INVASÃO SOVIÉTICA NO AFEGANISTÃO: A HISTÓRIA NÃO CONTADA

INVASÃO SOVIÉTICA NO AFEGANISTÃO: A HISTÓRIA NÃO CONTADA

Mujahedin segurando duas munições de lança-foguete. Foto por Robert Nickelsberg, via All That’s Interesting.

Localizado em uma região extremamente importante entre as principais rotas comerciais do Oriente Próximo e da Ásia, o Afeganistão sempre sofreu influências externas de vários povos, desde a dinastia persa até os britânicos. Portanto, o objetivo deste artigo é analisar as consequências de apenas uma das várias invasões ao Afeganistão. Neste caso, a invasão soviética. No entanto, faz-se necessário apresentar uma breve contextualização geográfica e histórica do país, para, então, ser possível analisar as consequências da invasão proporcionada pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).

CONTEXTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO

Também conhecido como “o cemitério de impérios”, o Afeganistão está localizado entre o leste-asiático (na fronteira com a China), o Sul da Ásia (na fronteira com o Paquistão), a Ásia Central (fazendo fronteira com o Tadjiquistão, Turcomenistão e Uzbequistão) e o Oriente Médio (na fronteira com o Irã) (WAHAB; YOUNGERMAN, 2010, p. 1).

Mapa político do Afeganistão. Imagem por Encyclopædia Britannica.

“Fácil de entrar, difícil de sair” é uma frase atribuída a Alexandre, O Grande, e dita no contexto da invasão do Império da Macedônia sobre a região que hoje é o Afeganistão, e que ilustra bem as invasões àquela região, já que a geografia do país – com suas extensas cadeias montanhosas[1] – e seu longo histórico de invasões, fazem com que dominar aquela localidade seja algo muito penoso de ser conquistado. Portanto, assim como a invasão comandada por Alexandre da Macedônia, a invasão soviética não seria nada fácil e muito menos vitoriosa.

Mapa topográfico do Afeganistão. Imagem por Wikimedia Commons.

A população afegã é composta por inúmeros grupos étnicos. Estimativas da CIA realizadas em 2009 e apresentadas no livro “A Brief History of Afghanistan”, estimam que cerca de 42% da população é do grupo étnico dos pashtuns, 27% são tadjiques, 9% são hazaras, 9% são uzbeques, 4% são aimaques, 3% são turcomanos, 2% são baluchis e os 4% restantes fazem parte de outros grupos étnicos. Dentre esses grupos étnicos, os pashtuns são os que têm maior voz política no país (WAHAB; YOUNGERMAN, 2010, p. 14-18).

Além disso, como afirmam Traumann e Kaminski (2016, p. 4):

“[…] A colcha de retalhos tribal afegã – assim como as africanas e asiáticas – foi um produto das delimitações territoriais por potências coloniais que aglutinou povos com culturas, línguas, costumes e crenças diferentes sob um mesmo território, dificilmente sendo compreendido como Estado-nação.”

Essa diversidade étnica é justamente o motivo que impede a dominação do país, sobretudo, por “forças externas”. Wahab e Youngerman (2010, p. 14) argumentam que mesmo em momentos de guerra e invasões estrangeiras “os afegãos sempre colocam suas diferenças de lado e se unem contra o inimigo comum”, o que aconteceu tanto com a invasão britânica no século XIX e início do século XX quanto com os soviéticos nos anos 80.

RELAÇÕES SOVIÉTICAS-AFEGÃS

Desde que o Afeganistão tornou-se independente do Reino Unido após a Terceira Guerra Anglo-Afegã em 1919, o Império Russo – primeiro Estado a reconhecer a independência daquele país – viu uma grande oportunidade de colaboração com o povo afegão. Com a assinatura do Tratado de Amizade em maio de 1921, ficou evidente o interesse do país na região. Nesse sentido, a União Soviética também passou a investir no Estado, desde ajudas com a infraestrutura até treinamento militar (TRAUMANN; KAMINSKI, 2016, p. 5).

Em 1953 e 1954, o então primeiro-ministro afegão, Mohammed Daoud Khan tentou buscar apoio militar dos americanos para as questões referentes às fronteiras com o Paquistão. No entanto, os Estados Unidos decidiram negar o pedido, que anos mais tarde foi aceito pelo primeiro-ministro da União Soviética, Nikita Khrushchov (RIEGER; TEIXEIRA, 2013, p. 32).

Com a não solução das questões com o Paquistão e uma crescente deterioração das relações afegã-paquistanesas, em 1961, o premier Daoud pede novamente ajuda americana e mais uma vez recebe uma resposta negativa. Dada a ausência de resoluções para as questões fronteiriças, o premiê Daoud Khan informa sua renúncia em 1963.

O GOLPE DE ESTADO (1973)

A primeira das muitas reviravoltas que aconteceram no Afeganistão, afirmam Wahab e Youngerman (2010, p. 133-140), começou em 17 de julho de 1973, quando as Forças Armadas sob o comando do tenente-general Mohammed Daoud Khan realizam um Golpe de Estado que – quase sem derramar nenhuma gota de sangue – aboliu o seu primo, o monarca Mohammad Zhahir Xá.

O Golpe de Estado de 1973 tornou-se realidade graças ao apoio que Daoud Khan – um militar com treinamento soviético – recebeu da ala esquerdista das Forças Armadas e da facção Parchamis[2] do Partido Democrático do Povo do Afeganistão (PDPA).

REVOLUÇÃO DE SAUR (1978)

Entre 1973 e 1977, inúmeras crises políticas e econômicas surgiram no país e, por ter um governo de caráter modernista, cada vez mais a lealdade de Daoud era testada pelos soviéticos, que em uma aliança com o PDPA tramaram o golpe de Estado e o assassinato do líder Daoud Khan e sua família em 27 de abril de 1978 (RIEGER; TEIXEIRA, 2013). Após o golpe, o país é renomeado como República Democrática do Afeganistão (RDA) e a dinastia dos Durrani de mais de duzentos e trinta anos chega ao fim (BBC NEWS, 2009).

Com a Revolução, os insurgentes entregaram o cargo de primeiro-ministro nas mãos do líder militar e integrante da facção dos Khalqis, Hafizulla Amin, enquanto Nur Mohammed Taraki foi alocado como líder intelectual dos Khalqis e presidente do novo país e Babrak Karmal como integrante dos Parchamis e vice-primeiro-ministro.

Com a revolução, o país se viu em um dilema, já que a liderança só poderia ficar com os Khalqis ou com os Parchamis, e, como o primeiro grupo era mais radical e tinha maioria pashtun, e o segundo grupo era mais moderado e composto por uma maioria tadjique, surgiu um conflito entre as facções e as tribos  (TRAUMANN; KAMINSKI, 2016).

Como apontam Cunha, Oliveira e Morais (2020, p. 86675):

“Embora parecesse haver uma cooperação e homogeneidade entre as facções num primeiro momento, com o decorrer dos meses, este governo representou mais as rivalidades internas que o interesse do país como um todo e congestionou a política estatal […].”

A INVASÃO SOVIÉTICA (1979)

Com a ajuda de agentes da KGB infiltrados no alto escalão do novo governo afegão, a União Soviética já tinha uma boa noção de quando deveria intervir – novamente – nas questões internas do país. No entanto, em 14 de setembro de 1979, após um tiroteio no gabinete do presidente, Amin “prende” Takari e, dois dias depois, assume o cargo presidencial e a liderança do partido, anunciando a renúncia de Takari – que provavelmente foi assassinado no tiroteio, mas só teve sua morte confirmada, por uma “doença muito grave” em 9 de outubro (WAHAB; YOUNGERMAN, 2010).

Após essa grave crise institucional, várias movimentações militares na fronteira da URSS deixaram evidente quais seriam as ações dos soviéticos. Até que, em 25 de dezembro de 1979, o Exército Vermelho invade o Afeganistão. Quatro dias após a invasão, o presidente Hafizulla Amin é executado pelos soviéticos e Babrak Karmal assume o poder com total apoio do bloco socialista (RIEGER; TEIXEIRA, 2013; BBC NEWS, 2009).

No entanto, como afirmam Cunha, Oliveira e Morais (2020), essa invasão foi clara e indiscutivelmente uma violação do Direito Internacional, já que o domínio da política afegã passou a ser direta e indiretamente  pertencente aos soviéticos e o líder político do país – que era independente desde 1919 – foi sumariamente executado (RIEGER; TEIXEIRA, 2013).

CONSEQUÊNCIAS DA GUERRA

Já nos primeiros momentos da invasão soviética sobre o país, o povo afegão virou-se contra a URSS e tal revolta fez com que guerrilhas fossem formadas por todo o país. Essa resistência dos mujahedin[3] dificultou a permanência da União Soviética no país, já que os guerreiros santos não desistiram e, além do empenho deles, ainda podiam contar com o apoio dos Estados Unidos, China, Arábia Saudita, Irã e Paquistão.

Com a mudança da doutrina militarista de Brezhnev e a chegada de Gorbachov ao poder com suas reformas, o conflito chegou ao fim em 1988, com a retirada das tropas acontecendo somente em 1989.

Criança afegã com inúmeras munições de lança-foguetes nas mãos. Foto por Robert Nickelsberg, via All That’s Interesting.

Durante os nove anos de conflito, mais de um milhão de cidadãos afegãos foram mortos, bem como mais de 90 mil mujahedin e os pouco mais de 18 mil soldados afegãos. Do lado soviético, 14,5 mil militares morreram (THE ATLANTIC, 2014).

Veterano soviético inválido. Foto por Wikimedia Commons.

Depois da destruição humanitária, econômica e política causada pelos soviéticos, como afirmam Traumann e Kaminski (2016, p. 9), “a geração que agora lutava entre si tinha sido a principal vítima das atrocidades e crimes cometidos pelos exércitos frustrados, principalmente o Vermelho”.

Último comboio de tanques soviéticos a deixar o Afeganistão. Foto por Wikimedia Commons.

Com o “vácuo de poder” deixado pela destruição soviética, os mujahedin mais radicais e apoiados diretamente pelos Estados Unidos passaram a governar o país: os Talebans.

NOTAS

[1] Mais da metade dos 647,500 km2 do território do país é composto por montanhas que fazem parte do sistema de montanhas que formam as montanhas do Himalaia (WAHAB; YOUNGERMAN, 2010, p. 2).

[2] A facção dos Parchamis (os mais moderados) do Partido Democrático do Povo do Afeganistão (PDPA), era um dos grupos políticos que integravam o PDPA juntamente com os Khalqis (os mais radicais).

[3] Em pachto, língua oficial do Afeganistão, mujahedin são os guerrilheiros que lutaram contra a invasão soviética. Outra tradução para a palavra é guerreiro santo.

REFERÊNCIAS

BBC NEWS. Timeline: Soviet war in Afghanistan. Londres: 2009. Disponível em: <news.bbc.co.uk/2/hi/7883532.stm>. Acesso em: 12 jul. 2021.

CUNHA, Ana Paula Gonçalves; OLIVEIRA, Emilly de Freitas; MORAIS, Raquel Gonçalves Vieira Machado de Melo. A invasão russa no Afeganistão (1979-1989): Os impactos do conflito na história afegã. Brazilian Journal of Development. Curitiba, v. 6, n. 11, nov. 2020, p. 86671-86688. Disponível em: <https://www.brazilianjournals.com/index.php/BRJD/article/view/19649/15744>. Acesso em: 10 jul. 2021.

RIEGER, Fernando; TEIXEIRA, Yves. A invasão soviética ao Afeganistão e suas consequências para a Guerra Fria. Revista Perspectiva, a. 6, n. 10, fev./mar. 2013, p. 27-41. Disponível em: <https://seer.ufrgs.br/RevistaPerspectiva/issue/viewIssue/2608/157>. Acesso em: 11 jul. 2021.

THE ATLANTIC. The Soviet War in Afghanistan, 1979 – 1989. Washington D.C.: 2014. Disponível em: <https://www.theatlantic.com/photo/2014/08/the-soviet-war-in-afghanistan-1979-1989/100786/>. Acesso em: 12 jul. 2021.

TRAUMANN, Andrew Patrick; KAMINSKI, Marina Portela. O Waterloo da Guerra Fria: antecedentes da invasão soviética ao Afeganistão. Revista de Análise Internacional, Curitiba, v. 1, n. 1, ago./dez., 2016, p. 3-12. Disponível em: <http://www.humanas.ufpr.br/portal/nepri/files/2016/12/1-Andrew.pdf>. Acesso em: 10 jul. 2021.

WAHAB, Shaista; YOUNGERMAN, Barry. A Brief History of Afghanistan. 2 ed. Nova Iorque: Facts on File, 2010.

Jorge Willian Ferreira Gonçalves

Graduando em Relações Internacionais pela UFG. Membro do Grupo de Estudos sobre a Rússia (PRORUS/UFSC) e pesquisador voluntário na Cátedra Sérgio Vieira de Mello (CSVM/UFG). Tenho interesse nas relações Brasil-Rússia e a política externa russa no âmbito da Organização para Cooperação de Xangai e os BRICS.

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