A INTERFERÊNCIA ESTRANGEIRA E O REGIME TALIBÃ NO AFEGANISTÃO

A INTERFERÊNCIA ESTRANGEIRA E O REGIME TALIBÃ NO AFEGANISTÃO

Quando ouvimos falar dos países localizados na Ásia Central, temos o costume constante de pensar nos territórios que compunham a extinta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) tais como o Uzbequistão, o Cazaquistão, o Tadjiquistão entre outras. Porém, em tal região também está localizado um país que é lembrado com certa frequência no imaginário internacional por características outras que não são sua proximidade geográfica com a URSS: o Afeganistão. O país evoca na lembrança das pessoas as imagens do Talibã, do grupo terrorista Al-Qaeda e também do famoso fundamentalista islâmico, Osama Bin Laden, responsável pelo ataque as Torres Gêmeas em 11 de setembro de 2001.

Porém, o que muitos não sabem é que o período entre o governo do Talibã e a insurgência da Al-Qaeda têm relação direta com os desdobramentos da Guerra Fria entre a URSS e os Estados Unidos da América (EUA), mesmo que o país não tenha sido incorporado a União Soviética como muitos de seus vizinhos. Diante disso, este artigo abordará justamente esse aspecto da política interna do Afeganistão.

A invasão soviética ao Afeganistão

Os eventos históricos que culminaram para a atual situação do Afeganistão se relacionam com as diversas tentativas de interferências externas sofridas pelo país ao longo da história, em especial a invasão soviética de 1979:

“Tais eventos históricos (as tentativas de interferência externa) determinaram a atual situação do país. Por isso, esse artigo analisa a importância dos atores externos no agravamento da situação afegã, tanto por parte de Estados quanto de forças transnacionais, como as etnias e a religião islâmica, sendo estes últimos atores que incentivaram a resistência até se tornarem os principais pontos para o surgimento dos conflitos internos no país” (CUNHA, OLIVEIRA e MORAIS, 2020, p.86671)

O histórico do Afeganistão pré-invasão russa já é marcado por numerosos conflitos territoriais com grandes potências devido à importância geopolítica do território. Por muitos anos o país foi o local da passagem de rotas comerciais cruciais para vários pontos importantes do globo. Houve, inclusive, um momento em que o Afeganistão precisou lutar contra as tentativas de expansão territorial do Império Britânico na Ásia Central  (CUNHA; OLIVEIRA; MORAIS, 2020).

Com a ascensão da União Soviética, na primeira metade do século XX, o governo afegão procurou se aproximar dessa nova potência euroasiática, eliminando de vez quaisquer riscos de domínio imperial britânico. Contudo, devido à aproximação diplomática e política soviética, o país centro-asiático se viu em meio ao emaranhado de tensões da Guerra Fria entre EUA e URSS. O governo afegão até procurou manter uma posição de neutralidade em meio ao conflito ao fazer comércio e se aproximar também do lado estadunidense. Porém, devido ao temor presente entre as autoridades soviéticas de perder uma importante zona de influência na Ásia Central, a URSS invadiu o Afeganistão, começando uma guerra que duraria por praticamente uma década (CUNHA; OLIVEIRA; MORAIS, 2020).

Os mujahedins e a interferência dos EUA na guerra

Com a invasão repentina da URSS para tentar consolidar um governo totalmente comprometido com a sua agenda, houve a ascensão de grupos rebeldes motivados por tal violação da soberania afegã. O principal deles forma os mujahedins, um agrupamento de jovens muçulmanos sunitas que lutam a jihad – ou seja, a guerra santa pela expansão do islamismo e pela implementação da lei islâmica tradicional (a sharia). É justamente esse grupo que viria a se tornar o Talibã (CUNHA; OLIVEIRA; MORAIS, 2020).

Como a Ásia Central também era área de interesse da potência norte-americana, os EUA passaram a providenciar ajuda militar, através do fornecimento de armas e outros equipamentos de guerra, aos rebeldes mujahedins para que estes pudessem lutar contra as forças soviéticas de ocupação.

“A guerra e os apoios de ambas as partes em grupos opostos foram intensos. Não se tratava apenas do Afeganistão, mas da força e do poder que as duas potências disputavam no território, fazendo do Estado um ‘cabo de guerra’” (CUNHA; OLIVEIRA; MORAIS, 2020, p.86679).

A interferência dos dois grandes poderes mundiais da época apenas intensificou ainda mais os conflitos internos pré-existentes entre os grupos políticos afegãos. Conflitos estes que existiam graças à instabilidade frequente da situação interna do país, causada pelo constante perigo de interferências externas pelos quais o território sempre passou historicamente (GOMES, 2008). Neste contexto, surge entre os rebeldes mujahedins o Talibã: um grupo pan-islâmico que pretendia estabelecer a ordem no Afeganistão através do seguimento da lei islâmica (LAUB, 2014).

Indignados com o caos e a depravação orquestrados pelas milícias e pelo próprio governo, os Talibã, em sua maioria estudantes oriundos de campos de refugiados na fronteira com o Paquistão, distanciaram-se dos mujahidin ao apresentarem-se não como um partido que almejava chegar ao poder, mas como um movimento cuja pretensão era reorganizar a sociedade, segundo os preceitos muçulmanos, e findar com a corrupção e os excessos mundanos. (GOMES, 2008, p.65)  

Mesmo depois das forças rebeldes afegãs terem tido sucesso em expulsar o invasor com ajuda estrangeira ocidental, o Afeganistão continuou instável e com características de um Estado Falido[1]. Foi através desse cenário, e por meio de apoio popular, que o Talibã ascendeu ao poder na capital Cabul e em boa parte do território afegão em 1996. (GOMES, 2008).

O governo Talibã e a Al-Qaeda

Inicialmente as potências estrangeiras (principalmente a Arábia Saudita e o Paquistão) viram com bons olhos a ascensão do Talibã ao poder, pois acreditavam que, pelo grupo ser um partido organizado com ideais políticos bem claros, o governo deles finalmente traria a estabilidade e a paz necessária ao Afeganistão.

Contudo, o que se observou no país centro-asiático foi uma situação totalmente diferente que levou as potências, pouco a pouco, a retirarem seu apoio ao grupo, agora governante em Cabul. O novo governo primava pelo extremismo islâmico sunita e trouxe um verdadeiro regime de desrespeito aos direitos humanos contra a população em geral, principalmente para as minorias étnicas e religiosas e as mulheres. Além disso, foram impostas punições agressivas para quem violasse as estritas leis do regime talibã, bem como prisões desproporcionais para cada crime (GOMES, 2011).

Mulheres sob o regime Talibã

Se não os constantes crimes humanitários, o apoio oficial do governo afegão ao grupo terrorista Al-Qaeda (também islâmico sunita) fez com que vários Estados não apenas retirassem seu apoio ao regime talibã, como também começassem a conduzir sua diplomacia com o Afeganistão de maneira cautelosa, ou mesmo hostil. Isso se tornou especialmente verdade para os Estados Unidos após os ataques de 11 de setembro de 2001.

Os ataques de 11 de setembro e a Guerra do Afeganistão

No dia 11 de setembro de 2001, um grupo terrorista sequestrou quatro aviões comerciais, jogaram dois deles contra as Torres Gêmeas, em Nova York, chocaram o terceiro avião contra o edifício do Pentágono em Washington e o quarto foi derrubado antes de atingir o Capítólio, matando três mil pessoas em todo o processo. Tal evento, que teve como alvos os dois maiores prédios onde se realizavam operações comerciais nos EUA, bem como o quartel-general do exército americano e a própria Casa Branca, se trata do maior ataque contra os EUA em solo americano da história. Poucos dias após os ataques, o grupo terrorista afegão Al-Qaeda, sob a liderança de Osama Bin Laden, assumiu a autoria.  

Como mencionado anteriormente, o regime talibã apoiava logisticamente a Al-Qaeda e, mesmo após os EUA anunciarem a caça a Bin Laden e ao grupo, o governo afegão continuou apoiando e proporcionando esconderijo aos mesmos. Assim, em outubro de 2001, o presidente americano George W. Bush declarou guerra ao Afeganistão com o apoio da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) [2]. No espaço de tempo de apenas um mês, o regime talibã foi destituído pelas forças invasoras americanas e substituído por um governo transitório. Pela segunda vez em menos de uma década, o Afeganistão estava em guerra por consequência de questões externas. (PEREIRA, 2011)

Dias de hoje e conclusão

Após a queda do governo talibã em 2001, a facção persistiu. Atualmente, se mantém como um grupo insurgente e rebelde que realiza eventuais ataques contra o governo de transição afegão. Além disso, apesar dos esforços de retirada das tropas americanas do país centro-asiático, por parte de Obama (2009-2016) e Trump (2017-2020), a presença militar dos EUA permanece até o presente ano no Afeganistão. (PEREIRA, 2011)

Sendo assim, podemos concluir que apesar do Afeganistão não ser um dos ex-países da URSS, como seus vizinhos Uzbequistão, Tadjiquistão etc., ainda assim não escapou de sofrer com os conflitos e instabilidades causados por potências estrangeiras e até hoje luta pela própria estabilidade e soberania.     

 

REFERÊNCIAS:

CUNHA, Ana Paula Gonçalves; OLIVEIRA, Emily de Freitas; MORAIS, Raquel Gonçalves Vieira Machado de Melo. A invasão Russa no Afeganistão (1979-1989): Os impactos do conflito na História Afegã. Braz. J. of Develop.,Curitiba, v.6, n.11, p. 86671-86688, nov.2020

DI SPAGNA, Julia. 11 de setembro: entenda o ataque terrorista que completa 20 anos. Guia do Estudante, 2021. Disponível em: <https://guiadoestudante.abril.com.br/estudo/11-de-setembro-entenda-o-ataque-terrorista-que-completa-20-anos/>. Acesso: 07 abr 2021.

GOMES, Aureo de Toledo. Do colapso à reconstrução: Estados Falidos, operações de Nation-Building e o caso do Afeganistão no pós-Guerra Fria. Dissertação (Mestrado em Ciência Política) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo, p.179. 2008.

LAUB, Zachary. The Taliban in Afghanistan. Council on Foreign Relations, 2014. Disponível em: <https://www.cfr.org/afghanistan/taliban-afghanistan/p10551>. Acesso: 07 abr 2021.

PEREIRA, Carlos Santos. Dez anos de guerra no Afeganistão. IDN – Revista Nação e Defesa, vol.05, nº130, pp.179-216,  2011.

 

[1]Estado Falido: é o Estado que não desempenha mais funções básicas, tais como segurança, e que não mantém o controle efetivo de seu território e de suas fronteiras.” (GOMES, 2008, p.11)

[2] Tratado militar fechado entre os Estados Unidos e outras potências ocidentais durante a Guerra Fria que persiste até os dias de hoje

Letícia Martins Lima

Internacionalista em formação pela Universidade Federal de Goiás, gosta da área geral de Relações Internacionais, mas tem interesse mais específico nas áreas de Política Internacional e Diplomacia.

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