A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO E SUA APLICAÇÃO PORTUGUESA PÓS 25 DE ABRIL

A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO E SUA APLICAÇÃO PORTUGUESA PÓS 25 DE ABRIL

25 de abril de 1974 – Data da Revolução dos Cravos, contra o regime ditatorial Salazarista em Portugal

Justiça de Transição” é um termo já discutido desde os anos 1970 diante dos processos de transição e consolidação de democracias, a expressão (em inglês, justice in times of transition) surgiu pela primeira vez nas palavras de Ruti Teitel, professora da Escola de Direito de Nova York, em 1992. Trata-se de um instrumento jurídico de apoio à reconstrução pacífica de sociedades após conflitos, de forma a fortalecer as instituições políticas e judiciais (BUANI, 2012).

Esse importante recurso pode gerar resultados ainda melhores quando somados a processos de internacionalização do direito, principalmente no que tange a sua legitimidade. A racio do instituto é auxiliar na reestruturação de um sistema jurídico que esteja fragilizado após um conflito, na busca pela estabilização e manutenção da paz e segurança da sociedade. Certo é que a internacionalização da justiça é uma realidade nas sociedades por todo o mundo e, segundo Buani (2012), a justiça de transição é o momento em que as influências do direito internacional interagem de forma mais intensa com o direito interno.

O presente artigo busca apresentar o mecanismo da justiça de transição, traçando sua definição, seus antecedentes históricos e a sua aplicação no processo de redemocratização portuguesa após a Revolução dos Cravos que esse ano completa 50 anos.

CONCEITO

Em 2004, a ONU elaborou um relatório sobre justiça de transição nas sociedades de conflito e pós conflito (The rule of law and transitional justice in conflict and post-conflict societies: report of the Secretary-General, em inglês), estabelecendo um importante conceito para estudo e compreensão do instituto (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2004. Tradução nossa):

“A noção de justiça transicional discutida no presente relatório compreende toda a gama de processos e mecanismos associados às tentativas de uma sociedade em lidar com um legado de abusos passados em grande escala, a fim de garantir responsabilização, servir a justiça e alcançar a reconciliação. Os processos podem incluir ambos mecanismos judiciais e não judiciais, com diferentes níveis de atuação internacional, envolvimento (ou nenhum) e processos individuais, reparações, busca da verdade, reforma institucional, verificação e demissões, ou uma combinação destes.” [1]

Assim, trata-se de um mecanismo utilizado para lidar com violações de Direitos Humanos e ações de regimes autoritários e ditatoriais, na busca de uma sociedade livre desses atos, onde possa ser alcançada a reparação e garantia de direitos das vítimas na promoção da pacificação social.

Nas palavras de Paul Van Zyl (2005):

Pode-se definir a justiça transicional como o esforço para a construção da paz sustentável após um período de conflito, violência em massa ou violação sistemática dos direitos humanos. O objetivo da justiça transicional implica em processar os perpetradores, revelar a verdade sobre crimes passados, fornecer reparações às vítimas, reformar as instituições perpetradoras de abuso e promover a reconciliação.

Para melhor compreensão do instituto, cabe aqui um estudo dos elementos chaves dos objetivos dispostos na definição acima (ZYL, 2005):

1)    Processar os perpetradores: a atuação da justiça no julgamento dos crimes cometidos no período de conflito e violência gera o entendimento de punição de ações ilícitas, desencorajando e evitando futuros crimes, bem como, trazendo sentimento de consolo às vítimas. Outrossim, diante de crimes e violações que se mostram generalizadas e sistemáticas, torna-se necessário recorrer ao direito internacional, nas nações em que os sistemas penais se mostram insuficientes. Nesses tipos de caso, invocam-se à atuação de tribunais penais internacionais;

2)    Revelar a verdade: o conhecimento e registro dos atos passados se tornam de suma importância para a prevenção de que os fatos criminosos e as violações de Direitos Humanos se repitam nas gerações futuras;

3)    Reparar as vítimas: Trata-se de regra do direito internacional, em que os Estados têm a obrigação de reparar os danos causados às vítimas em decorrência das violações de Direitos Humanos;

4)    Reformar instituições: As instituições responsáveis pelas violações de direito perpetradas precisam ser renovadas ou até dissolvidas. Trata-se de responsabilidade do governo estabelecido após a transição;

5)    Promover reconciliação: Não se trata aqui de um perdão obrigatório e indistinto, ou uma forma de evitar a responsabilização de crimes. A busca aqui se dá em evitar divisões e polarizações que têm potencial para gerar o retorno da violência, principalmente em conflitos acerca de religião, raça ou etnia.

Desta forma, essas ações possibilitam uma forma de deslegitimar o regime político anterior, e trazer a legitimação do regime sucessor, com uma estruturação política da nova ordem democrática estabelecida. Para isso, podem-se associar cinco concepções de justiça: penal, histórica, reparatória, administrativa e constitucional (TEITEL, 2000).

ANÁLISE HISTÓRICA DO INSTITUTO

O período pós-Segunda Guerra Mundial trouxe um avanço na interdependência dos países no sistema internacional. Isso se deu com o propósito de estabelecer mecanismos para coordenação dos Estados com foco principal na segurança, busca da manutenção da ordem e da estabilidade entre estes atores das relações internacionais. Foi nessa época que se fortaleceu a procura pela cooperação internacional, o que levou as Organizações Internacionais a buscarem lidar com os aspectos necessários para a reconstrução dos estados, como garantia necessária à estabilidade, não só local, mas também regional, diante do contexto mundial que deixou de ser isolado.

 Dessa forma, o tema passou a ser abordado de forma frequente nas discussões do Conselho de Segurança da ONU, órgão cuja função é a responsabilidade pela manutenção da paz e segurança internacional. Diante das diversas experiências de conflitos que foram se desenrolando no cenário internacional, reforçou-se a ideia de que as ações empregadas deveriam ter o enfoque de não somente parar com as atrocidades, mas também responsabilizar os culpados, apurar a verdade e auxiliar as vítimas.

 A linha do tempo pode ser traçada desde o colapso da União Soviética e a queda do muro de Berlim, gerando urgência na atuação da justiça de transição. Seguiu-se, então, a queda de ditaduras militares na América Latina, no Leste Europeu e na África. Após, seguiu-se a chamada “terceira onda”, com as revoluções liberais na Europa, África, Ásia e América do Sul, o que expandiu a necessidade da aplicação internacional de Direitos Humanos para a restauração da democracia, surgindo, assim, a capitulação de delitos como genocídio e outros crimes contra a humanidade, requerendo um posicionamento global na busca por evitar novas tragédias dessa natureza. A justiça de transição foi essencial para abrir o diálogo nas sociedades afetadas e iniciar o longo caminho para a paz (BUANI, 2012).

A análise histórica da justiça de transição deverá ser intimamente ligada ao histórico da proteção dos Direitos Humanos, com os atos normativos nesse sentido a nível nacional e global. O reconhecimento desse direito também se deu as lutas históricas em matérias dos direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais. Ou seja, a concepção da justiça de transição passa pelo tema dos Direitos Humanos, e a sua importância na construção do Estado Democrático de Direito, que terá o dever de investigar e punir violações desses direitos.

A evolução da proteção aos Direitos Humanos pode ser identificada como relativamente recente em diplomas internacionais, que assumem a forma de Tratados Internacionais com caráter obrigatório e vinculativo às nações signatárias. Alexandre de Moraes (2011) menciona a evolução dos direitos individuais passando desde a Lei das Doze Tábuas do Império Romano, com forte desenvolvimento das declarações de direitos fundamentais a partir do século XVIII a meados do século XX, chegando à Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas (Resolução 217 A III) em 10 de dezembro 1948.

A TRANSIÇÃO PORTUGUESA PÓS 25 DE ABRIL

Dentre os processos de transição mundiais, Portugal foi o pioneiro da chamada “terceira vaga” de democratizações ocorridas na final do século XX, com o exílio da força política, o julgamento da principal instituição do regime ditatorial e a criação dos mecanismos de julgamento e compensação de vítimas. Inicialmente cabe uma breve análise histórica da instalação e queda do período de opressão no país.

A ditadura portuguesa se iniciou em 1926 após um golpe militar em que Antônio de Oliveira Salazar foi colocado no poder da nação. O governo salazarista foi inspirado no fascismo na Itália e a constituição instaurada em 1933 funcionou como base para a restrição de toda liberdade de expressão e a organização do país (BORGES, 2020). Esse regime que foi chamado de Estado Novo, tinha como características o corporativismo, que enfraquecia os conflitos de classe, a perseguição aos partidos políticos opositores, concentração de poder, censura, o anticomunismo, nacionalismo, colonialismo e a defesa de ideais conservadores (SILVA, 2023).

O regime entrou em decadência na década de 1960, diante de desgastes econômicos e guerras coloniais que visavam impedir a independência das colônias portuguesas na África e Ásia, notadamente Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Goa e Timor-Leste. Após um derrame cerebral, Salazar foi substituído por Marcello Caetano em 1968, e, dois anos depois, faleceu o ditador, em 1970. Esses acontecimentos agravaram ainda mais o regime, criando brechas para o início de uma revolução, o que culminou no golpe que ficou conhecido como Revolução dos Cravos em 25 de abril de 1974, com a ocupação de tropas portuguesas na capital, levando à destituição de Marcello Caetano do poder e derrubando a ditadura portuguesa.

Iniciada a reconstrução democrática, buscou-se estratégias jurídicas para estabelecer a justiça de transição, com foco inicial nas violações praticadas durante o regime autoritário. Uma das primeiras medidas foi a extinção da polícia salazarista e a criação de uma Comissão especial encarregada da apuração das responsabilidades de seus integrantes e colaboradores (RAIMUNDO, 2018). Nesse sentido, evitou-se o uso da justiça comum, que havia sido instituída na própria vigência do Estado Novo, o que não seria razoável no uso do julgamento de seus próprios integrantes. Dessa forma, optou-se pelo envio desses processos aos Tribunais Militares Territoriais, uma vez que estes permitiam a prisão provisória por prazo maiores do que 18 meses. Segundo Raimundo, (2018, p.49-50), esses Tribunais Militares analisaram, no período de 1976 e 1982, cerca de 2.667 processos de colaboradores do regime ditatorial, em que a alguns foi concedido perdão parcial das penalidades.

Em relação a Marcello Caetano, sucessor de Salazar, o ex-líder foi exilado logo após o 25 de abril, falecendo no Brasil. Já a apuração das responsabilidades dos integrantes do regime se deu de forma concentrada, sem atribuições individuais e específicas dos atos cometidos, e a judicialização foi se enfraquecendo a médio e longo prazo (GALLO, 2022).

Antônio de Oliveira Salazar – 28/04/1889 – 27/07/1970

PORTUGAL PÓS REVOLUÇÃO

O processo de transição democrática levou a importantes avanços em Portugal, tais como saúde, educação, direitos das mulheres e novos valores sociais. Os relatos seguintes dão o tom da importante mudança ocorrida na nação. Segundo o Analista Político António Costa Pinto, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa

“Talvez o êxito mais importante do ponto de vista social tenha sido a construção progressiva de um Estado social e de um Sistema Nacional de Saúde (SNS) para todos. Num país que antes dependia de instituições privadas ou da beneficência para socorrer os seus doentes, o SNS foi um dos primeiros projetos empreendidos após a revolução.”

Nas palavras da escritora portuguesa Lídia Jorge (FERNANDEZ, 2019):

“A Revolução foi uma libertação total para as mulheres que tinham um papel reduzido, insignificante, eram sempre as mais analfabetas, não tinham direitos. O nosso Código Civil fazia com que não pudessem viajar sem autorização do marido”

Percebe-se, portanto, a presença dos elementos chaves da transição trazidos na apresentação teórica do instituto estudado no presente artigo, desde o processamento da verdade, passando pela reparação de instituições e vítima até a reconciliação. Isso levou às mencionadas mudanças de mentalidade e dos valores na sociedade portuguesa.

Comício contra as ditaduras, promovido pelo Partido Republicano Radical no Largo de Camões em Lisboa (30Dez1923)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Cinquenta anos após o processo de redemocratização, é notório o balanço positivo da sociedade portuguesa após essa fase de transição, seja pelo próprio processo de instauração da democracia, seja pelo posterior processo de integração europeia que se iniciou alguns anos depois. Contudo, resta evidente a necessidade de que as memórias da época de repressão não sejam apagadas, tanto para garantia de compensação das vítimas, quanto para que se evite a repetição de episódios dessa natureza.

O jubileu da Revolução do Cravos acontece logo após a vitória da Aliança Democrática Portuguesa nas últimas eleições legislativas ocorridas em 10 de março de 2024, após 20 anos de continuidade do Partido Socialista, de centro-esquerda. A atual coligação de centro-direita é uma reedição da Aliança formada logo após a revolução, em 1979. Percebe-se que, desde 1974, o país tem vivido um período de estabilidade democrática, e grande integração regional pós adesão ao poderoso bloco da União Europeia, e a esperança é que a justiça de transição seja uma realidade distante dessa nação, algo que foi primordial no passado, mas que não seja necessária no futuro.

REFERÊNCIAS:

BORGES, Dayane. Revolução dos Cravos – O que foi, história, causas e as consequências. Disponível em: <Revolução dos Cravos – O que foi, história, causas e as consequências (r7.com)> Acesso em 30 de março de 2024.

BUANI. Christiani Amaral. A justiça de transição: ápice da internacionalização do direito? Revista de Direito Internacional. volume 9, n. 4, 2012 Número Especial: Internacionalização do Direito.

FERNANDEZ, Paula. Como mudou Portugal desde a revolução dos cravos. Universidade de Lisboa. Disponível em: <como_mudou_portugal_desde_a_revolucao_dos_cravos.pdf (ulisboa.pt)> Acesso em 30 de março de 2024.

GALLO, Carlos Artur. A justiça das transições: uma proposta de análise para Portugal, Espanha, Argentina e Brasil. Disponível em: < https://doi.org/10.1590/0103-3352.2022.38.253850 > Acesso em 30 de março de 2024.

MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais: teoria geral. São Paulo: Atlas, 2011.

RAIMUNDO, Filipa. “A Justiça de Transição e a Memória do Autoritarismo em Portugal. Disponível em: <11 RAIMUNDO, Filipa. “A Justiça de Transição e a Memória do Autoritarismo em Portugal.pdf (usp.br)> Acesso em 30 de março de 2024.

RAIMUNDO, Filipa. Ditadura e democracia, legados da memória. Lisboa: FFMS, 2018.

SILVA, Daniel Neves. Salazarismo. Disponível em: <Salazarismo – História do Mundo (historiadomundo.com.br)> Acesso em 30 de março de 2024.

TEITEL, Ruti. Transitional Justice. Oxford University Press. 2000 p. 6

TEÓFILO, João. Justiça de Transição: o que fazer com as heranças de um passado violento. In: Café História. Disponível em: <https://www.cafehistoria.com.br/justica-de-transicao-historia/> Acesso em 23 de março de 2024.

VASCONCELOS, Daniela Mateus. Justiça de Transição e Direito Internacional: o direito à verdade e o dever do Estado de processar e punir graves violações aos direitos humanos. E-Civitas – Revista Científica do Departamento de Ciências Jurídicas, Políticas e Gerenciais do UNI-BH – Belo Horizonte, volume VI, número 2,2013.

WAISBERG, Tatiana. A teoria e prática da Justiça de Transição: Breves comentários. Disponível em: <A teoria e prática da Justiça de Transição: Breves comentários (ambitojuridico.com.br)> Acesso em 24 de março de 2024.

ZYL, Paul Van. Promovendo a justiça transicional em sociedades pós-conflito. Disponível em: <r30625.pdf (corteidh.or.cr)> Acesso em 23 de março de 2024.

NOTAS:

[1] The notion of transitional justice discussed in the present report comprises the full range of processes and mechanisms associated with a society s attempts to come to terms with a legacy of large-scale past abuses, in order to ensurE accountability, serve justice and achieve reconciliation. These may include both judicial and non-judicial mechanisms, with differing levels of international involvement (or none at all) and individual prosecutions, reparations, truth-seeking, institutional reform, vetting and dismissals, or a combination thereof. – The rule of law and transitional justice in conflict and post-conflict societies : (un.org)

IMAGENS:

[Em destaque] File:Coruche mural 25 Abril.jpg – Wikimedia Commons

[1] File:Antonio de Olivera Salazar sitting at his desk (by Bernard Hoffman, 1940) – Google Art Project.png – Wikimedia Commons

[2] File:Comício contra as ditaduras, promovido pelo Partido Republicano Radical no Largo de Camões em Lisboa (30Dez1923) – Ilustração Portuguesa (05Jan1924).png – Wikimedia Commons

Priscila Tardin

Luso-brasileira, apaixonada pela África. Profissional do Direito que está se especializando em Relações Internacionais para viver o melhor desses dois mundos. Entusiasta de novos desafios e experiências transculturais, com muita facilidade em comunicação e no aprendizado de novos idiomas.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *