“LADIES FIRST” E A PARTICIPAÇÃO FEMININA NO ESPORTE

“LADIES FIRST” E A PARTICIPAÇÃO FEMININA NO ESPORTE

“Deepika pegou a casinha e disse:

– Papai, isso é um helicóptero. Ela levantou o telhado e continuou, ‘papai, você, eu e mamãe vamos sentar aqui e vamos embora voando.” 

Geeta Mahato, mãe da atleta (Ladies First, 2017)

“Ladies First – Na Mira do Futuro” é um documentário biográfico que apresenta a história de Deepika Kumari, arqueira nascida em uma área rural a 15 quilômetros do estado de Jharkhand, localizado no leste da Índia. Prodígio na modalidade “tiro com arco e flecha“, Kumari hoje é referência no esporte.

De origem humilde, sem condições financeiras para bancar seus treinamentos, mas com o apoio de sua família, Deepika disparou para além das expectativas criadas para as meninas da região e encontrou nas flechas, a chave para um futuro melhor.

Em Ram Chatti, o vilarejo no qual cresceu, não havia muitas oportunidades para que meninas tivessem educação escolar ou carreira profissional. Segundo pesquisa realizada pelo Ministério do Interior da Índia, cerca de 5,8% das jovens recém-casadas em áreas tribais no estado são menores de idade (THE HINDU, 2022). 

No início da adolescência, teve o primeiro contato com o esporte por meio de sua prima e com a falta do equipamento, treinava com arcos feito de bambu. Pouco tempo depois, entrou para a TAA – Tata Archery Academy/Academia Tata de Tiro com Arco e Flecha -, renomado centro de treinamento da modalidade no país. Anos depois, Kumari era chamada pela mídia de “rainha da Índia”, ao ser campeã mundial na Copa do Mundo de tiro com arco e flecha, em 2012, com apenas 18 anos.

Curto e inspirador, o filme apresenta a dinâmica da atleta em busca do aperfeiçoamento e seu rumo ao pódio olímpico, tendo como palco uma realidade tão milenar quanto o esporte praticado por Kumari: a desigualdade de gênero nas relações sociais entre homens e mulheres. 

OLIMPÍADAS, MULHERES E SER SUFICIENTE 

“Eles realmente acham que as garotas são fracas ou incompetentes? Eu acho que eles têm medo de nós. Que se tivermos liberdade, vamos superá-los e nos distanciar tanto que eles não serão capazes de nos alcançar.”

Deepika Kumari (Ladies First, 2017)

Em seus 39 minutos de duração, a direção de Uraaz Bahl apresenta Deepika em locais pontuais à personagem que ela hoje desempenha no esporte mundial. O documentário percorre cenários que variam do seu lar de infância à sua rotina de preparação após a 31ª edição dos Jogos Olímpicos, sediada em 2016 no Rio de Janeiro, na qual teve seus esforços questionados ao ficar com a 20ª colocação. Ao não avançar na competição, Deepika, com 22 anos na época e no auge de sua carreira, teve seus anos de desempenho questionados e a própria mídia que concedeu-lhe o título de realeza, colocou em xeque suas medalhas.

Em uma de suas falas no documentário, Kumari depõe sobre o machismo da sociedade indiana com mulheres que se desviam do papel tradicional de dedicação ao lar. No país, a participação feminina em práticas atléticas reduz ao longo da maturidade, sendo maior durante os anos escolares. Para ⅓ dos cidadãos indianos, esportistas mulheres não são tão boas quantos seus colegas homens (BBC, 2020). 

Deepika Kumari recebendo o prêmio Arjuna das mãos do presidente Shri Pranab Mukherjee em 2012 (Fonte: Wikicommons)

Internacionalmente, a recepção social com o engajamento feminino nos esportes, não é muito diferente do que se ocorre na Índia, fazendo com que a narrativa de negligência esteja presente nas mais diversas modalidades, independentemente da nacionalidade da atleta. Com menores salários, pouco patrocínio e pífio reconhecimento de seus méritos, a trajetória das mulheres no esporte pode ser vista a partir da “jornada do herói”, ou melhor, da heroína, de tão míticas que são as histórias de superação de cada atleta.

DAS LENDAS, DOS PROTESTOS E DO OURO 

Em “O Herói de Mil Faces”, o professor de literatura Joseph Campbell trabalha com o fator comum nos roteiros e nas narrativas mitológicas: a existência do herói que parte em uma jornada de aventura e auto conhecimento, e que retorna às origens após as transformações pessoais que as dificuldades lhe proporcionaram durante o processo (MASTERCLASS, 2021)

Seja na história de Deepika Kumari, garota pobre que encontra no arco e flecha a chave de uma vida melhor sua família; na de Phiona Mutesi, enxadrista ugandense que emerge da favela de Katwe, atinge competições internacionais e retorna ao lar para promover o incentivo ao esporte; ou na de Marta, ícone do futebol mundial eleita seis vezes a melhor jogadora do mundo que, quando jovem era proibida de competir em torneios (CNN, 2023), a jornada da heroína se faz claramente presente.

Para elas e tantas outras, o talento absurdo que as destaca socialmente, é também o que as coloca na mira das violências em que são o principal objeto. Com uma progressiva maior visibilidade às edições femininas de esportes tradicionalmente restritos a homens – como futebol e basquete -, há também o aumento nos casos de misoginia contra as atletas. Segundo pesquisa realizada com torcedores de futebol do Reino Unido pela Durham University, a maior cobertura de partidas femininas é vista como ameaça ao espaço que o esporte representa para os homens (POPE et al, 2022).

Atleta de luta livre Sangeeta Phogat durante os protestos em Jantar Mantar (Fonte: TH/Sushil Kumar Verma)

Em maio de 2023, atletas de luta livre da Índia protestaram no observatório Jantar Mantar em Nova Délhi, contra o presidente da WFI (Federação de Luta-Livre da Índia), devido a denúncias de assédio sexual (AL JAZEERA, 2023). Movimentos como o #MeToo e os protestos de maio, mostram que além da misoginia advinda do público de fora, as mulheres atletas são também  silenciadas profissionalmente, tendo seus depoimentos de descaso, falta de apoio psicológico e abuso, desconsideradas ou ignoradas pela mesma mídia que lhes dá os holofotes quando contribuem para o hall de medalhas de seus países. 

Aclamado em festivais ao redor do mundo, “Ladies First” dá ao mundo a visão de resiliência que é característica do esporte feminino, priorizando a persistência de Kumari apesar dos entraves e seu almejo a um futuro de maior reconhecimento para as flechas lançadas por jovens arqueiras.

Imagens

IMDB. 1 fotografia. 1.056 x 1.564 pixels. Disponível em: https://www.imdb.com/title/tt6896078/mediaviewer/rm725579520/

WIKICOMMONS. 1 fotografia. 2,200 × 1,879 pixels. Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:The_President,_Shri_Pranab_Mukherjee_presenting_the_Arjuna_Award_for_the_year-2012_to_Ms._Deepika_Kumari_for_Archery,_in_a_glittering_ceremony,_at_Rashtrapati_Bhavan,_in_New_Delhi_on_August_29,_2012.jpg 

MALPANI, Mehul. Wrestlers detained while trying to march towards new Parliament building, Delhi police clears Jantar Mantar protest site. The Hindu, 2023. Disponível em: https://www.thehindu.com/sport/other-sports/protesting-wrestlers-detained-police-clears-protest-site-at-jantar-mantar/article66903767.ece. Acesso em: 19 jul. 2023.

Referências bibliográficas

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CHAKRABORTY, Samrat. Deepika Kumari’s best: The Indian archer’s career highlights. Olympics. Disponível em: https://olympics.com/en/news/deepika-kumari-best-career-indian-archer. Acesso em: 10 jul. 2023.

CHAWLA, Sanjana. How India’s female athletes lead the fight for gender equality. FairPlanet. Disponível em: https://www.fairplanet.org/editors-pick/india-wrestling-news-sports-women-protest/. Acesso em: 11 jul. 2023.

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Jharkhand records country’s highest percentage of child marriage among girls

The Hindu, 2022. Disponível em: https://www.thehindu.com/news/national/other-states/jharkhand-records-countrys-highest-percentage-of-child-marriage-among-girls/article65983850.ece. Acesso em: 10 jul. 2023.

Marta é a maior artilheira da história das Copas do Mundo; veja ranking feminino. CNN Brasil. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/esportes/marta-e-a-maior-artilheira-da-historia-das-copas-do-mundo-veja-ranking-feminino/. Acesso em: 19 jul. 2023.

Marta: quem é, idade, onde mora, onde nasceu e outras dúvidas. UOL. Disponível em: https://www.uol.com.br/esporte/faq/marta-quem-e-idade-onde-mora-onde-nasceu-e-outras-duvidas.htm. Acesso em: 19 jul. 2023.

MASTERCLASS. Writing 101: What Is the Hero’s Journey? 2 Hero’s Journey Examples in Film. Disponível em: https://www.masterclass.com/articles/writing-101-what-is-the-heros-journey#1NSljBEzxqOZEInrZJXwqp. Acesso em: 18 jul. 2023.

Pope, S., Williams, J., & Cleland, J. (2022). Men’s Football Fandom and the Performance of Progressive and Misogynistic Masculinities in a ‘New Age’ of UK Women’s Sport. Sociology, 56(4), 730–748. https://doi.org/10.1177/00380385211063359 

September 2021 – The Queen of Katwe – Five Years Later. Sports Outreach. Disponível em: https://www.sportsoutreach.net/newsletters/september-2021-the-queen-of-katwe-five-years-later. Acesso em: 18 jul. 2023.

Why are top Indian wrestlers protesting on the streets? Al Jazeera. Disponível em: https://www.aljazeera.com/news/2023/5/4/why-are-top-indian-wrestlers-protesting-on-the-streets. Acesso em: 12 jul. 2023.

WOOD, Robert. Olympic Games Host Cities. Top End Sport. Disponível em: https://www.topendsports.com/events/summer/hosts/list.htm. Acesso em: 11 jul. 2023.

Giovana Silva Santiago

Estudante de RI amante de frutas, livros, músicas e musicais e que se encontra em um sério relacionamento internacional com o BTS.

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