram prejuízo à nação em questões de saúde da população e de deterioração do meio ambiente local (SQUEFF; BIDINOTTO, 2017).

Todavia, quando a Corte tentou se comunicar com as nove potências que estavam sendo processadas, apenas três responderam ao chamado, mostrando que as seis restantes não reconheciam a competência e autoridade da CIJ para julgar o processo. De forma a tentar contornar a situação, foi oferecida a opção da maioria dos Estados aceitarem a jurisdição voluntariamente e de forma ad hoc [4], contudo, mesmo assim, não se dispuseram a fazê-lo (BARRETTO, 2018).

Dessa forma, como nem todos os três Estados – Reino Unido, Índia e Paquistão – são signatários dos Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares, cada uma dessas partes assumiram diferentes obrigações no que tange ao direito internacional (BARRETTO, 2018). Assim, argumentou-se, na ação contra o Reino Unido, que houve uma violação do Artigo VI do TNP, o qual afirma:

“Cada uma das Partes no Tratado compromete-se a prosseguir negociações de boa fé sobre medidas eficazes relativas à cessação da corrida armamentista nuclear em data próxima e ao desarmamento nuclear, e sobre um tratado de desarmamento geral e completo sob controle internacional estrito e eficaz.” (UNITED NATIONS ORGANIZATION, 1968, p. 4, tradução da autora). [5]

Já no pleito da Índia, assim como no do Paquistão, houve a alegação de que os dispositivos presentes no TNP podem ser reconhecidos como integrantes do direito consuetudinário e, assim, trazem as obrigações aos países não-signatários do acordo (BARRETTO, 2018).

A decisão da Corte

No dia 5 de outubro de 2016, a Corte Internacional de Justiça, principal órgão judiciário da Organização das Nações Unidas, chegou à mesma conclusão quanto aos três casos, declarando a inviabilidade de os julgar. Tal desfecho foi fundamentado no entendimento da maioria dos juízes de Haia de que não há um conflito existente entre as partes, o que é um requisito fundamental para a operação desse órgão judicial (LIMA, 2017). Tal prerrogativa está presente no Artigo 38 do Estatuto da Corte, onde diz que sua “função é decidir de acordo com o direito internacional as controvérsias que lhe forem submetidas” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1945, s.p).

Considerações finais

O não prosseguimento do caso, sobretudo por se tratar de dois tópicos sensíveis como o desarmamento e uso de armas nucleares, gerou repercussões e críticas ao parecer adotado pela maioria da Corte, seja no seu interior ou por seus comentadores. Não se pode deixar de notar que a decisão da CIJ mostra que tribunais e cortes internacionais desempenham papéis que ultrapassam o limite da solução de divergências. Isso porque, tratam-se ainda de fóruns com o propósito do avançar de posições e argumentos jurídicos que vão além da controvérsia em vigor (LIMA, 2017). 

Nesse processo jurídico, portanto, a Corte Internacional de Justiça não esteve à altura das expectativas depositadas por aqueles países que não detêm armas de destruição em massa. Apesar da decisão da corte, é possível observar que a ação das Ilhas Marshall em direção a um pedido de justiça chamou a atenção da comunidade internacional para o ritmo lento das negociações acerca do desarmamento nuclear. Dessa forma, o efeito foi de um encorajamento para que demais Estados que se sintam prejudicados pelo arsenal contestem as nove potências no sentido de fazê-los cumprir sua obrigação legal de realizarem negociações para que se alcance o desarmamento nuclear (SANDERS-ZAKRE, 2016).

Notas

[1] Um Atol é uma ilha oceânica formada por corais com uma laguna central.

[2] O Território Fiduciário das Ilhas do Pacífico é um dos Protetorados das Nações Unidas administrado pelos Estados Unidos de 1947 a 1986, sendo este último ano o momento em que foi concedida uma independência parcial aos países protetorados através do Tratado de Livre Associação. 

[3] O Direito Consuetudinário é uma construção jurídica que surge dos costumes de uma certa sociedade, não passando por um processo formal de criação de leis.

[4] Ad hoc é uma expressão latina que significa “para esta finalidade”. Então, caso os seis Estados tivessem aceitado essa opção, estariam reconhecendo a jurisdição da Corte Internacional de Justiça para julgar aquele caso em específico.

[5] Each of the Parties to the Treaty undertakes to pursue negotiations in good faith on effective measures relating to cessation of the nuclear arms race at an early date and to nuclear disarmament, and on a treaty on general and complete disarmament under strict and effective international control.

Referências

BARRETO, Rafael Zelesco. Quando um não sabe, dois não litigam? O caso das Ilhas Marshall contra os Estados detentores de Armas Nucleares. Revista da Faculdade de Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 73, p. 605-637, jul./dez. 2018.

DUARTE, Sergio. Principais Instrumentos Internacionais no Campo do Desarmamento e Controle de Armamentos: o papel das Nações Unidas. III Anuário Brasileiro de Direito Internacional, Centro de Direito Internacional, v. 1, p. 161-173, 2008.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Estatuto da Corte Internacional de Justiça. New York: The United Nations, Departamento de Informações Públicas, 1945.

GERRARD, Michael B. America’s Forgotten Nuclear Waste Dump in the Pacific. The  SAIS Review of International Affairs, Baltimore, v. 35, n. 1,  p. 87-97, Winter-Spring 2015.

HEZEL, Francis X. The First Taint of Civilization: A History of the Caroline and Marshall Islands in Pre-colonial Days, 1521-1885. Pacific Islands Monograph Series, n. 1; University of Hawaii Press, 1983.

LIMA, Lucas Carlos. Da relevância dos casos do Desarmamento Nuclear perante a Corte Internacional de Justiça. Revista de Direito Internacional, Brasília, v. 14, n. 3, p. 202-215, 2017.

SANDERS-ZAKRE, Alicia. Marshall Islands Lose Nuclear Cases. Arms Control Today, Washington, v. 46, n. 9, p. 31-32, nov. 2016.

SQUEFF, Tatiana de A. F. R. Cardoso; BIDINOTTO, Vanessa de Oliveira Bernard. Desarmamento Nuclear: Novos Discursos, Velhas Angústias. Revista InterAção, Santa Maria, v. 8, n. 2,  jun./dez. 2017.

UNITED NATIONS ORGANIZATION. Treaty on the non-proliferation of nuclear weapons. 1 jul. 1968. Disponível em: https://www.iaea.org/sites/default/files/publications/documents/infcircs/1970/infcirc140.pdf. Acesso em: 23 jun. 2021.

Imagens

CIA. World Factbook – Marshall Islands. 2021. Disponível em: https://www.cia.gov/the-world-factbook/countries/marshall-islands/flag. Acesso em: 26 jun. 2021.

MAPAS DA AUSTRÁLIA. Mapa da Ásia e Austrália. 2021. Disponível em: https://pt.maps-australia.com/mapa-da-%C3%A1sia-e-austr%C3%A1lia. Acesso em: 26 jun. 2021.

PIXABAY. Explosão Nuclear. 2021. Disponível em: https://pixabay.com/pt/photos/explos%c3%a3o-nuvem-de-cogumelo-67557/. Acesso em: 26 jun. 2021.

Isadora Ferreira Marinho

Estudante de Relações Internacionais na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Possui interesse nas áreas de Direito Internacional Público e Política Internacional.

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