TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL: A IMPORTÂNCIA DO TRIBUNAL DE HAIA PARA OS DIREITOS HUMANOS

TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL: A IMPORTÂNCIA DO TRIBUNAL DE HAIA PARA OS DIREITOS HUMANOS

Fonte: hosnysalah – pixabay

Talvez você já tenha ouvido falar do Tribunal Penal Internacional em alguma notícia sobre denúncias contra os Direitos Humanos, mas você sabe como ele funciona e qual a sua importância?

INTRODUÇÃO

Tradicionalmente, nas Relações Internacionais (RI), o Sistema Internacional é um lugar dominado, prioritariamente, pelos Estados nacionais e possui natureza anárquica. Não há nada acima dos Estados e eles não podem interferir ou coagir uns aos outros, como decreta o artigo 2º, § 7º, da Carta da ONU, que consagra o princípio da não-intervenção nos assuntos internos de seus membros. Isso acaba impedido uma repressão mais eficaz aos atentados contra os direitos humanos cometidos por Estados ou por alguém em seu nome (Lewandowski, 2002). Entretanto, na prática, mesmo que não seja pelo uso da força, existem maneiras mais brandas de influenciar outros atores a partir do soft power, como o poder cultural e econômico. Além disso, apesar do grande peso dos Estados, existem outros atores no cenário internacional com grande destaque e relevância, pois conseguem impactar a tomada de decisões e, até mesmo, coagir os poderosos Estados a respeitarem suas normas e seguirem certas diretrizes estabelecidas, a fim de estabelecer uma certa “ordem”. Esse é o caso das Organizações Internacionais, como a Organização das Nações Unidas e o Tribunal Penal Internacional, popularmente conhecido como Tribunal de Haia. 

COMO SURGIU TRIBUNAL PENAL INTERNCIONAL (TPI)?

O Tribunal Penal Internacional surgiu com a aprovação do Estatuto de Roma, aprovado por 120 votos a favor e sete contrários (China, Estados Unidos, Filipinas, Índia, Israel, Sri Lanka e Turquia). Ele foi instituído durante a comemoração do 50° aniversário da Declaração de Direitos Humanos e instalado em 2002, em Haia, na Holanda, entrando em vigor na Convenção de Roma1 a partir do trabalho da Comissão de Direito Internacional (1950-1954 e 1990-1994) (Barzotto; Jiménez, 2022).

Inicialmente, eram 60 Estados ratificantes e, atualmente, são 123 Estados. O Brasil assinou o Estatuto de Roma em fevereiro de 2000 e o ratificou em 1° de julho de 2002, colocando-o,desde então, em vigor na legislação brasileira. No mais, ele é um organismo internacional permanente, com personalidade jurídica própria para investigar e julgar indivíduos acusados de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crime de agressão. O TPI é composto por quatro órgãos: Presidência, Seções Judiciais (Recursos, Julgamento em Primeira Instância e Instrução), Promotoria e Secretariado (MRE, 2022). 

As suas competências são restritas pelo artigo 5° aos crimes tipificados no Estatuto, segundo o planalto: genocídio (art. 6º); crimes contra a humanidade (art. 7º); crimes de guerra (art. 8º) e agressão (art. 8º bis). O preâmbulo do Estatuto de Roma destaca que é dever de todo Estado exercer sua jurisdição penal contra os responsáveis de crimes internacionais e o Tribunal é complementar às  jurisdições penais nacionais. Isso significa que ele tem competência para influenciar e sugerir tomadas de decisões e jurisdições domésticas, podendo intervir quando julgar necessário perante a inércia ou condescendência dos Estados envolvidos. A relação entre o Tribunal e os Estados é baseada no princípio da complementaridade, respeitando a soberania dos Estados e, por isso:

[…] compreende, por um lado, o reconhecimento ao direito e ao dever de cada Estado de processar os crimes internacionais cometidos dentro de sua jurisdição e, por outro, o poder do Tribunal de intervir e complementar a ação dos Estados em caso de inércia, incapacidade ou inabilidade desses. Assim, o Tribunal está destinado a reforçar a obrigação primária dos Estados de prevenir e processar crimes internacionais (Steiner; Cerda, 2012, p. 214).

COMO FUNCIONA E QUAL A IMPORTÂNCIA DO TRIBUNAL DE HAIA?

O Estatuto de Roma prevê três mecanismos para que sejam iniciadas investigações pela Promotoria. Uma situação pode ser denunciada por um Estado Parte no Estatuto de Roma, encaminhada pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) e, somente neste caso, há a possibilidade de investigação e julgamento de crimes sem vínculo territorial ou de nacionalidade ativa com Estado que tenha aceitado a jurisdição do TPI. Outro meio é ter a sua investigação iniciada de ofício (proprio motu) pela Promotoria. Neste caso, é exigido o vínculo territorial ou de nacionalidade ativa entre o crime e um Estado Parte no Estatuto. Antes de dar início a uma investigação formal, a Promotoria em geral realiza exames preliminares, quando analisa a viabilidade de um processo criminal para determinada situação. Por fim, o TPI só poderá intervir quando o Estado com jurisdição sobre o caso não estiver em condições ou com disposição de investigar e eventualmente julgar o acusado (MRE, 2022).

A inimputabilidade dos governantes se perpetuou durante a Primeira Guerra Mundial, na qual nenhum governante, militar ou soldado, foi responsabilizado pelos crimes cometidos, assim como durante a Segunda Guerra.  Só depois desta foi dado o primeiro passo, pelas potências vencedoras, para punir aquilo que foi considerado crime contra a humanidade, bem como crime contra a paz e guerra de agressão, considerados contrários ao Direito Internacional (Lewandowski, 2002).

O Tribunal Penal Internacional é uma instituição independente da ONU, mas possui uma relação de cooperação com esta, enviando anualmente relatórios à Assembleia Geral e se submetendo a certas ordens do Conselho de Segurança. A Assembleia Geral da ONU de 2012 destacou o papel do Tribunal Penal Internacional dentro do sistema multilateral como um instrumento do Direito Internacional essencial no combate à impunidade, que mudou a percepção dos crimes graves, apresentando a possibilidade de intervenção, encorajando as autoridades nacionais a agirem e combater os crimes. Além da promoção e do controle, consegue se impor sobre as jurisdições nacionais, contra os Estados e em defesa dos direitos dos cidadãos e dignidade do ser humano (Barzotto; Jiménez, 2022).

Antigamente, pouco se era feito no plano internacional para coibir genocídios, massacres, torturas e outras ofensas aos direitos humanos devido à falta de meios legais e institucionais para punir e responsabilizar os governos ou indivíduos que conduziram tais atos. Essa ideia de impunidade aos governantes era ainda defendida por diversos autores como Maquiavel, Hobbes, Richelieu, Bismarck, entre outros (Lewandowski, 2002).

[…] é a primeira vez na história das relações entre Estados que se consegue obter o necessário consenso para levar a julgamento, por uma corte internacional permanente, políticos, chefes militares e mesmo pessoas comuns pela prática de delitos da mais alta gravidade, que até agora, salvo raras exceções, têm ficado impunes, especialmente em razão do princípio da soberania (Lewandowski, 2002, p. 1).

No entanto, o TPI, perante o princípio da complementaridade, consegue fazer com que os Estados adotem medidas necessárias na luta contra os autores de crimes internacionais, avaliando a gravidade dos crimes e a relação das pessoas que aparentam ter maior responsabilidade nessas ações (Barzotto; Jiménez, 2022). O Tribunal também segue os princípios da universalidade; princípio da responsabilidade penal individual, princípio da irrelevância da função oficial; princípio da responsabilidade de comandantes e outros superiores, e o princípio da imprescritibilidade.

Para tanto, foram instituídos os tribunais de Nüremberg e de Tóquio para julgar dirigentes políticos e militares das potências derrotadas, que rejeitaram as escusas levantadas pelos acusados para escapar à punição, como o cumprimento de ordens superiores, a prática de atos de soberania e a tomada de medidas ditadas pela necessidade militar. Algum tempo depois a comunidade internacional interveio na ex-Iugoslávia, onde uma luta fratricida lançou sérvios contra croatas e outras etnias, e em Ruanda, em cujo território extremistas hutus massacraram os rivais da nação tutsi. Foram então criados dois tribunais ad hoc para aquelas áreas, em 1993 e 1994, respectivamente, para fazer cessar e punir os gravíssimos abusos cometidos em ambas as contendas. Na sequência, resolveu-se instituir uma corte criminal permanente, para evitar a seletividade representada pela instituição de tribunais ad hoc, que dependem de decisão do Conselho de Segurança da ONU, no qual cinco potências têm o poder de veto (Lewandowski, 2002, p. 3-4).

ATUALIDADES

Recentemente, no último dia 10 de janeiro, o Itamaraty divulgou uma nota afirmando que o presidente Lula anunciou o apoio do governo brasileiro à denúncia da África do Sul à Corte Internacional de Justiça da ONU, a Corte de Haia, para a apuração da acusação de que Israel estaria cometendo genocídio contra o povo palestino em Gaza. O documento acusa o Estado judeu de descumprir a Convenção Internacional contra o Genocídio e violar os direitos internacionais humanitários e solicita que Israel cesse, imediatamente, todos os atos e medidas que possam ser entendidas como genocídio, segundo a nota do governo brasileiro.

À luz das flagrantes violações ao direito internacional humanitário, o presidente manifestou seu apoio à iniciativa da África do Sul de acionar a Corte Internacional de Justiça para que determine que Israel possam constituir genocídio ou crimes relacionados nos termos da Convenção para Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio.

Comunicado oficial do Itamaraty

O crime de genocídio pode ser descrito como qualquer ato praticado “com intenção de destruir total ou parcialmente grupo nacional, étnico, racial ou religioso”, compreendendo: (1) matar membros do grupo; (2) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo; (3) submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capaz de ocasionar-lhes a destruição física, total ou parcial; (4) adotar medidas destinadas a impedir nascimentos no seio do grupo; e (5) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo, de acordo com o Estatuto de Roma e assegurado pela LEI Nº 2.889, DE 1º DE OUTUBRO DE 1956.

Já os crimes previstos como crimes contra a humanidade são qualificados como “qualquer ato praticado como parte de um ataque generalizado ou sistemático contra uma população civil e com conhecimento de tal ataque”, incluindo: (1) homicídio; (2) extermínio; (3) escravidão; (4) deportação ou transferência forçada de populações; (5) encarceramento ou privação grave da liberdade física em violação a normas fundamentais de direito internacional; (6) tortura; (7) estupro; (8) escravidão sexual, prostituição compulsória, gravidez imposta, esterilização forçada ou outros abusos sexuais graves; (9) perseguição de um grupo ou coletividade com identidade própria, por motivos políticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais ou religiosos; (10) desaparecimento de pessoas; (11) apartheid; e (12) outras práticas que causem grande sofrimento ou atentem contra a integridade física ou saúde mental das pessoas.

A África do Sul, em 29 de dezembro, abriu um processo na CIJ, iniciando no dia 11 de janeiro sua acusação contra Israel pelos crimes de genocídio praticados em Gaza e solicitando, entre outras medidas, uma pausa imediata nos ataques. A Guerra já deixou cerca de 2 mil israelenses e mais de 26 mil palestinos mortos. Israel apresentou sua defesa no dia seguinte, dia 12 de janeiro, rejeitando veementemente as acusações.

De acordo com notícia do G12, no dia 26/01, a Corte de Haia decidiu que Israel deve tomar medidas cabíveis para “previnir um genocídio” na Faixa de Gaza, medida que também se aplica ao Hamas. Além disso, Israel precisa aumentar o nível de ajuda humanitária, comida e remédios para o território palestino, mas o pedido de cessar-fogo imediato não foi ordenado. Segundo a CNN3, também foi uma derrota jurídica parcial para Israel, pois a Corte levará adiante as acusações e investigações contra o crime de genocídio. A decisão permitiu que cada parte envolvida criasse uma narrativa vitoriosa.


Segundo a BBC, Israel precisa tomar as seguintes medidas provisórias determinadas pela Corte:

  1. Israel deve tomar todas as medidas possíveis para prevenir quaisquer atos que possam ser considerados de genocídio, entre os quais matar membros de um grupo étnico, causar danos corporais, infligir condições destinadas a provocar a destruição do grupo ou impedir nascimentos;
  2. Israel deve garantir que os seus militares não cometam quaisquer atos considerados de genocídio;
  3. Israel deve prevenir e punir quaisquer comentários públicos que possam ser considerados incitamento ao genocídio em Gaza;
  4. Israel deve tomar medidas para garantir o acesso à ajuda humanitária em Gaza;
  5. Israel deve impedir qualquer destruição de provas que possam ser utilizadas em um caso de genocídio;
  6. Israel deve apresentar um relatório ao tribunal no prazo de um mês após esta ordem ser dada.

As decisões da CIJ são vinculantes, ou seja, Israel tem que cumpri-las, mas não existe mecanismo para garantir o cumprimento das determinações. No dia 24 de fevereiro de 2022, a Ucrânia fez um pedido semelhante à Corte, que ordenou que a Rússia suspendesse sua campanha militar, mas o país ignorou a sentença. Além do Brasil, Austrália, Canadá e Nova Zelândia, em uma declaração conjunta, também tornaram público o pedido para que Israel pare imediatamente com os bombardeios em Gaza. Os três países se juntam aos 153 representantes estrangeiros que já subscreveram uma declaração conjunta instando ao imediato cessar-fogo. Segundo informações da Agência das Nações Unidas para Refugiados, as forças militares israelenses foram responsáveis pela morte de mais de 25 mil palestinos. No último dia 18/02, o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, afirmou que o presidente Lula é persona non grata em Israel, devido às declarações de Lula comparando o genocídio de judeus por Hitler com os eventos em curso na Faixa de Gaza. Porém, o governo brasileiro não pretende reconsiderar sua posição e reafirmou o apelo por um cessar-fogo imediato.

O que está acontecendo na Faixa de Gaza com o povo palestino não existe em nenhum outro momento histórico. Aliás, existiu: quando Hitler resolveu matar os judeus

Fala do Presidente Lula em entrevista durante a reunião da cúpula da União Africana

O posicionamento do presidente Lula causou grande impacto no cenário internacional e doméstico dividindo opiniões, mas não deixa de ter sido um posicionamento necessário diante do cenário de destruição e horror que o povo palestino vem sofrendo. Foram ataques pessoais e políticos e até mesmo comoção e apoio de outros países e chefes de Estados, tanto ao presidente como à causa. Agora, resta acompanharmos as próximas movimentações de Israel e da Corte.

CONCLUSÃO

Os Estados não são obrigados a internalizar os Tratados estabelecidos pelos organismos internacionais, mas não acatar significa ficar “mal-visto” perante outros atores e, às vezes, gerar conflitos de interesse e punições, podendo chegar a denúncias e julgamentos perante o Tribunal e as Cortes Internacionais. Ser condenado por crimes de guerra, por ferir os direitos humanos, gera embargos, dívidas e sanções. Isso desencadeia relações fragilizadas com parceiros comerciais e políticos e prejudica a política externa dos Estados.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Barzotto, Luciane C; Jiménez, Martha L.O. A Competência do Tribunal Penal Internacional: Trabalho Escravo e a Cooperação Internacional no Brasil. Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 81, pp. 319-337, jul./dez. 2022. DOI: 10.12818/P.0304-2340.2022v81p319

Lewandowski, E. R.. (2002). O Tribunal Penal Internacional: de uma cultura de impunidade para uma cultura de responsabilidade. Estudos Avançados, 16(45), 187–197. https://doi.org/10.1590/S0103-40142002000200012

Ministério das Relações Exteriores, MRE, 2022. Disponível em: https://www.gov.br/mre/pt-br/delbrasonu/temas-juridicos/tribunal-penal-internacional

  1. A Convenção de Roma de 1980 trata a respeito da lei aplicável às obrigações contratuais nas situações que impliquem um conflito de lei (https://jus.com.br/artigos/102802/convencao-de-roma-1980) ↩︎
  2. https://g1.globo.com/mundo/noticia/2024/01/26/corte-internacional-de-justica-decide-levar-adiante-processo-da-africa-do-sul-contra-israel.ghtml ↩︎
  3. https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/africa-do-sul-e-israel-comemoram-decisao-de-tribunal-da-onu-mas-ninguem-saiu-ganhando/#:~:text=Com%20a%20decis%C3%A3o%20de%20sexta,a%20quest%C3%A3o%20do%20genoc%C3%ADdio%20completamente ↩︎

Fernanda de Oliveira Batista

Nortista, bacharel em Relações Internacionais pela UFGD e mestranda de Gestão de Políticas Públicas na USP-SP. Entusiasta da área das RI, Terceiro Setor e Políticas Públicas.

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