FUTURO DAS TEORIAS DE RI NO BRASIL

FUTURO DAS TEORIAS DE RI NO BRASIL

As Diretrizes Curriculares para o Curso de Relações Internacionais (2017), preveem que o profissional graduado revele, entre outras competências e habilidades, “postura crítica com relação a argumentos, evidências, discursos e interpretações, com relação tanto a eventos e processos internacionais, quanto a abordagens, teorias e perspectivas em Relações Internacionais”.

Logo nos primeiros contatos com o curso, os alunos são expostos às teorias clássicas no formato dos Grandes Debates das Relações Internacionais. Enquanto os primeiros estudos se concentravam na dicotomia entre guerra e paz, os neorealismos e neoliberalismos eram as perspectivas mainstream1 do campo. Ao passar do tempo, novas perspectivas teóricas começaram a apontar fragilidades e inconsistências nessas teorias, inclusive a argumentar que a origem ontológica do campo em Westfália e epistemológica a partir de 1919, são mitos. Hoje, as produções acadêmicas brasileiras demonstram que as teorias clássicas perderam espaço entre os pesquisadores, e apontam para um futuro com clara tendência de repensar o campo das Relações Internacionais para além dos paradigmas2 já definidos.

TEORIAS CLÁSSICAS DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

Mesmo que esta narrativa de debates não seja a ideal para análises mais profundas, didaticamente, esse texto parte do pressuposto de que as teorias de Relações Internacionais (RI) evoluíram em Grandes Debates entre a teoria dominante e uma nova perspectiva emergente. O primeiro deles foi ao longo da década de 1930, quando a teoria realista passou a questionar o Idealismo, argumentando que as relações internacionais são regidas pelas relações de poder entre os Estados (GONÇALVES, 2015; NOGUEIRA; MESSARI, 2005).

Paradoxalmente, a teoria idealista nunca foi de fato teorizada. Embora seja baseada nas contribuições de Immanuel Kant, o Idealismo era uma condução da política externa dos Estados Unidos. Nesse particular, o Idealismo se liga diretamente ao Wilsonianismo4, na medida em que os “Quatorze Pontos de Wilson”3 foram proclamados enquanto o caminho para garantir a paz. Nessa abordagem, os valores éticos e morais da humanidade são a base da cooperação para a paz, refletida na construção e aperfeiçoamento de instituições internacionais. Por outro lado, a teoria realista propõe se desvincular da moralidade e analisar o mundo como ele “realmente é”  (GONÇALVES, 2015; NOGUEIRA; MESSARI, 2005).

Dessa forma, o argumento central é que a inexistência de uma autoridade capaz de determinar as regras, implica em um cenário cujos indivíduos se preocupam apenas com a própria sobrevivência. Assim, o Sistema Internacional é anárquico e os indivíduos são os Estados unitários5, cujas interações são baseadas em um equilíbrio de poder. A corrente realista passa ser dominante nas RI quando a eclosão da Segunda Guerra Mundial deixou claro que o idealismo fracassara, uma vez que não foi capaz de garantir a paz, classificando-se como uma “Grande Ilusão6”(GONÇALVES, 2015; NOGUEIRA; MESSARI, 2005).

Novamente desenvolvido a partir de estudos estadunidenses, o Segundo Grande Debate, na década de 1950, foi marcado pelo amadurecimento de um aparato metodológico, visando uma roupagem científica para os estudos das RI. Nesse sentido, diferentemente do primeiro debate que se relacionava com a “visão de mundo” (ontologia), esse se tratou da discussão sobre como construir as análises nas Relações Internacionais, impactados pela guinada behaviorista nas Ciências Sociais. Enquanto os tradicionalistas visavam uma análise generalista do objeto de estudo, os pensadores behavioristas buscavam em modelos científicos outros meios de análise que pudessem investigar o comportamento dos Estados. Muito inspiradas nas ciências exatas, as análises buscavam ser mais específicas e precisas, nas quais os modelos, como a Teoria dos Jogos, por exemplo, visavam partir do individual para chegar no geral (GONÇALVES, 2015; NOGUEIRA; MESSARI, 2005).

Já na década de 1970, o Terceiro Grande Debate foi marcado por ser interparadigmático. Os estudos da dependência impulsionados por Keohane e Nye emergiram como uma crítica ao Realismo, especialmente ao avaliar as mudanças no âmbito internacional, estabelecendo que não era mais possível analisar as relações internacionais apenas sob um viés de segurança. Questões como o primeiro choque do petróleo e o abandono do Padrão-Ouro7 demonstraram que, os países estavam cada vez mais dependentes entre si. Além disso, já não faria mais sentido tratar o Estado como único ator das relações internacionais, o que abriu espaço para questões domésticas, grandes corporações, instituições e ONGs. As críticas recebidas pelos realistas implicaram em algumas mudanças na própria teoria, e, por conseguinte, na teoria da dependência. Essas alterações e reconfigurações no campo foram berço do neorrealismo e neoliberalismo (GONÇALVES, 2015; NOGUEIRA; MESSARI, 2005).

Por se tratar de uma temática teórico-conceitual densa, dediquei a parte anterior para uma contextualização histórica da origem das Relações Internacionais e então pontuar que, dado as referências supracitadas, considerei enquanto teorias clássicas das RI o Realismo e Idealismo/Liberalismo, pois junto às respectivas “neo” foram as perspectivas mainstream das pesquisas do campo. Ainda sim, devido ao enxuto espaço que tenho neste texto, irei apenas mencionar e sugerir a leitura de outra teoria clássica das RI que é o “Imperialismo”8. Aqui enfatizo também a importância da Escola Inglesa e, principalmente, do construtivismo, pois inaugura uma série de críticas sobre as próprias teorias e o processo de teorização nas RI. O mais importante para os fins deste trabalho é afirmar que o Construtivismo, portanto, serviu como um início ou “meio-termo” do Quarto Grande Debate cujos lados eram positivismo e pós-positivismo (MENDES, 2019; GONÇALVES, 2015)

A figura seguinte resume a narrativa de grandes debates:

Figura 1: Os grandes debates metateóricos nas RI

Fonte: MENDES, 2012

NOVAS PERSPECTIVAS TEÓRICAS

Robert Cox foi um dos principais teóricos críticos das RI, apontando que os debates anteriores não tinham tanta relevância à medida que o positivismo científico implicava em uma naturalização do mundo. Cox aglutinou as perspectivas mainstream enquanto “Teorias de Resolução de Problemas”, que focavam em solucionar as adversidades aparentes sem pôr em xeque as narrativas ontológicas e epistemológicas do campo. De fato, a chegada da Teoria Crítica foi a emergência do pós-positivismo, que visava uma ruptura com a naturalização de conceitos, análises ahistóricas e neutras. A Teoria Crítica aponta tanto para Neorrealismo e Neoliberalismo, quanto para Realismo Clássico e Idealismo, como teorias construídas para a manutenção e garantia da dominação das grandes potências, em detrimento de uma busca verdadeira pela paz (MENDES, 2019; GONÇALVES, 2015).

Ao reconhecer que uma teoria não é isenta de vieses políticos, os pesquisadores críticos se propõe a trilhar um processo de emancipação teórico-conceitual. Sob uma nova conceitualização do que é teoria, o objetivo passa a extrapolar uma mera tentativa de explicar o mundo, buscando, agora, compreendê-lo e transformá-lo. Assim sendo, embora tenham diferenças entre as perspectivas teóricas, compreende-se aqui como teoria crítica toda teoria que tem, entre seus objetivos, um processo de emancipação das estruturas de poder construídas historicamente, como o decolonialismo e poscolonialismo, feminismo, teoria queer, teoria neogramsciana, pan-africanismo, entre outras. Ora, se antes o objetivo era estudar as relações internacionais motivado pela guerra, realismo e idealismo com suas vertentes foram as correntes dominantes na época. Contudo, após apresentar a evolução teórica das RI, me parece pertinente questionar o que é mainstream hoje no campo? 

A fim de responder essa pergunta, esse texto se propõe a observar a produção acadêmica brasileira, em especial as discussões teóricas nos Encontros Nacionais da Associação Brasileira de Relações Internacionais (ABRI). Isso será feito a partir da contagem simples da quantidade de artigos nos painéis de teoria das RI, separando por perspectiva teórica, classificados pelos próprios autores ou por meio de uma categorização que tem como critério o resumo, título, palavras-chave e referências. Foram observados os anais do primeiro ao oitavo encontro nacional da ABRI, com exceção do segundo encontro, cujo documento não está disponível no site da associação.

Tabela 1: Número de publicações em painéis sobre Teoria das Relações Internacionais nos encontros nacionais da ABRI

Teoria/encontroTotal
Realismo0201104
Liberalismo0131005
Construtivismo32245117
Teoria Crítica5111024261086
Escola inglesa1001103
Marxismo0002002
Outros61592619580
Fonte: Elaborado pelo autor

Gráfico 1: Número de publicações por teoria x encontro nacional (ABRI)

Fonte: Elaborado pelo autor

As observações mencionadas, demonstram como Realismo e Liberalismo, bem como seus respectivos desdobramentos, não têm tanto espaço nas principais pesquisas brasileiras. Ainda que esse recorte não abarque toda a produção dentro das Relações Internacionais, chama atenção a abundância de estudos com teoria crítica e outras teorias, que não se encaixam facilmente nas classificações anteriores, englobando estudos metateóricos, análises de discurso, teorias específicas de determinado assunto como de integração regional, meio ambiente ou paradiplomacia, e outras.

Entre a década de 1920 e o final de 1990, o desenvolvimento teórico das RI estava bastante acelerado, marcado pela emergência de novas teorias que complexificavam cada vez mais o campo. A virada do milênio pareceu representar um “empobrecimento teórico” à medida que novas contribuições custavam a surgir, mas “na verdade, não se trata do fim da teoria, mas a tradicional e competitiva teorização com base em paradigmas rivais parece ter entrado em declínio” (MENDES, 2019, p.112). A contribuição das Teorias Críticas para as RI foi além da criação de uma nova perspectiva, representando um processo de ruptura com a narrativa dominante anglo-americana, ao passo que evidenciou uma tendência de outras formas de teorizar e investigar as Relações Internacionais. Já não cabe só uma divisão paradigmática, pois o passar dos anos evidenciou um amadurecimento teórico do campo enquanto um exaustivo exercício de pesquisadores de RI em revisitar a história, repensar ontologia, epistemologia e metodologia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não vou afirmar que o mainstream de hoje nas Relações Internacionais do Brasil são as Teorias Críticas, tampouco apontar para qualquer outra teoria. O mais importante é apresentar esta tendência do campo cujas discussões teóricas continuam evoluindo significativamente, principalmente com uma pluralidade de ideias após descentralizar os estudos de RI nas academias hegemônicas. O desafio é evoluir encontrando o equilíbrio entre descrições da realidade sem muita capacidade analítica e teorizações muito abstratas sem lastro na realidade. O cenário que as RI tende a alcançar, no Brasil, é a ruptura com uma só narrativa dominante, tal qual a narrativa de que as relações internacionais são construídas sob Grandes Debates ou que as origens ontológica e epistemológica das Relações Internacionais são, respectivamente, em Westfália e na política externa de Woodrow Wilson no século XX. Esta teorização sobre as teorias serve para que as RI não tenham um fim em si, mas a relevância esteja na contribuição aplicada às necessidades do mundo, em suas desigualdades, injustiças e violências (CARVALHO et al, 2011; MENDES, 2019).

NOTAS

[1] Corrente dominante ou principal linha de pensamento em determinado contexto.

[2] Os paradigmas são diferentes correntes de pensamento que surgiram no estudo das relações internacionais, cada um enfatizando certos níveis, setores e normas em detrimento de outros. Cada paradigma atua como uma visão seletiva das RI. Assim como qualquer outra lente, ao observar através de um paradigma específico, certas características se destacam com mais intensidade, enquanto outras quase desaparecem (GONÇALVES, 2015).

[3] Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4060350/mod_resource/content/1/14%20PONTOS%20DE%20WILSON.pdf

[4] Modus Operandi da política externa do ex-presidente dos EUA, Woodrow Wilson.

[5] O Estado como único ator do Sistema Internacional e sem aprofundamentos sobre sistema político, sociedade civil, identidade, grupos de interesse, aparato burocrático, e/ou outras questões que constituem a formação do Estado. Normalmente é associado com bolas de bilhar em uma analogia sobre como é o Sintema Internacional da perspectiva realista clássica.

[6] Ler: ANGELL, Norman. A Grande Ilusão. 2002. Brasília: ed. Universidade de Brasília, Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. Disponível em: https://editora.unb.br/downloads/grande_ilusao_a.pdf. 

[7] Sistema monetário que vigorou do século XIX até a Primeira Guerra Mundial, no qual, em suma, cada país tinha a reserva nacional em forma de ouro, definindo as relações de comércio e a balança comercial. 

[8] Ler: LENIN, V.I. Imperialismo: Fase superior do capitalismo. 1979. São Paulo: Global.

REFERÊNCIAS

ANGELL, Norman. A Grande Ilusão. 2002. Brasília: ed. Universidade de Brasília, Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. Disponível em: https://editora.unb.br/downloads/grande_ilusao_a.pdf. 

BRASIL. Ministério da Educação. Resolução nº 4, de 4 de outubro de 2017. Conselho Nacional de Educação, Câmara de Educação Superior. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/docman/outubro-2017-pdf/73651-rces004-17-pdf/file. Acesso em: 17 jun. 2023.

CARVALHO, Benjamin; LEIRA, Halvard; HOBSON, John M. The big bangs of IR: The myths that your teachers still tell you about 1648 and 1919. Millennium, v. 39, n. 3, p. 735-758, 2011.

CASTRO, Thales. Teoria das relações internacionais / Thales. Castro. – Brasília: FUNAG, 2012. 580 p.. Disponível em: http://funag.gov.br/loja/download/1152-Teoria_das_Relacoes_Internacionais-novo.pdf. Acesso em: 17 jun. 2023.

Cox, R. W.. Social Forces, States and World Orders: Beyond International Relations Theory. Millennium. 1981. 10(2), 126–155. https://doi.org/10.1177/03058298810100020501.

GONÇALVES, W. Relações Internacionais. 2015. UFGRS.

HALLIDAY, F. Repensando as Relações Internacionais. 2001. Rio Grande do Sul: Ed. UFGRS.

MENDES, Pedro Emanuel. As teorias principais das Relações Internacionais: uma avaliação do progresso da disciplina. 2019. Disponível em: https://ipri.unl.pt/images/publicacoes/revista_ri/pdf/ri61/RI61_art08_PEM.pdf. Acesso em: 17 jun. 2023.

MENDES, Pedro Emanuel. A (re) invenção das relações internacionais na viragem do século: o desafio do construtivismo. 2012. Disponível em: https://run.unl.pt/bitstream/10362/70749/1/n36a08.pdf. Acesso em: 17 jun. 2023.

NOGUEIRA, João Pontes; MESSARI, Nizar. Teorias das Relações Internacionais: correntes e debates. 2005. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005.

OLIVEIRA, Jessica da S. C. de. Narrative IR, Worldly IR. In:____. 2019.  Postcolonial Maghreb and the Limits of IR. New York: Palgrave Macmillan. 2019, pp. 21-60

SOUZA, Igor Abdalla Medina de. Dom Quixote reencontra Sancho Pança: relações internacionais e direito internacional antes, durante e depois da Guerra Fria. 2006.Contexto Internacional, v. 28, p. 101-166, 2006. Disponível em: http://contextointernacional.iri.puc-rio.br/media/Igor_vol28n1.pdf. Acesso em 17 jun. 2023.

Murilo Cesar Ançolim Nazareth

Internacionalista formado pela PUC Minas e pesquisador do Grupo de Pesquisa Instituições Internacionais e Segurança. Interessado em estudos sobre tecnologia e inovação nas Relações Internacionais, com ênfase em governança digital e vigilância de dados. Também entusiasta de debates decoloniais.

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