A “CONTAMINAÇÃO” DA INDÚSTRIA ALIMENTÍCIA

A “CONTAMINAÇÃO” DA INDÚSTRIA ALIMENTÍCIA

Adaptação do best-seller “Poisoned”, o documentário fala sobre os bastidores da indústria alimentícia nos Estados Unidos (Foto: Filmow)

O documentário se inicia em um supermercado dos Estados Unidos. Um homem e uma mulher caminham pelas alas comentando sobre quais dos itens nas prateleiras já foram acusados de causar algum tipo de indisposição ou enfermidade em seus consumidores. O homem é Bill Marler, advogado de segurança alimentar que ganhou notoriedade no país durante o surto de Escherichia coli 1em 1993. Na seção de horticultura, em que apenas um tipo de alface foi o motivo de um outro surto de E.Coli, desta vez no ano de 2018, Marler aponta: “os industriais  nos mandam essas mensagens confusas. Eles querem que compremos seus produtos, mas eles não querem de nenhuma forma serem responsáveis pelo que eles produzem.” 

O argumento do advogado é amparado pelas uma hora e vinte minutos que se seguem, nas quais são apresentadas uma repetição de fatos que sempre resultam em dois elementos: a morte de algumas pessoas e uma multa milionária aplicada na empresa negligente. Curiosamente, também logo no início do longa-metragem, mais recortes de noticiários passam pela tela, mas desta vez, com um assunto diferente: a promoção do sistema de suprimento alimentar dos EUA como sendo um dos mais seguros no planeta.

Lançado em 2023 e disponível na Netflix, “Contaminação: A Verdade Sobre o que Comemos” explora alguns dos casos de intoxicação alimentar de maior repercussão nos Estados Unidos, aponta os riscos de se ter o dinheiro no poder e não a segurança em primeiro lugar, e mostra como a higiene – e também a falta dela – impactam toda uma cadeia produtiva, afetando milhares de vida todos os anos.

CONTAMINAÇÃO SEM FRONTEIRAS

Para Ben Chapman, professor e especialista em segurança alimentar que foi entrevistado para o documentário, os patógenos não conhecem limites territoriais, muito menos se incomodam com restrições legislativas, sejam elas domésticas ou internacionais. Com o aprofundamento da globalização e uma população mundial em rápido crescimento, a cadeia de suprimentos mundial nunca foi tão relevante.

 Em adendo, segundo um outro Ben2 – este um pouco mais popular do que seu xará -, grandes poderes são acompanhados de grandes responsabilidades e a maior cooperação entre diferentes sistemas de produção alimentar são um exemplo disto. Durante a pandemia de 2020, a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) reforçou aos países latino-americanos a importância dos laços comerciais para o fomento de suas populações durante a crise. No pronunciamento, deu-se destaque tanto à necessidade de transformar o sistema de distribuição a fim de fortalecê-lo ante futuros abalos globais, quanto à responsabilidade dos Estados de fornecer alimentos seguros e acessíveis às populações (Estado de Minas, 2020). 

Nessa perspectiva, a maior conscientização internacional renderia em melhores acordos, portanto, melhor distribuição de alimentos e redução da fome. Entre contratos e a distribuição de recursos, a segurança deveria ser um pilar indiscutível aplicado a ambos os lados – empresas e população – para que se pudesse manter de pé todo um esquema internacional de nutrição. Contudo, o mundo corporativo também possui suas versões de patógenos, manipulando matérias-primas, distribuição, legislação e instruções de consumo, que não se correspondem com o estipulado nos “BPFs”, os guias de “boas práticas de fabricação” da indústria alimentícia. 

Assim, a transparência, que é proporcionada pelos conglomerados alimentícios (sejam de manufaturados ou agrícolas), é apresentada ao mundo por meio de uma janela de vidro. Mas ela está completamente embaçada, cheia de arranhões e com aquela película escura que impede de ver por completo o que ocorre do outro lado.

A TERCEIRIZAÇÃO DA SEGURANÇA ALIMENTAR

Delegações reuniram-se em Roma para debater sobre o abastecimento de mantimentos no planeta. (Foto: Giulio d’Adamo/ World Food Programme)

Em julho de 2021, por convite da Organização das Nações Unidas, mais de 100 países de diferentes cantos do mundo enviaram delegações para Roma, a fim de discutir sobre as metas da Agenda 2030 sobre comida, que a gestão da cadeia de suprimentos mundial, como sustentabilizar a produção de mantimentos e realizar o gerenciamento mais igualitário das toneladas produzidas todos os dias, tendo em vista a fragilidade do sistema perante abalos causados por catástrofes ambientais e crises sanitárias. Entre os focos das discussões, se encontrava uma pauta de destaque aos governos ali presentes: como as políticas públicas são essenciais para que as pessoas não passem fome seja durante uma pandemia ou fora dela, tendo em vista os abusos sofridos pelos consumidores em períodos de colapso humanitário.

O caso é que o evento que deveria ter sido uma prévia para a Cúpula a acontecer dali a dois meses no mesmo ano, com o intuito de fornecer palco e promover diálogo entre a sociedade civil e os tomadores de decisão, acabou por também contar com a forte presença de grupos privados. No ano anterior ao da Cúpula dos Sistemas Alimentares (Food Systems Summit, FSS), realizado em setembro de 2021, empresas dos ramos de alimentos e bebidas gastaram um coletivo de 38.2 milhões de dólares em lobby (Food Untold, 2023). Assim, nas palavras de Marion Nestle, ex-professora da NYU e renomada nutricionista:

“Companhias de comida não são agências de serviço social ou de saúde pública. São negócios como qualquer outro e operam da mesma forma. Ou seja, eles fazem de tudo para maximizar suas vendas e margens de lucro, pois eles possuem acionistas para agradar.” (Nestle, 2021)

Assim, ao financiar pesquisas sobre novos produtos, incentivar institutos de avaliação e apoiar campanhas políticas, as corporações criam um mecanismo de defesa no qual se blindam com seu dinheiro e driblam as formas de regulação, abafam os escândalos e instigam tomadores de decisão na elaboração de legislações mais brandas. Protegidas até certo ponto por seus tesoureiros, batalhão de advogados e cartelas de políticos, as companhias terceirizam as responsabilidades de suas más práticas aos próprios consumidores, ao argumentarem que cabe a eles a descontaminação dos produtos e a garantia de sua segurança. 

A VITAMINA DE C DE BILHÕES

JBS, frigorífico brasileiro considerado a segunda maior companhia alimentícia do planeta, é responsável pelo escândalo bilionário de 2017 que envolveu acionistas estrangeiros, cofres públicos e vitamina C. (Foto: Ueslei Marcelino/ Reuters)

Entre 1992 e 1993, durante o surto de E.coli que contaminou mais de 700 pessoas, hospitalizou 171 e resultou na morte de 4 pessoas, a rede de fast-food norte-americana “Jack in the Box” foi julgada culpada por negligência ao conscientemente ignorar as reclamações dos clientes e as normas sanitárias da época e servir carne imprópria ao consumo. Os executivos foram condenados e a empresa teve que pagar acordos milionários às famílias afetadas. 

Anos depois, em 2009, ocorreu outro surto, desta vez por meio de pasta de amendoim. Os produtos estavam contaminados com salmonella e o CEO da Peanut Corporation of America, Stewart Parnell foi condenado em 2015 a uma pena de 28 anos na cadeia, após o surto adoecer 714 pessoas e ocasionar a morte de 9 pessoas. Durante as investigações sobre o caso, foi constatada a existência de infestações de ratos e vazamentos no teto, além de se descobrir que a empresa vinha falsificando os resultados dos testes acerca da presença de patógenos nos produtos e subornando inspetores para que nada viesse à tona (The Guardian, 2015).

No Brasil, em 2017, o país foi paralizado com a operação da Polícia Federal que revelou aos olhos do público que as gigantes nacionais do mercado de carnes e embutidos, a JBS e a BRF, responsáveis pelas marcas Friboi e Sadia, respectivamente, vendiam produtos com ingredientes químicos em quantidades acima do permitido pela lei, ofertavam ao público carnes fora da data de validade e cometia fraude econômica, ao mentir sobre as informações do produto (BBC, 2017). Os dirigentes foram substituídos devido a acusações de corrupção em investigações da época e a J & F, holding que agrega as companhias frigoríficas citadas anteriormente, firmou um acordo de leniência com o MPF, o Ministério Público Federal, no valor de 10,3 bilhões de reais (Exame, 2017).

CONCLUSÃO

“Contaminação: A Verdade Sobre o que Comemos” apresenta fatos e mais fatos ao longo dos seus 122 minutos de duração. Embora conte sobre os podres da indústria alimentícia estadunidense e dos impactos que as grandes empresas possuem nas vidas de pessoas comuns, o documentário abre as portas para uma análise ampla de como a cooperação internacional entre Estados se configura como uma faca de dois gumes dentro da sociedade capitalista na qual nos inserimos. Por mais que a variedade de produtos, a troca de culturas e as trocas de conhecimentos sejam benefícios inquestionáveis trazidos pela globalização, os problemas internos não cabem mais apenas às soluções do governo, tendo em vista que eles não administram os países sozinhos, mas sim, de mãos dadas ao público e fortemente entrelaçadas aos empresários.

A obra evidencia o poder que as companhias possuem sobre nossas vidas, ao regular o que ingerimos e desejamos. Com isso, a direção de Stephanie Soechtig entrega os malefícios de cada uma das bactérias que coexistem entre nós, estando elas presentes nas carnes que consumimos, nas verduras que tanto demoramos para escolher no mercado ou nos assentos presidenciais das corporações que regulam o mundo em que vivemos.

Referências

Alves, A. R. F. Doenças alimentares de origem bacteriana. 87f. Dissertação (Mestrado em Ciências Farmacêuticas). Faculdade de Ciências da Saúde, Universidade Fernando Pessoa, Porto, 2012. 

AMARAL, L. Cúpula da ONU sobre alimentação fecha os olhos para os impactos dos ultraprocessados. O joio e o trigo, 15 de set. de 2021. Disponível em:https://ojoioeotrigo.com.br/2021/09/cupula-da-onu-sobre-alimentacao-fecha-os-olhos-para-os-impactos-dos-ultraprocessados/  Acesso em: 23 set. 2023

CONTAMINAÇÃO: A Verdade Sobre o que Comemos. Direção de Stephanie Soechtig. Netflix, 2023 (83 min). FAO defende cooperação entre países para alimentar América Latina. Estado de Minas, 22 de abril de 2020. Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2020/04/22/interna_internacional,1141036/fao-defende-cooperacao-entre-paises-para-alimentar-america-latina.shtml Acesso em: 21 set. 2023

Ficha técnica completa – Contaminação: A Verdade Sobre o que comemos. FILMOW, 2023. Disponível em: https://filmow.com/contaminacao-a-verdade-sobre-o-que-comemos-t361524/ficha-tecnica/. Acesso em: 26 set. 2023

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NOTAS DE RODAPÉ

  1. Escherichia coli (E.coli) é uma bactéria presente naturalmente de forma inofensiva nos intestinos de seres humanos e animais. Entretanto, uma das formas de contaminação da variante patógena é a ingestão de alimentos ou bebidas já comprometidos com a bactéria, como carnes, leites e vegetais crus ou mal cozidos. Os sintomas podem envolver diarréia, febre e vômito. (Alves, 2012) ↩︎
  2.  “Com grandes poderes, vêm grandes responsabilidades” é um famoso provérbio dito por Ben Parker, personagem da história em quadrinhos do Homem-Aranha, super-herói da Marvel Comics. ↩︎

Giovana Silva Santiago

Estudante de RI amante de frutas, livros, músicas e musicais e que se encontra em um sério relacionamento internacional com o BTS.

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