O FUTURO NÃO É MAIS COMO ERA ANTIGAMENTE: A ERA DAS “BIG TECHS” 

O FUTURO NÃO É MAIS COMO ERA ANTIGAMENTE: A ERA DAS “BIG TECHS” 

Imagem: Rede, Globalização, Terra. (Direitos de Imagem: Gerd Altmann, 2018)

Quem me dera ao menos uma vez
Explicar o que ninguém consegue entender
Que o que aconteceu ainda está por vir
E o futuro não é mais como era antigamente
(Legião Urbana, Índios, 1986).

Desastres climáticos, pandemias, polarização política e evolução tecnológica constante. Se é que existem certezas na atual conjuntura, são as de que vivemos em incertezas, e de que “o futuro não é mais como era antigamente”. A “Era das Big Techs” representa uma das bases deste novo futuro que vem sendo forjado e levanta consigo questões como a formação de impérios tecnológicos, ameaça a direitos fundamentais e até mesmo intervenção na autonomia estatal. 

A “SOCIEDADE DOS DADOS” E O PODER DE QUEM OS DETÉM

Desde  a crise financeira que abalou o mundo em 2008, as dinâmicas econômicas mundiais passaram a ser exponencialmente ritmadas por máquinas, que coletam, analisam, produzem e trafegam dados através das fronteiras (Slaughter; Mccormick, 2021). Os fluxos transnacionais de dados se tornaram, desde então, inerentes à prática comercial, e, atualmente, as tecnologias digitais encarregadas de executá-los são responsáveis pela redução e – muitas vezes – substituição de serviços tradicionais.

 Exemplo prático disso, é o crescente fortalecimento dos serviços de streaming no Brasil, que representam concorrência direta às mídias televisivas tradicionais. Segundo o Relatório de Streaming Global do Finder de 2021, o país é o segundo maior consumidor deste tipo de serviço a nível mundial, liderando a posição na América Latina (GOV, 2024). Para além do streaming, podemos observar também uma crescente digitalização do comércio de bens tradicionais através do e-commerce, e das famosas “comprinhas online”.   

Imagem: Google data center em The Dalles, Oregon. (Direitos de Imagem: Wikicommons, 2020

O compartilhamento transfronteiriço de dados causou modificações nas dinâmicas econômicas globais, mas não se deteve a isso (Slaughter; Mccormick, 2021). Para além de elementos da economia mundial, estes estão agora associados à distribuição de poderes, e essa nova forma de poder digitalizado rearranjou substancialmente a estrutura convencional (Gu, 2023). Passou-se, portanto, a adotar um viés  tecno-informacional para o elencamento e distinção de capacidades, logo, aquele que domina a tecnologia – e consequentemente tem acesso a estas redes de dados – dita as “regras do jogo” mundial. A “sociedade dos dados” não é, portanto, somente econômica e financeira, mas também política, social e comportamental. 

É nesta conjuntura, que emergem então as grandes empresas de tecnologia (ou big techs), responsáveis por concentrar a coleta e armazenamento de dados – referentes a cidadãos, organizações, comportamentos, conhecimentos, entre outros, – em escala mundial (Feldmann, 2024). São empresas como a Google, Microsoft, X, Meta, Amazon, AliBaba e Apple que, detendo estes, passam a exercer um papel central no funcionamento de relações, sejam elas regionais, nacionais ou internacionais, entre os mais diversos atores. Há, nesse sentido, um amplo consenso de que os mercados digitais não estão mais funcionando segundo o interesse da sociedade tradicional, mas sim pelos interesses das próprias big techs (Feldmann, 2024). 

Ter estes processos concentrados nas mãos de seletas corporações globais é sem dúvidas  alarmante, uma vez que forja a criação de uma concentração de poder colossal nas mãos de um seleto grupo. Essa espécie de oligarquia tecnológica, por sua vez, implica econômica, política e socialmente, podendo inclusive afetar as soberanias estatais (Dias Francisco, 2023).

CAPITALISMO DE VIGILÂNCIA E PODER  DESCENTRALIZADO

A comercialização de dados inaugurou, segundo Shoshana Zuboff, uma nova era na dinâmica capitalista que é pautada na vigilância unilateral e na modificação de comportamentos através da arrecadação e análise de dados (Lyon, 2019). O “capitalismo de vigilância” 1permite que as grandes corporações tenham acesso exclusivo a dados da vida cotidiana de seus usuários e consumidores, e também, sejam as únicas a ofertá-los como produto. Dominando a cadeia tecnológica, essas empresas acabam influenciando cada vez mais a economia, a sociedade e até mesmo os governos nacionais. 

Os dados coletados pelas Big Techs são utilizados não somente por empresas de marketing e publicidade, mas também por sistemas de saúde, estabelecimentos educacionais e até mesmo agências governamentais (Lyon, 2019).  As gigantes tecnológicas estão cada vez mais presentes nas dinâmicas de funcionamento de sistemas governamentais ao redor do mundo, fornecendo não somente dados, mas também apoio técnico, serviços e produtos diversos, passando então, a direcionar parte das operações do sistema público (Gu, 2023).  

Imagem: Bilionário Elon Musk discursa no púlpito do Presidente Donald Trump (Direitos de imagem: RS/Fotos Públicas, 2025).

A imagem acima, referente ao discurso de Elon Musk durante a posse presidencial de Donald Trump, torna-se ainda mais emblemática tendo as considerações prévias em mente. O bilionário, dono de empresas como o X (antigo Twitter), SpaceX e Tesla, passou a chefiar o Departamento de “Eficiência Governamental” dos EUA, sendo alvo de críticas que apontam possível conflito de interesses de sua parte, já que algumas de suas empresas possuem contratos bilionários com o governo norte americano (O Globo, 2025).

 A posse de Trump, foi marcada pelo destaque às Big Techs, não somente por conta de Musk, mas pela presença de líderes como Mark Zuckerberg, Jeff Bezos e Shou Zi Chew (Szurknik, 2025). Sentados nas primeiras fileiras do evento, não se apresentam como meros apoiadores, mas como agentes políticos ativos e atuantes. A posição privilegiada no evento é simbólica para a posição – de também privilégio – que estes, assim como as empresas que comandam, desejam e vêm progressivamente ocupando no cenário político. 

Na era do capitalismo de vigilância, formaram-se centros de poder com grande influência e limites imprecisos, uma espécie de “império digital” que é relativamente independente da autoridade política, pois não é devidamente regulamentado. As gigantes tecnológicas controlam dados, monopolizam tecnologia e descentralizam o poder. São assim capazes de  controlar mercados, e agora de maneira escancarada se lançam ao jogo político, para satisfazer seus interesses. Pode-se assim dizer, que o grande desafio político das sociedades atuais é preservar a autonomia dos Estados nacionais frente às grandes empresas de tecnologia, que, se seguirem agindo de maneira completamente desreguladas, podem colocar uma série de direitos em disputa (Dias Francisco, 2023).  

O NOVO LEVIATÃ? 

Thomas Hobbes defendeu que o governo social deveria ser, realizado por um soberano absoluto, detentor de todas as capacidades do poder: o Leviatã. Este soberano, dono das leis e dos destinos daqueles que governa, representa uma força invencível, inquestionável e imparável (Gu, 2023).  À medida em que o contrato social exige a obediência de seus súditos a suas imposições, não lhe cobra obediência a nada; nem mesmo à sua própria lei. Segundo Gu (2023) as Big Techs parecem estar se transformando em um novo tipo de Leviatã, no sentido de que, não se limitam aos campos de divulgação de valores e ideologias, mas se fazem fortemente presentes em questões políticas internacionais, advogando por interesses próprios e impondo seus desejos individuais sob os demais, sem que haja devida regulamentação. 

Em qualquer um dos setores da economia, empresas estão sujeitas a regras e legislações dos países em que se localizam e operam, algumas também devem responder a regimes e tratados internacionais. No caso das Big Techs, a regulamentação é uma questão nada simples, especialmente devido a seu caráter transfronteiriço. São as próprias empresas, por exemplo, que decidem onde armazenar determinado tipo de dado, isso sem que haja necessidade de prestar contas (Lyon, 2019). A extração de dados é também um processo unilateral, onde não há relações de responsabilidade estrutural (Lyon, 2019).

Alguns esforços já vêm sendo realizados mundialmente para promover a regulamentação dos mercados digitais e  de suas corporações. No ano de 2024, por exemplo, passou a valer nos países da União Europeia a Lei dos Mercados Digitais, que exige das plataformas online dominantes o oferecimento de mais escolhas aos seus usuários, bem como de mais oportunidades competitivas aos seus rivais (Fung, 2024). As medidas tomadas visam combater questões como a invasão de privacidade dos usuários e a monopolização de tecnologias,e, consequentemente, de mercados. No Brasil, o Marco Civil da Internet, de 2014, à época inovador, atualmente é questionado quanto à necessidade de modernização (Marco Civil, 2024). Isso porque esbarra nos desafios de combate à desinformação na internet, e garantia da atuação transparente de plataformas de redes sociais, ou seja, na regulamentação das Big Techs.

Imagem: Senado aprova Marco Civil da Internet e texto segue para sanção presidencial. ( Direitos de Imagem: Waldemir Barreto/ Agência Senado, 2014)

As rápidas mudanças no meio digital levam ao questionamento da legislação atual e da atuação dos Estados frente às gigantes deste. Entretanto, a regulamentação tanto das redes, quanto das empresas que as operam é sensível e esbarra na busca por equilíbrio entre novas regras regulatórias e a garantia de liberdade de expressão, tanto nos meios digitais, quanto em seu  mercado. É preciso ter em mente, portanto, que a  liberdade de expressão e de ação não deve ser confundida com a libertinagem. Um quadro de permissividade excessiva pode vir a confirmar as previsões de “leviatanismo” das gigantes tecnológicas, consolidando-as como agentes além da lei e dos demais. Nesse sentido, exemplos como o europeu são bem-vindos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A sociedade dos dados é uma realidade, assim como aqueles que a dominam e ditam suas regras. Nesse sentido, o capitalismo de vigilância, que possui as gigantes da tecnologia em seu centro, e, representa o modelo de lucratividade desta sociedade, tem desafiado as fronteiras do poder tradicional, colocando em risco não apenas a soberania dos Estados, mas também direitos fundamentais dos cidadãos. Assim, a ascensão das Big Techs e o crescente poder que estas detêm sobre dados, tecnologias e até mesmo questões políticas demonstram a necessidade urgente de uma normatização eficaz.

É fato que o desenvolvimento de novas tecnologias têm o potencial de fomentar o crescimento humano, criando condições para o bem-estar e para a evolução das sociedades. Contudo, é preciso que isso seja equilibrado com a  proteção da autonomia estatal e dos direitos dos indivíduos, para que estes avanços tecnológicos não ocasionem retrocessos humanos.

IMAGENS

ALTMANN, Gerd. Rede, Globalização, Terra. Pixabay, 2018. [Fotografia]. Disponível em: https://pixabay.com/pt/photos/rede-globaliza%C3%A7%C3%A3o-terra-blockchain-3524352/. Acesso em: 19 fev. 2025.

BARRETO,  W. Senado aprova Marco Civil da Internet e texto segue para sanção presidencial. Fotos Públicas, 2014. [Fotografia]. Disponível em:

https://www.fotospublicas.com/acervo/politica/senado-aprova-marco-civil-da-internet-e-texto-segue-para-sancao-presidencial-8397967737. Acesso em: 20 fev. 2025. 

Google data center in The Dalles, Oregon. Wikicommons, 2020. [Fotografia]. Licença CC BY – SA 4.0 DEED. Disponível em: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Google_data_center.jpg. Acesso em: 19 fev. 2025. 

RS/ FOTOS PÚBLICAS. Bilionário Elon Musk discursa no púlpito do Presidente Donald Trump e faz gesto Nazista. Fotos Públicas, 2025. [Fotografia]. Disponível em: https://www.fotospublicas.com/acervo/mundo/bilionario-elon-musk-discursa-no-pulpito-do-presidente-donald-trump-e-faz-gesto-nazista. Acesso em: 20 fev. 2025. 

REFERÊNCIAS

DIAS FRANCISCO, Bárbara. O impacto das grandes corporações do mercado de tecnologia na ordem política mundial: uma análise sobre a ascensão do embate entre as “bigtechs” e os estados. Orientador:  Luis Hernan Contreras Pinochet.2023. Trabalho de Conclusão de Curso – Relações Internacionais, UNIFESP, Osasco, 2023

FELDMANN, Paulo. O assombroso poder das big techs na economia e na política dos países. Jornal da USP, São Paulo, 24 abr. 2024. Disponível em: https://jornal.usp.br/articulistas/paulo-feldmann/o-assombroso-poder-das-big-techs-na-economia-e-na-politica-dos-paises/. Acesso em: 16 fev. 2025.

FUNG, Brian.  Nova regulação de big techs começa a valer na Europa nesta quinta (7). CNN, 07 mar. 2024. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/economia/macroeconomia/nova-regulacao-de-big-techs-comeca-a-valer-na-europa-nesta-quinta-7-entenda/. Acesso em: 15 fev. 2025.

GOVERNO FEDERAL. Na América Latina, o Brasil lidera o consumo de streaming, mas enfrenta desafios de representatividade de conteúdo nacional. GovBr, 15 out. 2024. Disponível em: https://www.gov.br/cultura/pt-br/assuntos/noticias/na-america-latina-o-brasil-lidera-o-consumo-de-streaming-mas-enfrenta-desafios-de-representatividade-de-conteudo-nacional. Acesso em: 17 fev. 2025. 

GU, Hongfei Data, Big Tech, and the New Concept of Sovereignty. Journal of Chinese Political Science, v. 29, p. 591–612, mai. 2023. Disponível em: https://link.springer.com/article/10.1007/s11366-023-09855-1 . Acesso em: 18 fev. 2025

LEGIÃO URBANA. Índios. Brasil: EMI Records Brasil Ltda:, 1986. Disponível em: https://youtu.be/6bqM9kT9f0E?si=iua3lzZ6oCjRLg5B. Acesso em 20 fev. 2025.

LYON, David. Surveillance capitalism, surveillance culture and data politics. In: BIGO, Didier; ISIN, Engin; RUPPERT, Evelyn (ed.). Data Politics: Worlds, Subjects, Rights. Abingdon: Routledge, 2019. p. 64-77.

MARCO CIVIL. Marco Civil da Internet completa dez anos ante desafios sobre redes sociais e IA. Agência Senado, 26 abr. 2024. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2024/04/26/marco-civil-da-internet-completa-dez-anos-ante-desafios-sobre-redes-sociais-e-ia. Acesso em: 15 fev. 2025

O GLOBO. Trump anuncia Elon Musk como chefe do Departamento de ‘Eficiência Governamental’ dos EUA, inédito na Casa Branca. O Globo, 12 nov. 2024. Disponível em: https://oglobo.globo.com/mundo/eleicoes-eua/noticia/2024/11/12/trump-anuncia-elon-musk-como-chefe-do-departamento-de-eficiencia-governamental-dos-eua.ghtml. Acesso em: 20 fev. 2025. 

SLAUGHTER, M. J. MCCORMICK, D. H. Data Is Power. Foreign Affairs, 16 abr. 2021. Disponível em:   https://www.foreignaffairs.com/articles/united-states/2021-04-16/data-power-new-rules-digital-age. Acesso em: 18 fev. 2025.

SZKURNIK, Iona. O Dia D das Big Techs — a Posse de Donald Trump. Forbes Brasil, 22 jan. 2025. Disponível em: https://forbes.com.br/forbes-tech/2025/01/o-dia-d-das-big-techs-a-posse-de-donald-trump/. Acesso em: 18 fev. 2025.

  1.  Organização sistêmica, que pauta a garantia de lucro na vigilância populacional, através da arrecadação e utilização de dados e informações pessoais como forma de orientação mercadológica (Lyon, 2019). ↩︎

Ana Beatriz de Melo Lima

Goiana, graduanda em Relações Internacionais pela UFG, busca se desenvolver nas áreas de Diplomacia Tecnológica e Desenvolvimento Sustentável. Apaixonada pelo estudo de idiomas e por toda forma de arte, deseja conhecer o mundo de maneira interseccional.

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